Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Setembro de 2017 - Vol.22 - Nº 9 Psicanálise em debate OBSERVAÇÕES SOBRE ÉTICA EM PSICANÁLISE
Sérgio
Telles 1 – ASPECTOS GERAIS O dicionário Caldas Aulete dá a seguinte definição de
ética: 1) Parte da filosofia que trata das questões e dos preceitos que se
relacionam aos valores morais e à conduta humana; 2) conjunto de princípios,
normas e regras que devem ser seguidos para que se estabeleça um comportamento
moral exemplar.[1]
A versão em língua inglesa da Wikipedia diz que, na
prática, a ética procura resolver questões da moralidade humana ao definir
conceitos tais como bem e mal, certo e errado, vício e virtude, justiça e crime[2]. Sob esse prisma, o estudo da ética é um lugar
privilegiado para salientar o quanto a noção de inconsciente provoca uma
revolução em concepções filosóficas secularmente estabelecidas sobre a essência
do homem, como bem ilustram os casos de neurose obsessivo-compulsiva. É sabido que uma pessoa afetada por este transtorno
procura ter uma vida ilibada, segue com rigor normas e regras, é extremamente
exigente consigo mesma, acusa-se de e penitencia-se por mínimas falhas
imaginárias. Seguindo os padrões éticos habituais e o julgando-a pelo
comportamento externo, ela seria considerada justa e boa. Entretanto, a
psicanálise entende o rigor do obsessivo como um mecanismo de defesa
específico, a formação reativa, que reforça o extremo oposto daquilo que é seu
desejo, do que é sua verdade interna. Em seu inconsciente, o obsessivo é tomado
pelo ódio e pela agressividade sádico-anal e está em luta permanente contra o
impulso de externá-los. Situação não muito diferente ocorre com os outros
homens tidos como bons e éticos. A realidade psíquica deles pode ser bem mais
complexa e abrigar os antípodas daquilo que exibem externamente. Como a psicanálise lida com esta questão, na medida em
que quase sempre o reprimido é o convencionalmente censurado e um dos maiores
objetivos da psicanálise é ajudar o sujeito a vencer a repressão? Significaria
isso que a psicanálise é a favor do que é condenado pela ética, que a psicanálise
advoga que os desejos sejam liberados e atuados? Vejamos como Freud, Melanie Klein e Lacan abordaram esse
problema. a
- FREUD - Desde muito cedo Freud se deu
conta de como as descobertas da psicanálise tinham implicações éticas. No final
de seu A Interpretação dos Sonhos,
onde faz o levantamento dos conteúdos inconscientes e a forma especifica pela
qual se expressam, pergunta-se o que pode pensar um sujeito ao se dar conta de
seus desejos proibidos e criminosos, dos quais até então não tinha conhecimento
por estarem reprimidos e gerando sintomas. Deve ele sentir-se culpado? Freud
responde citando Platão, que dizia “o homem virtuoso se contenta em sonhar o que o homem perverso executa”. Vê-se que já Platão intuía a
divisão estrutural do psiquismo entre o consciente e o inconsciente, e,
apelando para o princípio da realidade, considerava que o importante para a lei
é o que o homem faz e concretiza de fato na realidade. É por seus atos que será
julgado, não por suas fantasias, por seus desejos inconscientes[3]. Já antes, a preocupação com a ética e a moral aparecera
no Projeto para uma psicologia cientifica
(1895)[4],
onde Freud atribui ao desamparo inicial do ser humano o aparecimento dos
motivos éticos. Com isso, deixa claro que a moralidade não é uma essência
inerente ao homem e sim uma construção em função de sua condição de assujeitado
e dependente do Outro materno. O que estabelece a discriminação entre o Bem e o Mal é
a condição de desamparo inicial, a impossibilidade de prescindir dos cuidados e
da proteção de um Outro significativo. Em função disso, o ego passa a
considerar como Mal, que como tal deve ser evitado, qualquer coisa que o ameace
de perder o amor deste Outro. Por
extensão, o Mal passa a ser qualquer ato de desobediência aos mandatos do Outro,
da autoridade, que é inicialmente a mãe, como mostrou no paradigma do Nebenmench (o humano ao lado, o próximo,
o outro). Com Totem e Tabu
(1913) e O Ego e o Id (1923), a
ênfase recai na figura do pai[5].
