Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello |
Março de 2017 - Vol.22 - Nº 3 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA FILOSOFIA DA PSIQUIATRIA. I – DA PSICOLOGIA À NEUROCIÊNCIA
Fernando Portela Câmara, MD, PhD
Resumo. A transformação de psiquiatria atual, molar e categórica, em uma psiquiatria molecular e cientifica, integra esta especialidade médica à neurociência e, com base na abordagem translacional, que inclui a conectômica, espera-se uma significativa revisão das categorias diagnósticas, e um significativo avanço no tratamento e prognóstico das doenças mentais. O modelo biopsicossocial além de encarecer significativamente a assistência psiquiátrica e a saúde mental, não trouxe progressos mensuráveis para este importante setor da saúde pública. Nesta série de artigos, discutimos como a psiquiatria moderna evoluiu até o presente ponto de bifurcação entre o DSM-5 e o Research Domain Criteria do INMH. Palavras-chaves:
psiquiatria, neurociência, modelos, DSM-5, Research Domain Criteria. (Não há conflito de
interesse e nem fontes de financiamento para este artigo.) Tradicionalmente a
ciência aborda o individuo humano sob diferentes pontos de vista: anatômico,
fisiológico (biofísico, bioquímico), genético-evolutivo, sistêmico ou social. Embora
essas abordagens tenham proporcionado avanços na compreensão do humano, elas
conduzem a visões unilaterais mais ou menos independentes por falta de um marco
comum, unificador. A física moderna, que
trata das propriedades da matéria elementar, pese seu extraordinário
desenvolvimento, só conseguiu calcular a descrição quantum-mecânica do átomo de
hidrogênio, e a química, que trata das ligações moleculares e suas propriedades,
não conseguiu ainda a descrição quantum-mecânica da estrutura da água. A
biologia, especialmente a molecular e evolucionária, proporcionou um grande
avanço na compreensão dos organismos, sem necessariamente levar em consideração
as abordagens segundo os marcos da física e da química.
A psicologia tradicional ignorava a biologia e tratava o comportamento e
ideação com base em testes empíricos, mas a psicologia moderna já reconhece a
importância e necessidade da biologia nervosa. O pensamento sociológico
considera tradicionalmente o homem um animal social cuja consciência e
linguagem não somente é moldada pelo grupo como também influi sobre ele como
modificadores da vida social (tais como a consciência moral e a conduta), mas
sabemos hoje que a socialidade tem bases neurobiológicas.
Os vertebrados superiores exibem uma notável plasticidade social, ajustando
seus padrões de comportamento social em função de estados internos e externos. Há apenas três décadas
o cérebro era considerado apenas em suas funções motoras e sensoriais, sendo
objeto da clínica neurológica e da neurofisiologia. Comportamento, emoção,
percepção e ideação não eram objetos do estudo do cérebro, pertencendo a uma
instância vaga e abstrata denominada “mente”, tida como algo paralelo ao
cérebro, uma instância própria. Na década de 1990
iniciou-se a década do cérebro, graças a um consórcio de grandes grupos de
pesquisa e um considerável investimento governamental. A partir daí as palavras
neurociência, neurobiologia, neurociência cognitiva, conexionismo, conectoma tornaram-se populares e a mente deixou o reino
das celestiais abstrações para descer aos domínios da dinâmica da matéria
nervosa. Desse esforço moldou-se
a neurociência atual, que não é uma especialidade, mas um campo multidisciplinar
que abrande biofísicos, bioquímicos, psiquiatras, psicólogos, filósofos,
matemáticos, físicos, cientistas da computação e inteligência artificial,
educadores e outros com interesse comum no sistema nervoso. Enquanto uma
disciplina limitada apenas às especialidades da neurologia clínica e
fisiologia, o desenvolvimento da neurociência ficou restrito aos campos da
patologia e da fisiologia da célula nervosa, emergindo daí a psicologia
fisiológica, que começou a explorar as bases neurais das emoções, estados de
consciência e cognição, com base na experimentação sobre estruturas cerebrais.
