Volume 3 - 1998
Editor: Giovanni Torello


Março de 1998 - Vol.3 - Nş 3

Dependência de Internet: uma nova categoria diagnóstica?

Denise Razzouk*
*Psiquiatra pós-graduanda do Depto de Psiquiatria da Unifesp e Editora da Psychiatry On lIne Brazil

Com o aparecimento da Internet como um novo instrumento de comunicação e o seu acesso cada vez mais presente em todas as classes sociais, profissionais e faixas etárias, relatos de comportamentos patológicos de dependência à Internet constituem temas frequentes da literatura médica atual e também, com grande destaque, na mídia popular.

Em função desta nova forma de expressão de um comportamento patológico formam-se associações  e grupos de ajuda aos chamados "netalcoholics, webalcoholics" , definem-se critérios diagnósticos para a "nova" categoria de dependência, elaboram-se diretrizes para o seu tratamento e prevenção, pesquisas e questionários são distribuídos pela Internet à procura de pessoas que fazem parte deste grupo (Goldstein &Flory , 1996; Briggs; Young, 1996).

Antes de discutirmos diretamente estas questões, devemos refletir sob a  definição de Dependência. O conceito de dependência  só começou a ser delineado como uma doença no século XIX. Anteriormente, o uso exagerado de álcool, por exemplo, não estava associado a uma perda de controle, a um desejo compulsivo de seu uso ou mesmo como um desvio patológico, mas como uma opção do indivíduo. Somente no século passado, que a dependência começou a ser associada a um transtorno da mente. Benjamin Rush, adicionou a este conceito de dependência `a presença de um transtorno na vontade do indivíduo. É neste período que se forma o conceito de dependência aliado a um início de uso não patológico de álcool evoluindo para a dependência. (Berridge,1994).

Com as drogas estimulantes do tipo anfetaminas e cocaína também pudemos notar uma mudança entre o conceito de uso por opção para o uso patológico. Era comum no início do século XX, o uso de cocaína e estimulantes por pessoas pertencentes `as camadas mais abastadas da sociedade para a obtenção de prazer, maior disposição física (em festas e reuniões, para estudar durante à noite). No final da segunda guerra estas drogas eram oferecidas aos soldados para que suportassem com maior vigor o cansaço, a frustração da derrota e  o desânimo. O uso de tais drogas deixa de ser um objeto de status social e passa a ser mais acessível as camadas menos privilegiadas. A partir desta data (1960-70) o uso destas drogas passa a ser reconhecido como um problema de saúde (Kleber,1988).

O desenvolvimento de classificações operacionais como o DSM-IV (APA,1994) categoriza  a Dependência a substâncias (como álcool e outras drogas) como um transtorno psiquiátrico do eixo I, definindo critérios diagnósticos relacionados a um comportamento maladaptativo em que o indivíduo passa a expressar, sem controle voluntário, que produz distúrbios no plano social, psicológico e físico. Um dos critérios diagnósticos determinante desta categoria é a presença dos chamados sintomas de abstinência (decorrentes da interrupção do uso da susbstância) e o desenvolvimento da tolerância, ou seja, da necessidade de consumir uma quantidade cada vez maior para se obter o mesmo efeito anteriormente alcançado.

Ainda que, no DSM IV (APA,1994) não observemos uma categoria isolada para o uso patológico de Internet,  devemos ficar atentos quanto à formulação de novas categorias diagnósticas associadas a "novos" comportamentos patológicos e seus sintomas. O primeiro a designar o termo dependência de Internet foi Ivan Goldberg em 1996, para definir como uma categoria diganóstica caracterizada por um uso compulsivo e patológico da Internet e, mais recentemente este mesmo autor propôs a mudança de termo para uso patológico de computador (Goldberg,1996). King (1996) propôs como categoria diagnóstica o Transtorno do uso patológico de computador para aqueles indivíduos em que o uso excessivo de computador causasse um prejuízo em seu funcionamento físico, psicológico, interpessoal, conjugal, econômico e social.

Young (1996) realizou um estudo para caracterizar o uso patológico de Internet utillizando os critérios diagnósticos para jogo patológico do DSM IV como se fosse um trantorno patológico do impulso. Neste estudo Young (1996) identificou entre os "dependentes de Internet" as seguintes características:  um início recente de utilização da Internet ( menos do que 6 meses), com uma carga horária média de 38 horas/semana, com padrão de aumento rápido do número de horas "on-line" enquanto que entre os "não-dependentes" o uso de Internet era superior a um ano, não apresentavam padrão de aumento rápido do número de horas e uma carga média de 5  horas por semana.

Porém,  a quantidade de horas de utilização de Internet  considerada  como normal é ainda motivo de discussão na literatura (Holmes, 1996;Young,1996; Grohol,1997).O uso de mais de 38-40 horas/semana ou 5-6 horas pode dia constituir um indício de dependência embora, alguns autores tenham relatado o mesmo padrão de dependência em indivíduos que usam  Internet de 8 a 11 horas por semana  (Grohol,1997). O número de horas não é uma variável adequada para se determinar a presença ou não da dependência na medida em que o relato é obtido a partir do próprio usuário, que muitas vezes não é fidedigno. Além disso,   pessoas com padrão de uso patológico podem utilizar menos horas do que o acima mencionado e ainda assim apresentarem as conseqüências negativas deste uso (Holmes a,1998).