A teorização em torno do complexo de Édipo e da formação do superego evidenciam
mais claramente o sentimento de culpa e a necessidade de punição, que apontam
diretamente para as questões de certo e errado, de Bem e Mal. Com o estabelecimento do complexo de Édipo, o Outro do
qual não se pode prescindir, do qual se espera amor e proteção e a cuja autoridade
se obedece é o pai. E a lei máxima por ele imposta é a que ordena a interdição
do incesto. É essa a lei que vai estabelecer o que é o Bem e o Mal - o Bem é a renúncia ao incesto e o Mal é a
insistência no desejo incestuoso. Acontece que o que o ego mais deseja é
justamente o Mal, ou seja, a consumação do incesto. Em O Mal-Estar na
civilização (1930) [6]
Freud retorna à questão ao explicitar que o psiquismo não faz uma discriminação
natural entre o Bem e o Mal. Se assim fosse, Eros, o amor, seria sempre o Bem,
Tânatos seria sempre o Mal; o ego procuraria sempre o Bem, que lhe seria benéfico,
e se afastaria do Mal, que lhe prejudicaria. Essa linearidade implicaria uma ênfase
exclusiva no pulsional, mas o complexo de Édipo torna a situação mais ambígua.
O Mal pode ser justamente o que o ego mais deseja, aquilo que mais lhe dá
prazer (a consumação do incesto com a mãe); o Bem pode ser aquilo que mais o
faz sofrer (o ter de abdicar da posse da mãe). Enquanto o pai ainda é visto com autoridade externa, o
sujeito teme ser descoberto desobedecendo a suas ordens, ou seja, desejando a
mãe. Com a internalização da lei paterna e a formação do superego, aparecem o
sentimento de culpa e a consciência moral. Elas são consequência da vigilância
do superego sobre o ego, pois o superego não faz diferença entre desobediência
real ou apenas desejada pelo ego, pune as duas com a mesma severidade. Vem daí
o paradoxo apontado por Freud ao falar do extraordinário rigor do superego contra
um ego virtuoso. É que o superego não só sabe que, mesmo sem concretizar os
desejos proibidos, o ego os acalanta secretamente, como também se apropria do
investimento do ego não descarregado no exterior e o usa para puni-lo (ao ego) mais
intensamente. A única forma de diminuir o sadismo do superego,
alimentado pela agressividade reprimida e introjetada pelo ego, seria a
liberação de parte da agressividade no mundo externo pelo ego, o que traz um
problema ético de difícil solução. Em O Mal-Estar na
Civilização Freud especula sobre a vida em sociedade e as restrições que
somos obrigados a cumprir, reprimindo os desejos sexuais e agressivos e sendo
punidos, mesmo assim pelo superego, com o sentimento de culpa. Mais uma vez,
Freud refere tais sentimentos ao complexo de Édipo – os desejos sexuais são os
incestuosos e os agressivos são os que se voltam contra os limites da lei paterna,
que impede o acesso ao Bem/prazer com a mãe.