A neurociência colocou diferentes campos da ciência para dialogarem entre si e
a partir daí se desencadeou um grande desenvolvimento, incluindo uma força-tarefa
para mapear todas as vias nervosas para construir o “conectoma”
ou mapa da comunicação entre os grupos de células nervosas, um esforço análogo
ao projeto genoma e proteoma. Já se evidencia que algumas doenças mentais estão
relacionadas a alterações processuais na informação que trafega em certas vias,
e alguns neurocientistas começam a denominar as
doenças mentais de “conectopatias”. Aos poucos se abandona
a abordagem do sistema nervoso como uma caixa preta, isto é, como algo cujo
mecanismo é inacessível e somente podemos inferir sobre ele observando seu
comportamento. A mística da “extrema complexidade inacessível do sistema
nervoso” é apenas uma abstração oriunda de fatos que desconhecemos sobre os
códigos neurais e a conectômica do cérebro. A muralha
entre organismo, comportamento e cognição já não é tão definida como antes, de
fato, seus limites estão cada vez mais imprecisos, e não está longe o dia em
que desaparecerá, pois esta muralha não foi construída pela natureza, mas tão
somente pela teologia e pela filosofia clássicas. A compreensão de algo
só acontece quando, com base nos dados que dispomos, formulamos um modelo daquilo que
estamos estudando e, este modelo explica satisfatoriamente as nossas
observações, e pode ainda ter algum poder preditivo. O melhor modelo será
aquele mais inclusivo e preciso, e o mais simples dentre os disponíveis. Um
modelo não uma verdade absoluta e está sujeito a modificações ou a
substituições segundo vão surgindo mais dados e adquirimos mais conhecimento. Nenhum
modelo é certo, apenas alguns são melhores que os outros, e assim avançamos. Há três tipos de
modelos atualmente dominantes. O primeiro é filosófico, platônico, considera o
ser humano um ente espiritual que atua em um corpo durante sua temporária
jornada em nosso planeta. Esse modelo foi demolido pela biologia evolucionária
e pela psicologia fisiológica, mas ainda permanece o modelo do neurofisiologista John Eccles e do filósofo Karl Popper que
considera o ser humano um Self atuando através do cérebro. Eles dividiram o plano da
existência em três mundos, renovando o platonismo numa perspectiva moderna.
Nesse modelo, o self
está para o cérebro assim como o pianista está para o piano, mas fica a pergiunta: sendo o pianista é uma força real que aciona o
mecanismo do piano para produzir som, como pode o self, entidade imaterial, abstrata,
imprimir uma força capaz de fazer neurônios dispararem de forma tal a gerar um
pensamento? Entendemos como uma sensação pode modificar a atividade cerebral,
sabemos sua origem e seu equivalente em energia e trabalho, mas o modelo de
Eccles-Popper, atuação de um self abstrato, não é cientificamente conceituável. Apesar
disso, este modelo ainda é aceito por uma corrente de neurocientistas,
talvez por não distinguirem perfeitamente ciência de filosofia, ou acreditarem
numa metafísica quântica que, a nosso ver, nada mais é que uma ilação
espiritual ressignificada numa linguagem emprestada
da física moderna. O segundo modelo é o
biopsicossocial, ainda hoje considerado um paradigma pelos formuladores de
políticas de saúde mental e pela psiquiatria. Ele deu origem a presente
abordagem das doenças mentais, eufemisticamente denominadas de “transtornos
mentais e do comportamento”, e integrou psiquiatria com políticas sociais,
encarecendo tremendamente os custos assistenciais e aumentando a burocracia,
sem produzirem avanços importantes sobre o entendimento da origem das doenças
mentais. Esse modelo favoreceu a prevalência das classificações internacionais
das doenças mentais, que as transformou em categorias, em detrimento do seu
estudo científico interdisciplinar. Os conhecimentos psiquiátricos tornaram-se molares,
levando à proliferação de um excessivo sociologismo
sobre uma questão tão séria como a doença mental, consequentemente
estimulando movimentos antipsiquiátricos
“revolucionários”. O principio que orienta esse modelo pode ser assim resumido:
“os primatas, por construção biológica e psíquica, podem sentir e sonhar, bem
como participar de relações sociais e assim modificar a atividade mental e
comportamento de outros animais”. Esse modelo negligenciou a abordagem neurocientifica das doenças mentais; psiquiatras e
psicólogos eram advertidos a não “neurologizarem” a
psique nas suas atividades clínico-terapêuticas, coisa que ainda é ouvida entre
os “psicólogos humanistas” e “antipsiquiatras”. O terceiro modelo, chamado
translacional, reúne diversas fronteiras da ciência moderna, como a biologia
molecular, a biologia evolucionária do desenvolvimento, a farmacologia
molecular, a genômica, a proteômica,
a inteligência artificial, a psicologia cognitiva, a conectômica.
