Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Maio de 2017 - Vol.22 - Nº 5 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA FILOSOFIA DA PSIQUIATRIA. III – O FUTURO DA PSICOPATOLOGIA
Fernando Portela Câmara, MD, PhD Resumo. A dicotomia atual entre psiquiatria científica, empírica, e psiquiatria categórica, não empírica, talvez possa confluir em uma nova psiquiatria. Isto implicaria na formulação de uma psicopatologia funcional, que abrangeria essas questões em um mesmo fundamento? Sem dúvida, não é possível existir uma psiquiatria sem uma estrutura psicopatológica. Este artigo é a parte final de uma série de três. Palavras-chaves:
medicina translacional, diagnóstico dimensional, marcadores genéticos, endofenótipos, psicopatologia funcional. (Não há conflito de
interesse e nem fontes de financiamento para este artigo.) Os
DSM I e II apareceram respectivamente nos anos
1952 e 1968, e eram então fortemente influenciados pela psicodinâmica
freudiana, portanto, de fundamentação psicanalítica. Essa classificação era
claramente deficitária e improdutiva, pois não levava em consideração a
estrutura dos sintomas, perdendo-se em considerações metafísicas sobre
sintomatologia como um efeito de conflitos internos da personalidade,
estagnando a psiquiatria por um bom tempo (Câmara e Camara,
2017a, 2017b). Essa fase da psiquiatria lembra o estágio medieval da alquimia,
precursora da química, que apesar de conhecer a balança não a usava para
quantificar suas experiências, uma vez que era tida como instrumento de
ourives, assim como não desenvolveu métodos adequados para quantificar a
temperatura, tão importante em experimentos químicos, preferindo estimá-la
qualitativamente e de forma ocasional (Koyré, s/d).
Quando as coisas mudaram para um maior controle ao pesar, contar e medir, a
alquimia progrediu rapidamente do estagio metafísico para o científico,
nascendo a química. A partir do DSM-III-R
surgiu a necessidade de disciplinar a psiquiatria como
ramo da medicina, na qual as doenças não têm marcadores biológicos para caracterizá-las
com base em uma medida de um ou mais fatores específicos. Optou-se pelo método
clínico de organizar sintomas em categorias, iniciado por Emil Kraepelin ao dividir as psicoses em esquizofrenias e doença
maníaco-depressiva. O atual DSM-5 aduziu a este método o diagnóstico
dimensional, na tentativa de satisfazer as expectativas dos que defendem a
quantificação de sintomas (Camara e Camara, 2017a, 2017b), estabelecendo o conceito de
espectros, que enfeixam diferentes diagnósticos discernisses quantitativamente
segundo a contribuição de fatores de risco. Desse modo retornou à cena o diagnóstico
dimensional (isto é, por quantificação) dentro de um novo marco conceitual (Camara e Camara, 2017a, 2017b). Seja como for, as
classificações psiquiátricas são constructos baseados em premissas de limites
imprecisos. Entretanto, a abordagem neo-kraepeliniana não fez a psiquiatria progredir muito. Este vazio foi preenchido pela institucionalização de uma nova abordagem em medicina conhecida como medicina translacional, que surgiu de um programa de integração entre a clínica e a pesquisa básica desenvolvida nos laboratórios das universidades e da indústria. O termo “translacional” refere-se a toda pesquisa que tem seu início na ciência básica e sua conclusão na aplicação clínica do conhecimento apreendido. Por exemplo, quando a caracterização de uma determinada proteína presente em um canal iônico de membrana celular leva ao desenvolvimento de um medicamento para um determinado transtorno mental. Tradicionalmente, a pesquisa básica, desenvolvida em laboratórios, e pesquisa clínica, eram desconectadas, caminhando cada qual por si mesma sem o conhecimento uma da outra. Do esforço de “traduzir” as descobertas dos laboratórios dos grandes centros de pesquisa básica em aplicações práticas para a clínica médica fez surgir um novo marco conceitual denominado “medicina translacional”. O DSM-5 mostrou-se
sensível a essas demandas e procurou se organizar em uma perspectiva que aceita
os resultados da psiquiatria translacional – que se desenvolve em um programa
próprio, paralelo ao DSM-5 – se as evidencias forem suficientemente robustas