Em O problema
econômico do masoquismo (1924)[7],
Freud afirma que o imperativo categórico de Kant é um herdeiro do complexo de
Édipo. Demonstra ali como o masoquismo moral - culpa inconsciente e necessidade
de punição paterna - traço comum a todos os seres humanos - é particularmente
instrutivo sobre a importância da pulsão de morte na gênese da consciência e da
moralidade. Na resolução do complexo de Édipo, há uma dessexualização das
figuras parentais, que somente assim são abandonadas enquanto objeto de amor e
introjetadas. Acontece que a dessexualização proporciona uma defusão dos
instintos de vida e de morte, que até então estavam fundidos. Com isso, ocorre
uma diminuição do investimento libidinal e a permanência inalterada do
investimento tanático, o que faz com que
a figura internalizada potencialize seu rigor sádico. Tal situação não impede que possa haver uma ressexualização
dessas figuras parentais internalizadas e o complexo de Édipo seja novamente
investido pela libido. Dessa maneira, os ataques sádicos do superego ao ego
submisso remetem à revivescência do desejo de submissão sexual ao pai, o que
reafirma a íntima ligação entre sexualidade incestuosa, pulsão de morte e
moralidade. Em Moisés e o
Monoteísmo (1930)[8]Freud
diz que a ética é qualquer coisa que limite a pulsão. Mostra como a religião,
que se iniciou proibindo fabricar imagens de deus, terminou por impor a
renúncia às satisfações das pulsões em geral. Deus se erige como um ideal
ético. Os preceitos religiosos remetem
aos fatores já discriminados em Totem e
Tabu (a proibição do incesto, a aliança entre os irmãos e o assassinato do
pai), onde é descrita a vinculação entre o sagrado e o tabu de tocar (o tocar
agressivo contra o pai e o tocar erótico nas mulheres do pai – a mãe e as
irmãs). Por esta via, Freud especula porque o incesto é considerado como o
crime mais terrível na cultura, o tabu mais penalizado, o Mal por excelência.
Como não é possível encontrar uma explicação racional, Freud atribui o tom
sagrado, mítico, profundamente emotivo, grandioso e assustador que sempre
envolve o tabu do incesto ao fato de evocar diretamente o desejo do pai da
horda primitiva. A vinculação do tabu do incesto com uma ordem arcaica sagrada emitida pelo pai estabelece uma
ligação entre ética e religião. Freud julga haver uma “base profundamente
irracional de toda racionalidade”, evidente no imperativo categórico kantiano, derivado
da lei do pai da horda primitiva e do complexo de Édipo. Deve-se ter em mente
que a teorização do complexo de Édipo é a continuação lógica dos argumentos de Totem e Tabu, o mito originário que
explica a origem da lei, da organização social, da religião, da cultura. Szpilka[9]
aponta para a íntima relação entre Kant e Freud no que se refere à questão do
Bem e do Mal. O pensamento filosófico greco-latino sobre ética, transmitido ao
mundo ocidental pelo judaísmo e pelo cristianismo, partilhava a ideia de que
havia uma firme relação entre o Bem e o bem-estar. Acreditava que a existência
do Bem induzia à felicidade, haveria uma natural inclinação do homem para a
harmonia, e que, em sua busca, ele conseguiria algum tipo de realização ou
plenitude de ser. Na Crítica da
Razão Pura, Kant rompe essa tradição ao mostrar que a prática do Bem não é
natural, não é fácil e prazerosa, e decorre da obediência a uma lei, o que
envolve necessariamente um esforço, o cumprimento de um dever, o desprazer de
arcar com obrigações e restrições. Para Kant, não é a sensação de bem-estar ou
mal-estar o que condiciona o Bem e o Mal, é a lei que vai estabelecer essas
categorias. A lei é entendida como um imperativo categórico, não circunscrito a
objetivos circunstanciais limitados e sim a máximas de validade universal, que
devem ser seguidas per se, como uma
imposição inquestionável. A diferença entre Bem e Mal para Kant baseia-se, por um
lado, no empirismo subjetivista assentado na experiência de prazer e dor
(desprazer) e, por outro, num objeto formal a priori, tornando possível uma
universalidade suportada por uma lei geral. Essa diferença reflete a que já
existe na língua, pois, em alemão, há duas palavras para o Bem - Wohl (agradável, prazeroso, que causa
bem estar) e Gute (moralmente bom), o
que também acontece quanto ao Mal – Böse
(moralmente ruim) e Weh (desagradável e desprazeroso, que causa desconforto). Kant
rompe a relação tida tradicionalmente como natural entre Bem e bem-estar ao dar
primazia à lei, ao imperativo categórico. Para Szpilka, com essa nova abordagem da questão do Bem
e do Mal, Kant possibilitou a revolução freudiana. Como sabemos, Freud organiza
seus modelos de aparelho psíquico em torno das categorias de prazer e
desprazer, que – como vimos - têm uma relação peculiar com o Bem e o Mal. Assim