Isto permite a construção de modelos eficientes e protocolos experimentais mais
eficientes, além de progredir o tratamento e prognóstico das doenças mentais,
descobrir alvos farmacológicos precisos, introduzir
técnicas biofísicas de estimulação e regulação cerebrais, desenvolver técnicas
de registro de imagens cerebrais funcionais em tempo real e com grande
precisão. A abordagem translacional devolve à psiquiatra o seu desenvolvimento
interrompido pela ideologia estéril e dispendiosa do modelo biopsicossocial. Voltaremos
a falar nisso no próximo artigo. Esse modelo traz
embutida em si a noção de nívies de integração. A
tabela 1 mostra a hierarquia de níveis de abordagem do ser humano, do geral
para o particular. Se consideramos o ser humano um sistema,
então podemos relacioná-lo nesses níveis, que formam supersistemas
e subsistemas. A filosofia nos ensina que sempre que entendemos um sistema,
imediatamente passamos a relacioná-lo a um subsistema, que é parte dele, e a um
supersistema, do qual ele faz parte, e com isso
geramos novos conhecimentos e saltos na compreensão. O modelo biopsicossocial,
ao se tornar ideológico, desprezou essa abordagem numa teoria “três em um” que
não é senão pura ideologia. Tabela 1. Os supersistemas e subsistemas de um ser humano (em ordem hierárquica
decrescente). Adaptado de Bunge (1989).
A tabela exibe uma
organização hierárquica em que o nível imediatamente acima e o imediatamente
abaixo do foco de estudo são, respectivamente, supersistemas
e subsistemas. Se abordamos um sistema excluindo-o de
todos os outros e examinando suas partes para compreender um detalhe, p. ex., a
estrutura molecular de um receptor implicado numa resposta nervosa, estamos fazendo
uma abordagem analítica. Se estudamos seus componentes para entender seu
funcionamento, estaremos abordando-o sinteticamente.
Ambas as abordagens têm limitações que restringem sua generalização; a
alternativa seria a abordagem holística,
que preconiza o estudo de um sistema como um todo partindo da premissa que ele
tem propriedades emergentes, mas essa abordagem é generalizadora,
não explica essas propriedades em termos de composição e estrutura, e assim pouco
avança. A abordagem multinível,
característica do modelo translacional, trata o sistema como elemento de um supersistema e formado de subsistemas. Isto estimula a
interação entre diferentes campos científicos, permite a formulação de boas
hipóteses, e com isso alcança um potencial de avanço real. Essa abordagem é
algumas vezes referida como “agarre o que puder”, pois depende de todo
conhecimento, tecnologia e dados disponíveis sobre um dado assunto. Esse modelo
permite avançar e encontrar novas soluções. Em um mundo onde o conhecimento
científico encontra-se excessivamente fragmentado, a integração multinível é uma estratégia capaz de unir compartimentos
tais como fisiologia nervosa, neurobiologia, psicologia, psiquiatria e filosofia.
Por exemplo, a área de Wernicke pode ser
integrativamente abordada como uma rede de sinapses quimicamente peculiares, ao
mesmo tempo como uma rede cuja arquitetura permite computar códigos neurais em
linguagem articulada, um órgão de formação e compreensão da expressão
linguística, e como uma interface entre o individuo e o mundo em que ele vive e
transforma em compreensão e linguagem.
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