O que parece ser um dado mais refinado é o impacto do uso da Internet sobre a vida do indivíduo, isto é, o quanto de prejuízo social, financeiro, afetivo e profissional são desencadeados pelo uso patológico da Internet.

O padrão de uso de Internet também parece diferir quanto ao tipo de recursos utilizados. No estudo conduzido por  Young (1996): os dependentes apresentaram preferência pelos "chats" enquanto que os " não dependentes" utilizaram mais a web para buscar informações técnicas, profissionais,etc. Além disto, os dependentes referiram maior comprometimento em seus relacionamentos pessoais, profissionais, sociais, com grande prejuízo em suas vidas de forma global. Porém, este estudo apresenta limitações metodológicas importantes, seja pelo viés de seleção da amostra (anúncios on-line em grupos de apoio para os Dependentes de  Internet), pela falta de randomização e pela amostra pouco representativa.

Os critérios diagnósticos propostos para esta nova categoria  estão relacionados a um comprometimento no plano social familiar e profissional por um uso preferencial e as vezes exclusivo da Internet sobre as outras atividades e uma incapacidade de controlar o número de horas de uso de Internet, com uma tendência a ter sensação de tristeza, ansiedade e mal-estar quando não está on-line. (Goldberg,1996)

Briggs, do Departamento de Psicotecnologia da Albany University (New York) caracterizou a dependência de Internet como análoga à Dependência de Substâncias descrevendo sintomas como a  tolerância (a necessidade de aumentar o número de horas on-line), síndrome de abstinência (mal estar, ansiedade e angústia quando distantes do computador) e falta de controle para interromper o uso de Internet.

As conseqüências deste uso patológico são a perda de emprego, mau desempenho escolar, divórcios ou rupturas de relacionamentos afetivos e familiares, isolamento social, gasto excessivo de dinheiro com Internet levando a dívidas expressivas, descuido com a própria aparência e saúde física. (King,1996; Young,1996).

Desta forma, o uso patológico de Internet tem sido catalogado como uma dependência a substâncias e como um transtorno de impulso. Raciocínio semelhante tem sido aplicado ao comportamento compulsivo para jogo, sexo, compras e alimentos (Toronto University).

Holmes (1998b) argumenta que o simples uso exagerado de Internet não parece consituir um critério diagnóstico de dependência de Internet na medida em que pessoas com compulsão a sexo, por exemplo, vão procurar "sites" de pornografia e neste caso a dependência ou comportamento patológico é de outra natureza.

King (1996) faz uma análise compreensiva do fenômeno de dependência de internet. Este autor descreve como os ambientes virtuais dos tipo (MUD ou chat) favorecem o mecanismo de dependência. Estes ambientes virtuais proporcionam ao usuário uma gratificação imediata de suas necessidades mais básicas até as mais sofisticadas (necessidade de relacionamentos interpessoais, reconhecimento social,etc). Estes sistemas funcionariam como reforços imediatos a determinados comportamentos e necessidades não supridas pelo mundo real e permitiriam a expressão de determinadas características de personalidade, antes encobertas. Porém a extensão em que as frustrações da vida real podem contribuir para o desenvolvimento da dependência por Internet é ainda mal compreendida. A hipótese  proposta por King (1996) é que a Internet oferece um acesso à informação, relacionamentos e tipo de comunicação que muitos não poderiam esperar que ocorressem em suas vidas cotidianas.

Um outro ponto importante a ser considerado é a alta prevalência de comorbidade verificada entre os transtornos de dependência por álcool, drogas, transtornos alimentares e os transtornos psiquiátricos, sejam eles referentes ao eixo I ou II (transtornos de personalidade) (El-Guebaly,1995;De Jong et al, 1993; Regier et al,1990; Lidz & Platz,1995; Razzouk,1996).

Esse fato nos faz questionar o padrão de personalidade e de relacionamento social e afetivo prévio ao desenvolvimento de um comportamento patológico de uso de Internet. O quanto um indivíduo com dificuldades em diversas esferas usa de um instrumento como a Internet para minimizar o que não consegue superar sozinho. Este tipo de comportamento é bem conhecido entre indivíduos com transtornos depressivos e que desenvolvem alcoolismo ou dependência à cocaína para amenizar sintomas depressivos (Batki,1990).

Portanto, os "dependentes" de Internet buscam a Internet, sem um objetivo definido,  com preferência pelos "chats" e grupos de bate-papo, enquanto, que os usuários não-dependentes utilizam a Internet com um objetivo mais definido, e em geral em busca de uma informação seja ela técnica ou de uso pessoal e em geral, nos sites da web. Este estudo sugere que os indivíduos com dependência por Internet utilizam este instrumento não pelo seu principal recurso (informação), mas para estabelecer contatos virtuais que se tornam prioritários e as vezes exclusivos em relação aos seus relacionamentos  reais.

Como bem enfatiza Suler (1996) estudos metodológicamente mais rigorosos devem ser elaborados afim de se avaliar os sintomas propostos validam uma "nova " categoria diagnóstica,  se existem elementos da história pessoal, padrão de personalidade e tipo de prognóstico que possam ser correlacionados com este diagnóstico. Antes que adicionarmos mais uma categoria às classificações nosográficas é importante investigar as evidências mais consistentes que possam validar a dependência de internet como categoria diagnóstica.

 Bibliografia


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