como para Kant, também para Freud o Bem não se confunde com o bem-estar, com o
prazer. Assim como para Kant é a lei o que vai estabelecer o que é o Bem ou o
Mal, o mesmo ocorre com Freud - o que é prazeroso para uma instância, é
desprazeroso para outra, e isso decorre do momento em que a lei instala a
proibição. A partir daí o que é amor pode não ser o Bem, pode ser o Mal e o que
é ódio pode não ser o Mal, pode ser o Bem, desde que autorizado pela lei. Isso
faz com que o ser humano esteja num permanente conflito ético. Seguindo Freud, Szpilka enfatiza que, em função da
importância central do Édipo, não existe na psicanálise uma abordagem natural
ou essencial da questão do Bem e do Mal. Na verdade, ela fica invertida, de
ponta-cabeça. Como os sintomas podem ser entendidos como a expressão da satisfação
de um desejo e sua concomitante punição, fica caracterizado que há algo que o
sujeito considera um Bem para si (a posse da Mãe) e que é tido como moralmente
Mal (incesto); e um Mal (proibição do incesto) que é considerado como
moralmente Bom (lei). E é justamente essa transmutação do Bem no Mal, instalado
pelo complexo de Édipo, o que causa a infelicidade comum do dia a dia, os
sofrimentos neurótico, perverso e psicótico. Existe um Bem no Mal e um Mal no
Bem que impede qualquer relação empírica ou naturalística com o Outro, as
relações serão sempre regidas por um sistema de leis que impõe definições do
que é Bom ou Mal. Como já vimos, pode-se resumir dizendo que, sob esta
perspectiva, o Mal é o incestuoso e o Bem é tudo aquilo que favorece a renúncia
ao incesto. b – MELANIE KLEIN - Também Faigon e Siquier[10]
afirmam que as formulações de Freud sobre ética estabelecem a não existência de
uma disposição natural para o Bem ou para o Mal, distanciando-se de qualquer
formulação ontológico-religiosa ou fundamentação empírica. Essas autoras mostram que Money-Kyrle, apoiando-se na
teoria kleiniana, liga o conceito de moralidade ao de culpa, definindo esta
como um tipo especial de ansiedade derivada da percepção de ter atacado real ou
fantasiosamente o objeto bom ou amado. É a culpa o que leva ao desejo de
reparação – conceito que abre caminho para a criatividade e o comportamento
humanitário. A partir desse pressuposto, Money-Kyrle descreve três tipos de
moralidade – a negativa, que proíbe o
ataque ao objeto amado e seus símbolos; a positiva,
que visa reparar os danos realizados, e a agressiva,
que luta para defender o objeto amado dos perigos internos e externos que o
ameaçam. Money-Kyrle liga os conceitos de incorporação e
expulsão aos de amor e ódio, aproximando-os aos mecanismos de introjeção e
projeção, o que o leva a conceber o conceito primário de objeto bom ou mal em
função de estar ele investido de amor ou ódio. A partir daí, postula três
“princípios objetivos da moralidade primária”: a) é mal – provoca culpa –
destruir ou ameaçar o objeto bom; b) é bom amar, reparar e defender o objeto
bom; e c) é bom odiar e atacar o objeto mau, ou seja, qualquer coisa ou pessoa
que ameace ou destrua o objeto bom. O conceito de inveja, consideram as autoras, é uma
valiosa contribuição kleiniana à ética e à moral. Para uma compreensão mais
clara dessa afirmativa, é necessário fazer uma distinção da inveja enquanto
conceito teórico e enquanto descrição de um sentimento. Teoricamente, a inveja está ligada à pulsão de morte, é
um elemento constitucional atuante desde o nascimento, está ligado à percepção
de uma ameaça de aniquilamento, o que implica num inato sentimento de
existência de um objeto e de mecanismos de defesa, e antecede o estabelecimento
das duas posições (esquizo-paranóide e depressiva). Enquanto sentimento, indica
profunda humilhação, dor e autodestruição decorrente da ferida narcísica,
sentimentos de ódio e ataques ao objeto invejado. A capacidade de amor incentiva as tendências
integrativas e possibilita uma cisão primária bem-sucedida entre o bom e a mau
objeto (amado e odiado). A inveja excessiva impede a discriminação entre bom e
mau objeto, impedindo a constituição de um bom objeto e perpetuando uma
confusão de valores. c – LACAN - Diz
Fink[11]
que à ideia de que a realização do desejo geraria o sentimento de culpa, Lacan
propõe o oposto: ficamos culpados quando não realizamos nosso desejo. Para
entender isso é preciso, seguindo Freud, distinguir culpa de arrependimento ou
remorso. Podemos nos arrepender do que fizemos, mas ficar contentes assim mesmo
por tê-lo feito. A culpa advém das censuras do superego contra o ego. Em sua
argumentação, Lacan esmiúça o paradoxo mostrado por Freud no capítulo 7 do O Mal-Estar na Civilização, onde fala do
rigor maior do superego contra o ego virtuoso que inibe suas pulsões proibidas.