para pressionar uma revisão. A necessidade
de uma psiquiatria objetiva A heterogeneidade e a
baixa confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico tradicional e o moderno e
crescente impacto da neurociência em psiquiatria vêm forçando a comunidade de
psiquiatras a adotar a ideia de se usar medidas neurobiológicas como novos
critérios de diagnóstico. Existe uma crescente literatura sobre esta questão
com ênfase especial nos endofenótipos e sua condição
de elemento intermediário entre suscetibilidade genética e transtorno mental. Isto
nos leva a questionar se os achados neurocientíficos nos grandes transtornos
psiquiátricos são suficientes para servirem de critérios substitutos para as
categorias diagnósticas atualmente em uso; ou se devemos abandonar as
categorias neo-kraepelinianas e substituí-la por um
modelo dimensional, abordagem, aliás, que o DSM-5 incorporou parcialmente. Em
suma, os aspectos não empíricos das classificações psiquiátricas correntes não são
científicos e assim deveriam ser substituídos por dados neurocientíficos e
biológicos objetivos? Desde 2010, o Instituto
Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH) vem financiando cada vez
mais estudos que procuram marcadores biológicos ou alterações fisiológicas
quando alguém mostra certos sintomas psiquiátricos, independentemente do seu
diagnóstico psiquiátrico. Por exemplo, Nikulesku e
sua equipe (Nikulesku et al., 2015) produziram um teste que combina um
exame de sangue e um teste cognitivo para predizer com alto grau de precisão o
risco positivo de suicídio em pacientes sob tratamento psiquiátrico. Além do
fato de isto servir para selecionar positivamente pacientes em risco de
suicídio, pode, dentre outras coisas, ajudar o
psiquiatra a decidir numa emergência se uma tentativa de suicídio seria decorrente
de real impulso de uma ideação suicida ou não, ou uma outra aplicação forense.
O exemplo serve para enfatizar o valor das pesquisas em busca de marcadores ou endofenótipos para doenças mentais (Gottesman e Gould, 2003). Essa abordagem empírica
das doenças mentais atualmente em curso assinala um afastamento da psiquiatria
baseada na formulação de categorias diagnósticas definidas pelo Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Associação Americana de
Psiquiatria) e pela Classificação Internacional de Doenças (Organização Mundial
de Saúde), sistemas que têm sido criticados por confiar na avaliação subjetiva
do psiquiatra. Enquanto a mortalidade
ligada a condições fisiológicas como as cardiopatias tem caído, as taxas de
suicídio atingiram o maior nível de todos os tempos em vários países do mundo,
como os EUA, Reino Unido, Japão, Canadá, Brasil e outros. A psiquiatria atual
busca se beneficiar dos avanços biológicos e neurocientíficos, da mesma forma
que o resto da medicina já o faz, e é por isso que instituições líderes na
pesquisa médica, como o NIMH mudaram sua abordagem em relação à psiquiatria
criando o programa “Research Domain
Criteria”, que prioriza pesquisas de detecção
objetiva das doenças mentais mais prevalentes por meio de marcadores tais como
EEG, neuroimagem, testes cognitivos, monitoramento da
expressão gênica entre outros. Isto tem atraído críticas, mas a ciência
progride e em breve a psiquiatria atingirá um ponto de mudança, e é provável
que as categorias diagnósticas venham a sofrer algumas profundas mudanças. Entretanto,
no estado atual da arte, os dados neurobiológicos existentes não são ainda
considerados suficientes para validar uma abordagem nosológica
nova e válida, sendo ainda prematuro abandonar a dicotomia kraepeliniana
enquanto não houver uma alternativa confiável (Gaebel
e Zielasek, 2008; Moeller,
2008). Diante desses fatos
pergunta-se se a psicopatologia pode ainda desempenhar um papel central no
diagnóstico psiquiátrico, agora que temos uma ferramenta preciosa como os endofenótipos. A real possibilidade de testes genéticos de
baixo custo para diagnosticar diferentes tipos de transtornos dispensará a
tradicional abordagem psicopatológica? Além disso, diagnósticos operacionais (neuroimagens funcionais, testes neuropsicológicos) são
comparativamente demorados e, em comparação aos testes genéticos, imprecisos.
