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Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Walmor J. Piccinini - Fundador: Giovanni Torello

 

Março de 2015 - Vol.20 - Nº 3

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

RACIOCINANDO COM CAUSALIDADE


A noção de causalidade é universal, e foi primeiramente proposta por Platão em seu diálogo Timeu e em algumas passagens de A República, e posteriormente categorizada por Aristóteles. Se um fenômeno decorre de outro, este é denominado causa daquele. Este princípio é imposto à natureza para que ela seja fisicamente aceitável e seja matematicamente descritível, e passa a ser chamado de “princípio da causalidade”, que pode assim ser enunciado: “as mesmas causas produzem os mesmos efeitos”. Toda explicação baseada no conhecimento do encadeamento de causas e efeitos é “mecanicista”, pois estabelece um “mecanismo”, um conjunto de conceitos lógicos interligados que possibilita a explicação. O princípio da causalidade fundamentou a Revolução Científica, culminação da Física (Mecânica) de Newton, e a partir daí redefiniu as ciências ditas exatas e influenciou as empíricas tais como a fisiologia, a sociologia, a psicologia, etc.

A medicina que emergiu no século XIX foi totalmente redefinida dentro do principio da causalidade. Toda doença tem uma causa, conceito que começou com a era da microbiologia, ao se identificar a causa das doenças infecciosas e epidemias, e generalizou-se com Virchow para toda patologia. Isso revolucionou o tratamento das doenças com a busca de novos medicamentos e a criação do método experimental para teste. Começou então a ascensão da Indústria Farmacêutica, cujo poder foi aos poucos se fortalecendo com a pesquisa científica, passando a dominar a medicina reestruturando seu currículo. Paralelamente, corria a discussão que questionava a causalidade e salientava o papel do terreno (condições gerais do organismo e interação com o ambiente) na gênese das doenças, liderada pelo fisiologista Claude Bernard. Essa discussão permaneceu marginal em medicina, mas conseguiu encaixar alguns conceitos importantes como o de estresse, homeostase e o papel do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal (W. Cannon), e a ideia de causalidade cambiante ou inespecífica, mas que foi atropelado pela ortodoxia quando se pergunta qual a causa do estresse?

A investigação cientifica está voltado para a causalidade dos fenômenos, e a medicina segue este paradigma.

Em epidemiologia clínica, há três formas de causalidade:

1.      Causa necessária e suficiente – é aquela que está presente sempre que algo ocorre, e este não acontece se ela não estiver presente. É, portanto, necessária para que o efeito ocorra, e somente ela é suficiente para tal. Por exemplo, a trissomia do cromossomo 21 é a causa necessária e suficiente para que a Síndrome de Down ocorra.

2.      Causa necessária, mas não suficiente – é aquela que se estiver ausente, o efeito não ocorre, mas se estiver presente, não implica que o efeito ocorra necessariamente. Um exemplo é a tuberculose. A presença da bactéria causadora (Mycobacterium tuberculosis) no pulmão não é suficiente para que a doença ocorra, pois fatores imunológicos podem impedir a instalação ou manifestação da doença.

3.      Fator de risco – é um fator cuja presença aumenta a chance de algo ocorrer, mas não pode ser implicado como causa, senão que aumenta a eficiência desta. Somente uma investigação detalhada e precisa decidirá se um fator de risco será considerado uma causa ou não, porém muitas vezes não é possível. Por exemplo, o fumo aumenta significativamente o risco de várias formas de câncer, mas não é provado ser a causa. Da mesma forma temos o fator de proteção, que é um fator que quando está minimamente presente numa população reduz de forma significativa o risco de uma doença.

 

Quando investigamos uma suposta causa é importante definir se ela está direta ou indiretamente ligada ao efeito produzido. Em outras palavras, se existe ou não variáveis intervenientes entre a causa e o efeito. Um relâmpago cai violentamente sobre uma árvore e a derruba, neste caso o relâmpago é causa direta da queda da árvore; o sujeito levou um tiro e isto causou uma grave hemorragia que não pode ser contida, a causa da morte foi a hemorragia (não se deve confundir a causa com o autor, este é o responsável pela morte).

Há situações em que a causa suposta não é verdadeira, e então falamos de causalidade espúria. Isto acontece quando a “causa” acontece após o efeito ter começado, ou então quando uma variável oculta confunde um efeito por causa. Estas são armadilhas que não raro podem iludir um investigador, especialmente quando a investigação é mal delineada ou conduzida com ideias preconcebidas (viés).