Isso acontece, como vimos acima, porque o superego não só sabe que o desejo
persiste, como se apropria do investimento não descarregado no exterior,
usando-o para punir com mais vigor o ego. Como Freud diz ali, das pulsões
impedidas de alcançar seu fim nasce a consciência e não o contrário, não existe
uma consciência prévia que vai impedir a descarga das pulsões. Por esta via,
Lacan diz que a culpa vem por não se perseguir e realizar o desejo. Como mostra Fink, para Lacan o analista não deve se
preocupar com o Bem de seu analisando, da mesma forma que o analisando não deve
buscar o Bem dos outros. Deve sim entender qual é o seu próprio Bem, ou seja, o
grande Eros – que é mais amplo que o desejo, inclui a pulsão, o amor, o prazer.
Tampouco o analista deve querer que o analisando tenha um melhor contato com a realidade
e sim com o que deseja. A cura não deve buscar a substituição do princípio do
prazer pelo princípio da realidade e sim fazer o analisando se aperceber dos
mecanismos internos de seu próprio psiquismo. A realidade é percebida através
dos discursos interno e externo, essa é a realidade que interessa, a realidade
de nossos desejos. Essa é a única realidade que o analista conhece e que pode
ajudar o analisando a atingir. Isso implica uma ética, o lidar com a realidade
psíquica, com o desejo inconsciente e toda sua ambiguidade. Lacan avança um
passo a mais ao propor um paradoxo – nosso prazer é ainda maior quando envolve
a prática de uma transgressão, quando quebramos as regras e fazemos algo que é
proibido e perigoso para nós e para a sociedade, quando superamos obstáculos
internos grandes, que vão além do princípio do prazer, passando por vivencias
desagradáveis para atingir o gozo. Os analistas não devem nivelar essa questão com
o conceito de perversão, pois aí está um grande número de comportamentos
neuróticos. Lacan afirma que não há desejo sem a lei ou a
proibição. Em seu Seminário 7 -sobre a
ética, Lacan cita são Paulo, na Epístola aos Romanos – “Mas não conheci o
pecado senão pela lei. Porque não teria ideia da concupiscência se a lei não
dissesse: não cobiçaras”. Vê-se que São Paulo está próximo de Kant e de Freud,
ao falar que antes da lei não existe Bem ou Mal. Se o que mais desejamos – a Mãe - é algo proibido e
interditado, como pode a psicanálise pretender uma total reconciliação ou
harmonia de nossos desejos? - pergunta Fink. Freud propôs a sublimação como a
forma substituta e indireta de satisfazer esse maior desejo. É nesse sentido
que Lacan diz que sublimação é a elevação do objeto à condição de Coisa. Lacan aproxima e contrapõe Kant e Sade, dois pensadores
aparentemente opostos no que diz respeito à ética. Zizek mostra como Lacan está
menos disposto a mostrar como Kant está perto de Sade, do que como Sade está
perto de Kant. Sobre a proximidade de Kant com Sade, diz: “Hoje em dia, em
nossa era freudiana e pós-idealística, não sabemos todos que a verdade do
rigorismo ético de Kant é o sadismo da Lei, que a Lei kantiana é uma agência
superegóica que goza sadicamente dos impasses do sujeito, de sua incapacidade
de atender a suas inexoráveis exigências, como o proverbial professor que
tortura seus alunos com tarefas impossíveis e secretamente saboreia seus
fracassos?”[12]. Ou seja, com a psicanálise, os princípios
éticos mais rígidos, como os formulados por Kant, podem ser vistos como a
expressão do Mal que eles supostamente combateriam, seriam uma clara
manifestação de sadismo. Por outro lado, Sade se aproxima de Kant pois ambos
preconizam imposições éticas formais universais e objetivas – Kant com seu
imperativo categórico, Sade com a
imposição da submissão às leis da natureza[13].
