Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Abril de 2017 - Vol.22 - Nº 4 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA FILOSOFIA DA PSIQUIATRIA. II – A CRISE DO DSM E O PARADIGMA TRANSLACIONAL
Fernando Portela Câmara, MD, PhD Resumo. Este artigo é continuação do anterior (Camara e Camara, 2017). Discute-se o impasse criado pela adoção da classificação politética do DSM (em certo grau seguido pela CID-10) e como isso levou às modificações inovadoras do DSM-5. A crise, contudo, busca uma solução e enquanto isso a resposta alternativa às dificuldades criadas pelo DSM alimenta o desenvolvimento do projeto Research Domain Criteria do NIMH. Ambas abordagens procuram uma via comum e isto poderá levar futuramente a uma revolução na psiquiatria Palavras-chaves:
psiquiatria, diagnóstico dimensional, espectro, DSM-5, Research
Domain Criteria. (Não há conflito de
interesse e nem fontes de financiamento para este artigo.) A psiquiatria está em
um momento de transformação com a revisão dos critérios diagnósticos até então
consagrados pelo DSM, que a partir de sua terceira edição de 1980, tornou-se
amplamente adotado e passou a ser a principal referência
da psiquiatria internacional, inclusive nos países que oficialmente adotam a
CID. O DSM-III, publicado em
1980 (na mesma época da publicação da CID-9), promoveu um a revolução na psiquiatria
ao substituir o diagnóstico sindrômico pelo
diagnóstico categórico. Isto decorreu da opção por uma classificação politética, em que as doenças passam a ser agora
classificadas em categorias cujos critérios têm iguais pesos, abandonam-se,
portanto, a noção de hierarquia de sintomas. Essas categorias não se
interpenetram, sendo como que caixas fechadas cada qual com um conteúdo
próprio. É uma classificação ateórica, isto é, não
leva em consideração dados oriundos da pesquisa básica (genética, metabolismo,
marcadores celulares, genômica, vias neurais envolvidas etc.). O sucesso dessa
classificação inibiu, inclusive, o patrocínio de pesquisas básicas em
psiquiatria pelas agências financiadoras, pois elas davam preferência àquelas
que favoreciam os diagnósticos padronizados do DSM. As primeiras duas
classificações americanas, DSM-I (1952) e DSM-II (1968), foram influenciadas
pela psicanálise, adotando-se a psicodinâmica freudiana. Os sintomas não eram
importantes, senão a causa, tida então como uma ameaça interna (libidinal) da personalidade que precisavas ser elucidada.
Entretanto, ficou evidente a confusão reinante que tais classificações geraram,
uma vez que pacientes com idênticos sintomas recebiam diagnósticos muito diferentes. Decidiu-se
adotar a postura europeia de basear-se em critérios empíricos fundados por Kraepelin, Bleuler e outros, e isso levou a uma radical revisão que culminou na
terceira edição do DSM, o DSM-III, que passou a adotar o diagnóstico
categórico. As revisões posteriores – DSM-III-R de 1986 e o DSM-IV de 1994 –
mantiveram o método categórico e a postura ateórica,
revisando-se algumas categorias, removendo algumas e adicionando outras como os
transtornos de ansiedade, os transtornos alimentares e os transtornos de personalidade. Entretanto, novos
problemas surgiram. O conceito rígido de categorias de doenças numa
classificação politéica que excluía hierarquia ou
“peso” de sintomas distanciava-se da prática cotidiana da psiquiatria. A maioria dos pacientes não preenchiam os critérios do
DSM-III e DSM-III-R; de fato, somente a quinta parte deles gabaritavam os
critérios diagnósticos, ao mesmo tempo em que se tornaram frequentes
as “comorbidades”, pois as categorias bem definidas e
únicas do novo DSM-III e DSM-III-R na prática tinham limites imprecisos entre
si, levando a instituir-se os duplos diagnósticos (“double-D”)
como forma de suprir provisoriamente a falha da classificação politética. Por outro lado, alguns transtornos diferentes
entre si respondiam igualmente aos mesmos tratamentos farmacológicos, e essa
questão tornou-se de difícil esclarecimento uma vez que a busca de marcadores biológicos
para distinguir patologias específicas havia fracassado. Nesse meio tempo confirmavam-se
que os transtornos psiquiátricos exibiam, em sua maioria, hereditariedade
poligênica (Kendler et al., 1985; Nicolson et al.,
2003), alguns evidenciando alterações genéticas associadas. O problema da baixa frequência dos diagnósticos categóricos e alta frequência das comorbidades gerou
uma divisão dentro da psiquiatria e as criticas se acumularam; era necessário