No entanto, diferentes argumentos sublinham o papel da psicopatologia no futuro
da pesquisa psiquiátrica e na terapia. A triagem e
classificação de participantes em estudos de associação genética só podem ser
feitas por critérios psicopatológicos. Embora suscetibilidades genéticas sejam atualmente
conhecidas para algumas importantes doenças psiquiátricas, a identificação dos
genes envolvidos é um empreendimento extremamente difícil dado a grande
dificuldade metodológica e a complexidade da arquitetura genética envolvida. A
correlação de genes e fenótipo não é precisa, uma vez que o diagnóstico é formulado
sobre um conjunto de diferentes sintomas psicopatológicos, e não sobre um
sintoma específico objetivo. Por exemplo, a busca de variantes genéticas
associadas ao comportamento agressivo só pode ser realizada por meio de avaliações
psicopatológicas (Rujescu et al., 2008), portanto subjetivas, e isto também se
aplica aos endofenótipos. Por fim, a existência de
uma variante gênica de suscetibilidade não necessariamente implica que o
transtorno mental esteja presente no indivíduo. Não podemos abandonar o
método clínico, ele consolidou a ciência da medicina e alicerça toda prática
médica. O médico é treinado no diagnóstico clínico, um método observacional e
qualitativo, complementado por testes de laboratório, e que ganha em precisão e
rapidez em relação aos testes neuropsicológicos atuais, em si mesmos limitados
e dependentes de confirmação clínica. Ao contrário, os testes genéticos ajudariam
a aumentar a precisão do diagnóstico clínico e epidemiológico, planejamento
racional de políticas de saúde, desenvolvimento de farmacoterapias
mais eficazes etc. Como será então o
futuro da psicopatologia? Desde os trabalhos de Kurt Schneider não houve
progresso substancial na psicopatologia descritiva, além da operacionalização
mais rigorosa da CID-10 e do DSM-5. Os dados psicopatológicos não foram
concebidos para serem objetivos e suficientemente confiáveis, e
por isso alguns adeptos mais radicais da psiquiatria neurocientífica
afirmam que a longo prazo não haverá mais espaço para
a psicopatologia, que lida apenas com fenômenos subjetivos e interpessoais. Eles
acreditam que a psicopatologia será substituída por critérios quantitativos
neurobiológicos (Churchland, 1986). Em contrapartida,
outros argumentam que a psicopatologia clínica irá se reconfigurar
numa psicopatologia funcional (van Praag, 1988), cujo enfoque será a correlação entre o
fenômeno psicopatológico e a disfunção neurobiológica. A busca de endofenótipos situa-se nesta linha (Gottesman
e Gould, 2003). De um modo geral, a
interface entre psiquiatria, neurociência e filosofia é muitas vezes denominada
de Neurofilosofia,
um campo atualmente muito ativo e altamente heterogêneo. O diálogo entre essas
disciplinas, que não se comunicavam anteriormente, ganhou impulso nos últimos
anos, e uma razão para isso é o fato de que ferramentas de pesquisa mais
recentes, como a RMN funcional e os testes neuropsicológicos de funções
executivas, experimentaram grande desenvolvimento. Os testes neuropsicológicos,
por exemplo, lidam hoje não apenas com tarefas cognitivas simples, mas também com
interação entre cognição e fenômenos afetivos, e mesmo com as noções de self, identidade e consciência (Frith,
1992; Kircher e David, 2003; Vogeley,
2007). O que procuramos nesta
série de artigos foi destacar a atualidade das discussões epistemológicas que
giram em torno da neurofilosofia, mais
especificamente aquelas que concernem aos desafios do diagnóstico psiquiátrico. Referências
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