Contra elas Lacan defende a ética do desejo, pois nele reside o núcleo de
subjetividade e singularidade do homem. Para Lacan, a ética da psicanálise se resume na
pergunta “Agiste conforme o desejo que te habita?”. Em seu seminário sobre a ética, Lacan escreve sobre
Antígona, afirmando que seu comportamento ético se evidencia na forma como se
manteve fiel a seu desejo, não o traindo em função das pressões externas e
pagando com a vida por esta escolha. Em sua interpretação, o desejo de Antígona
vai além daquele que habitualmente se lhe atribui - o de afrontar a lei do estado
representado por Creonte, que a impedia de enterrar o irmão Polinice dentro dos
rituais tradicionais. O desejo inconsciente de Antígona, na verdade, é o desejo
da mãe Jocasta, o desejo criminoso de transgredir. Neste sentido paradoxal, seu
desejo continuava alienado no desejo do outro, a mãe[14].
2 – ASPECTOS PONTUAIS DA ÉTICA NA PRÁTICA PSICANALÍTICA
Nesse campo, ressaltam em primeiro lugar os erros
profissionais, intercorrência que compartilhamos com os demais praticantes dos
cuidados médicos e psicológicos, mas que, em nosso caso, toma características
específicas na medida em que eles se dão no campo da transferência, ou seja,
numa relação marcada pelo inconsciente dos dois participantes, analisando e
analista. Isso significa que o analista usufrui de um extraordinário poder que
lhe delega o analisando, na medida em que este o vê sob um ângulo regressivo,
como a criança, em seu desamparo, vê uma figura materna ou paterna. Ao
contrário dos demais profissionais da área, o analista tem pleno conhecimento
deste fato e dele faz seu instrumento mais importante, o que só lhe aumenta a
exigência ética. Em sua clínica, o erro mais grave no qual o analista pode
incidir decorre de sua incapacidade de manter a abstenção com a qual deve
conduzir o tratamento. Não contente em ser apenas uma presença fantasmática na
vida psíquica do analisando, o analista ingressa concretamente na realidade do
mesmo, rompendo o enquadre. Forma menos ruidosa, mas não menos lesiva, ocorre
quando, sem abalar formalmente o enquadre, o analista usa o analisando para
suprir suas necessidades narcísicas de onipotência e onisciência,
alimentando-lhe a dependência e a idealização.
Um outro tipo de problema ético está presente na
publicação de casos clínicos, que, apesar de ser algo imprescindível no estudo
e pesquisa da psicanálise, esbarra na condição de presumida confidencialidade
deste material. Gabbard tem feito valiosas contribuições nesse campo[15]. Também levanta questões éticas a inserção da clínica
psicanalítica nas grandes instituições de atendimento de massa, públicas ou
privadas (convênios de saúde), deixando-a mais accessível a um público maior. Para
tanto, ela tem que aceitar os protocolos que comandam todo o atendimento
médico-psicológico, procedimentos que muitas vezes se afastam muito dos
pressupostos psicanalíticos: critérios de diagnostico, tratamento, cura e alta,
confidencialidade, transferência institucional, etc. É um problema muito atual,
que merece toda atenção no sentido de evitar que a necessária ampliação do
âmbito da psicanálise não leve a uma descaracterização e empobrecimento da
mesma, o que configuraria um grande desserviço à nossa causa. Sob este prisma, Kavanaugh[16]
aborda a situação nos Estados Unidos, mostrando com detalhes como a psicanálise
subscreve o código ético médico, plasmado dentro da filosofia utilitária de
John Stuart Mill, abandonando completamente aquilo que chama de “ética da