dimensionar, “pesar” o diagnóstico para chegar a um diagnóstico mais preciso (Mataix-Cols et al, 2005; Trull e Durret,
2005; Aragona, 2005; Lochner e Stin, 2006; Helzer et al, 2006). Foi esse
debate que pressionou a quinta revisão que finalmente apareceu em 2013. A
abordagem do grupo que organizou o DSM-5 se manteve ateórica,
mas passou a considerar que parte dos complexos sintomáticos
compartilhavam fatores de risco entre si e podiam ser colocados numa
categoria única, denominada espectro, que agrupavam diferentes síndromes discerníveis por meio
de pontuações em escalas específicas. Com isso, acreditou-se que esse modelo dimensional
se adaptaria melhor aos dados genéticos e fisiológicos que vinham se acumulando
(Brown e Barlow, 2005; Krueger
et al., 2005). O DSM-5 pretendeu assim revolucionar
a psiquiatria, mas seu sucesso foi modesto. Cabe dizer que o
diagnóstico dimensional não é uma criação do DSM-5 e nem é novo na psiquiatria,
p. ex., o diagnóstico de autismo compreende três critérios independentes
(perturbação da interação social, prejuízo da comunicação e interesses
restritos com padrões repetitivos de comportamento) que são quantificáveis em
escalas apropriadas; o diagnóstico de depressão pode ser quantificado em uma
escala (Beck); etc. O diagnóstico dimensional,
mediado pela aplicação de escalas quantitativas e seus respectivos tratamentos
estatísticos, e é uma tentativa de dar à psiquiatria o status de disciplina
científica. Entretanto, o diagnóstico dimensional não é um consenso entre os
psiquiatras que, como médicos, não estão acostumados a diagnosticar com auxílio
de escalas e métodos estatísticos, sendo condicionados ao método clínico, em
que os diagnósticos sindrômico e diferencial são de natureza
qualitativa e intuitiva. Também a ideia de espectro já estava prefigurada em Kraepelin e Bleuler, ao
estabelecerem diferenças nas formas de demência precoce (esquizofrenia) e da
doença maníaco-depressiva. Os critérios para o
diagnóstico dimensional do DSM-5 foram reconfigurados
e o conceito de espectro voltou a ser valorizado (Esbec
e Echeburúa, 2011), criando-se o espectro autista, o espectro obsessivo, o
espectro bipolar. O espectro autista, p. ex., engloba o próprio autismo, a
síndrome de Asperger, a perturbação global do
desenvolvimento e mesmo a personalidade esquizóide (o espectro recebe sua
designação da doença prototípica). Entretanto, a conceituação de espectro pelo
DSM-5 acabou por gerar muita controvérsia (Wing et al., 2011), pois inclui frequentemente transtornos tidos como independentes assim
como perturbações na esfera da personalidade (Cloninger,
2002; Esbec e Echeburúa, 2011; Trull e Durret, 2005).
Essas críticas fortaleceram o projeto alternativo lançado pelo National Institute of Mental Health (NIMH), em 2010, denominado Research Domain Criteria (RDoC)
cujo objetivo é melhorar a compreensão das variáveis dimensionais e identificar
circuito cerebrais envolvidos nos transtornos mentais (Insel,
2013). O projeto parte do principio que não devemos pensar em “categorias de
encaixe”, mas adotar por hipótese que as doenças mentais são resultados da desregulação de processos normais do cérebro (Adam, 2013). Nos últimos anos alguns
achados da epidemiologia genética e de estudos de imagens cerebrais apoiam a
ideia de que algumas categorias do DSM se superpõem. Por exemplo, os
transtornos de ansiedade e os transtornos afetivos compartilham uma resposta
hiperativa da amigdala para emoções negativas e aversão (Dichter
et al., 2012);
esquizofrênicos e portadores do estresse pós-traumático exibem uma atividade
incomum do córtex pré-frontal quando solicitados a realizar tarefas que
requerem manutenção da atenção (Dichter et al., 2012); quatro loci
cromossômicos específicos estão
associados a cinco tipos de transtornos: autismo, TDAH, transtorno
afetivo bipolar, depressão maior e esquizofrenia (Cross-disorder
group, 2013). São fatos que apóiam o ponto de vista
do RDoC. Por outro lado, ao mesmo tempo que essa abordagem – também denominada translacional – vem ganhando força, o
diagnóstico dimensional agora ganha adeptos entre os psiquiatras. O conceito provisório
de comorbidade favoreceu a ideia
de espectro, que já vinha sendo proposto por alguns grupos de psiquiatras, p.
ex., a radical proposta de Craddock e Owen (2010) de
colocar sob um mesmo espectro cinco patologias mentais: deficiência intelectual
– autismo – esquizofrenias – transtorno esquizoafetivo
– transtornos do humor bipolar, como ilustra a figura 1. A ideia foi finalmente
adotada pela força tarefa do DSM. Figura1.
Abordagem dimensional do diagnostico clinico. Vários
síndromes clínicos são colocados em um espectro com base no critério de
superposição de causas e sintomas (reproduzido de Adam,
2013).
O método introduzido
pelo DSM-5 utiliza escalas para dimensionar o diagnóstico espectral, mas essa abordagem
também encontrou resistência, pelo fato de que essas escalas não eram baseadas
em fortes evidências, com o agravante de não serem parte da rotina psiquiátrica
(Adam, 2013). Além disso, a dimensionalidade dos transtornos de personalidade
variava quando testadas em ensaios de campo por diferentes grupos de psiquiatras,
chegando a conclusões diferentes. Isto colocaria em perigo a credibilidade do
DSM-5, conforme alertou o chefe da força-tarefa do DSM-IV, que foi um dos mais
fortes críticos da introdução da dimensionalidade no DSM-5 (Frances, 2009). O diretor da
força-tarefa do DSM-5 admitiu que a introdução do diagnóstico dimensional ao
lado do categórico na nova edição não surtiu o impacto esperado (Kupfer e Regier, 2011), embora a American Psychiatric Association a considerasse como um avanço significativo. Categorias
anteriormente separadas fundiram-se num espectro único, como a fusão de abuso
de substâncias e dependência de substâncias no transtorno por uso de substâncias; a fusão do síndrome
de Asperger e condições relacionadas na categoria transtorno do espectro autista; fusão de
TOC com outros distúrbios semelhantes no espectro transtorno obsessivo-compulsivo e afins. Categorias se fundiram em
espectros com base em escalas que diferenciam quantitativamente a contribuição
de cada (daí a designação “dimensional”, de “medir”). Ainda que essas mudanças
não ajudem no tratamento, ao menos devem facilitar a identificação de vulnerabilidades
e fatores de risco (Kupfer e Regier,
2011). O projeto Research Domain Criteria emerge no centro das controvérsias sobre o DSM-5, como
uma iniciativa cujo objetivo é encontrar novas variáveis
dimensionais e pesar seu valor clínico. Tais informações poderiam
integrar futuramente uma nova versão do DSM. Esse esforço inspirou-se no
sucesso da medicina translacional como um paradigma para liberar a psiquiatria
das amarras ateóricas do DSM e coloca-las em bases
científicas, “traduzindo” achados da genética, circuitos neurais (conectômica), genômica, sociobiologia etc. (Insel, 2013).
Por exemplo, um dos projetos do RDoC
é a investigação da anedonia, a incapacidade de ter
motivação e sentir ter prazer em atividades física, sexual ou social, que se encontra-se
em muitas doenças mentais, incluindo depressão e esquizofrenia. Investiga-se a
hipótese de que citocinas inflamatórias estariam
evolvidas nesse estado mental (Adam, 2013). A possível identificação dos
circuitos cerebrais envolvidos e a expressão gênica associada podem levar à
criação de testes diagnósticos e verificar se tais pacientes têm um diagnóstico
DSM válido. A conseqüência de abordagens como esta poderá demonstrar que as categorias
do DSM não são o único critério para se testar a eficácia de um medicamento.
Certamente a abordagem do RDoC
tem o potencial de provocar uma reviravolta importante no diagnóstico
psiquiátrico e nas formulações de tratamento. Por outro lado, a força
tarefa do DSM considera o DSM-5 um documento vivo que se atualizará segundo os
progressos advindos das investigações básica e clínica.
Foi essa a razão para a mudança do sufixo “V” para “5”. O DSM-5 deve ser
lido como DSM-5.0, uma vez que na medida em que evidências se fortalecem (como
resultado do projeto RDoC/NIMH),
abordagens dimensionais poderão vir a ser incluídas em revisões on-line
DSM-5.1, DSM-5.2 etc. (Kupfer e Regier,
2011). O RDoC não segue a tendência kraepeliana
do DSM, mas o paradigma denominado de “medicina translacional”, seguindo as
diretrizes da revolução genética adotada pela oncologia, que passou a
classificar e tratar cânceres segundo o perfil genético de um tumor, e não mais
com foco na parte do corpo em o tumor cresce (Insel,
2013). Os psiquiatras que adotaram a abordagem translacional acreditam que os
riscos genéticos, as imagens funcionais do cérebro, e marcadores cognitivos
detectáveis em testes neuropsicológicos precisos, poderão aperfeiçoar o
diagnóstico psiquiátrico e o tratamento das doenças mentais. Talvez na próxima geração
vejamos uma nova psiquiatria fundamentada nesse paradigma. Referências
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