associação livre”, especialmente quando entram em jogo a ética dos negócios e a
procura do lucro, característicos das empresas prestadoras de serviços
médicos. Gampel[17],
por sua vez, mostra os cuidados especiais que o analista deve ter em situações
nas quais a realidade externa invade o enquadre, o que ocorre em acontecimentos
de comoção pública, como guerras ou conflitos armados, perseguições políticas
próprias de regimes totalitários e ditatoriais ou mesmo em situações de crônica
tensão social descarregada em violência urbana, tal como conhecemos em nossas
grandes cidades. O analista não pode negar a realidade externa, na qual está
sujeito aos mesmos medos e angústias que atingem o analisando, nem deixar que
ela obstrua sua visão da realidade interna do mesmo. Os argumentos da autora
decorrem de sua experiência no atendimento a sobreviventes do Holocausto e a
moradores de Israel durante a Guerra do Golfo. Um enfoque interessante é trazido por Thompson[18],
ao discorrer sobre o que chama de “ética da honestidade” que julga reger a
psicanálise. Apoiando-se em Rieff, mostra como Freud propunha a seus
analisandos um compromisso com a honestidade com a qual deveriam praticar a
associação livre, sendo essa, em sua opinião, a verdadeira regra fundamental. Freud
considerava a prática da associação livre como um indicador do nível de
resistência do analisando, desde que, para ele, a associação livre não era uma
mera conversa despreocupada, “solta” – como muitos analistas de hoje parecem
considerar - e sim um procedimento técnico que inaugurava um tipo de diálogo
interior diferente da introspecção e de outras modalidades até então
existentes. Procurando fazer associações livres, o próprio analisando percebe
quando é tentado a excluir algo de sua fala, o que indica a presença de uma
resistência. Essa constatação deveria levá-lo a dirigir sua atenção justamente
para este ponto e, enfrentando a resistência, explorá-lo junto com o analista.
Em assim fazendo, o analisando deixa de ser um despreocupado contador de histórias
e passa a ser um agente que se dispõe a buscar a verdade, da qual somente ele
tem as pistas para encontrar – a resistência em comunicar o que lhe ocorre na
mente em determinados momentos. Thompson observa que a psicanálise não está tão
interessada em descobrir o que estava “enterrado” e “escondido” e sim no
processo de “desenterrá-lo”, acreditando, como Freud, que ao fazê-lo,
importantes modificações psíquicas ocorrem.
Essa forma de ver a associação livre leva a necessárias
discussões técnicas sobre como deve ser conduzido o processo analítico, se o
que importa é o insight que o analisando obtém com a integração dos conteúdos
inconsciente via associação livre ou são os processos intersubjetivos, a
empatia e experiência emocional com o analista, preconizados por algumas
correntes analíticas mais recentes. O autor ressalta que a promessa de sinceridade e
honestidade a ser feita pelo analisando deve ser discriminada de uma exigência
superegóica, e não ignora que em determinadas situações de vida o analisando
precisa exercer defensivamente a negação e o autoengano para sobreviver, sendo
a psicanálise a primeira a alertar para o perigo de confrontos precipitados com
a realidade. Numa linha diferente se inserem as considerações éticas
de autores baseados em Levinas, que insistem na responsabilidade frente ao Outro,
uma ética centrada na superação do narcisismo, como mostram Milmaniene[19]
e Peter Atterton[20].
Este último cita Braatoy, analista nórdico, que insiste que a conduta ética do
analista não está centrada na obtenção do sucesso terapêutico de sua empreitada
e sim na disposição em atender o analisando: “Por essa razão, a questão que um
futuro psicanalista deveria se fazer antes de se comprometer inteiramente com a
psicanálise para o resto de sua vida é: estou mesmo tão interessado em outras
pessoas inibidas a ponto de desejar trabalhar
sem sucesso com um analisando por horas,
semanas, meses, anos?”. (grifos do autor) 3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Para concluir, retomo a pergunta ingênua com a qual
começamos: a psicanálise é contra a ética? Agora podemos então dizer que é
evidente que não. Vimos a complexidade da questão na medida em que o que é mais
desejado – cujo modelo é o incesto com a mãe – é o mais proibido, um Bem que se
transforma num Mal em função da Lei. Mesmo assim, a tarefa da psicanálise é
tornar consciente este desejo para o analisando, o que não é o mesmo que
liberá-lo para a franca atuação e realização no mundo externo. Ao integrar em
seu psiquismo tais desejos maus, o
sujeito tem mais recursos para lidar com eles, cabendo-lhe posteriormente a
escolha de realizá-los ou não, levando em conta o princípio da realidade. Um
aspecto importante desse processo é que, na medida em que reconhece em si mesmo
tais desejos, deixa ele de projetá-los defensivamente no outro, fato de grande
repercussão no laço social. A aparente contradição entre tornar conscientes os
desejos reprimidos e não os liberar para a ação fica bem mostrado em O mal-estar na civilização. Ali diz Freud que para tornar possível a vida
em comum é imprescindível a repressão dos impulsos sexuais e agressivos, caso
contrário se estabeleceria um estado de luta permanente de todos contra todos,
levando a humanidade à extinção. É exatamente este o mal-estar a que Freud se refere - o ter consciência dos desejos
sexuais e agressivos e o ter que contê-los, por saber que é impossível
realizá-los. Uma ética da sobrevivência.
Mostrar a existência destes desejos proibidos significa
que a psicanálise é indiferente ao Bem e ao Mal, trata os dois da mesma
forma? Significa que a psicanálise
despreza a própria ética como uma mera formação reativa? Como vimos, a psicanálise não é indiferente ao Bem e ao
Mal, não os confunde, reconhece perfeitamente a Lei que os discrimina. Mas, ao
contrário da ética convencional, a psicanálise não tem qualquer papel normativo
ou moralizante. Seu objetivo é fazer com que o sujeito agente daqueles
comportamentos bons ou maus possa entender as motivações secretas inconscientes
que o levaram a realizá-los. É essa sua ética específica. O Bem perseguido pela psicanálise é fazer o sujeito
reconhecer em si mesmo uma parte de seu psiquismo até então negada, reprimida,
impossibilitada de se expressar exatamente por abrigar ideias e sentimentos que
não obedecem aos padrões éticos, alcançando com isso sua verdade interior,
fazendo-o reencontrar seu próprio desejo.
A psicanalise visa fazer cada um encontrar seu próprio
desejo, o desentranhá-lo da alienação no Outro, seja este Outro a mãe, o pai
ou, mais remotamente, o passado familiar com suas histórias cheias de
vergonhas, humilhações e segredos, transmitidas pelos mecanismos
transgeracionais, essa é a tarefa ética que temos realizado em nosso trabalho
com nossos analisandos individuais ou com famílias. Nesse sentido, o trabalho
do analista é o contrário daquele realizado pelo coacher, profissional que, sintomaticamente, tem tido grande
procura em nossos tempos. Enquanto o psicanalista procura ajudar o analisando a
encontrar sua própria subjetividade perdida no desejo do Outro, de forma
pragmática, o coacher procura fazer
seu cliente atingir seus objetivos, adequando-o ao que o Outro espera dele. Por
exemplo, treinando-o para atender às expectativas do empregador e com isso
parecer o melhor candidato a uma vaga de trabalho. Concluo com um outro aspecto da questão. A clínica
psicanalítica nos mostra que todos os atos maus condenados pela ética podem ser
referidos à persistência de traços mais arcaicos presentes na constituição do
sujeito. Tal como na psicose, tais atos estão ligados ao narcisismo onipotente,
que nega o Outro e o princípio da realidade. Isso provoca uma outra reviravolta
na questão ética. Reik, apoiado em Freud, defende em Le besoin d’avouer (A necessidade da confissão) a ideia de que, no
futuro, o Mal será tratado como uma
doença, o que levará ao desaparecimento do castigo e da punição, substituídos
por tratamento. Ou seja, seria a ética substituída por uma terapêutica?
Comentando este texto, diz Derrida: “Isso acontecerá quando a humanidade tiver
compreendido, como Freud e a partir de Freud, que o sentimento de culpa
inconsciente precede o crime. Uma confissão psicanalítica geral terá então
substituído o direito penal”[21].
Referências
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