Ciência é um método de investigação da natureza, um método que investiga causas naturais por via do raciocínio embasado na observação e na experiência. Isto não está em oposição com filosofias ou religiões, pois é apenas um método de encontrar a explicação natural para os fenômenos. Vejamos um exemplo. No livro do Êxodo descreve-se que o Deus de Israel enviou 10 pragas sobre o Egito. Quando examinamos essas pragas fica claro que 9 delas são possivelmente naturais e encadeadas (a 10ª está descontextualizada por razões teológicas). Para os autores do Êxodo, a causa (indireta) das pragas foi Deus, intervindo através de Moisés, mas para os médicos do faraó eram causas naturais, pois já acontecera no Egito e eles tinham alguma ideia dos fatores desencadeantes. Para o epidemiologista, o Deus do Êxodo é a hipótese nula, ou seja, a afirmação de que o fenômeno observado deve-se ao acaso e não à uma causa especifica, cujo desafio é a única forma de negar ou aceitar uma hipótese alternativa. Desse modo, todo elemento sobrenatural desaparece da investigação científica, que está baseada no raciocínio logico. A fé é uma escolha pessoal e não interveniente no campo da observação. A Ciência é simplesmente um método para que o raciocínio siga por vias seguras e precisas fundamentadas no princípio de que o mundo natural é explicável por leis naturais. Ela não se ocupa de religião e nem pode, em razão do método, criticar ou validar religiões.

Investigação de causalidade

A investigação de uma causa é muito semelhante à investigação de um homicídio. O investigador começa selecionando os prováveis suspeitos e então começa a eliminar a maioria deles com bases em impedimentos, álibis, etc. Então a investigação segue três etapas: encontrar uma associação significativa entre causa suposta e efeito (motivo); demonstrar a existência de uma associação temporal (oportunidade); e eliminar todas as hipóteses alternativas (reduzir os suspeitos restantes a um só).

A primeira coisa a fazer é descobrir se os suspeitos tinham motivação suficiente para praticar o crime, isto é, busca-se uma associação plausível, embora isto não seja suficiente para identificar o autor (causa). Em epidemiologia precisamos provar que uma causa suspeita está presente na maioria das vezes em que o efeito ocorre, isto é, que a associação entre um e outro (correlação) é estatisticamente significativa. É importante recordar um dos princípios básicos da estatística: correlação não é causa. Para que uma causa seja firmada, é preciso que ela seja demonstrada através de experimentos bem delineados e repetidos por diferentes pesquisadores em diferentes situações.

Uma vez provada a associação, precisamos agora investigar se há uma relação temporal, pois, a causa suposta deve preceder o efeito ou estar presente quando ele ocorrer. No caso de um homicídio, o investigador precisa colocar o suspeito na cena do crime, isto é, demonstrar que ele estava próximo da vítima o suficiente para ter a oportunidade de praticar o crime no espaço de tempo em que este ocorreu. Mas isso não será suficiente para eliminar os suspeitos restantes: é preciso demonstrar que cada um deles não poderia ter praticado o crime com base na descoberta.

O que ocorre aqui nada mais é que provar uma hipótese convincente, isto é, que esteja acima de toda dúvida razoável. O que o investigador faz é construir um modelo, isto é, uma explicação razoavelmente aceitável que coloque o suspeito na cena do crime e explique todos os detalhes, ao mesmo tempo em que mostra a impossibilidade de os outros suspeitos estarem na cena. Tanto o epidemiologista quanto o detetive constroem modelos teóricos e os melhoram à medida que obtém provas e indícios. Uma vez provada uma associação e uma relação temporal, o terceiro passo é eliminar as hipóteses alternativas que se mostraram fracas ou contraditórias diante dos dados disponíveis. A investigação, portanto, é um processo hipotético-dedutivo, em que formulamos hipóteses (ou modelos) e testamos para selecionar a mais plausível. O princípio aqui consiste em reduzir as hipóteses à mais simples de todas, e que ao mesmo tempo explique tanto quanto ou melhor que qualquer outra alternativa (princípio da navalha de Occam).

Numa investigação de homicídio, o suspeito é julgado com provas e indícios e considerado culpado se a hipótese de autoria for aceita acima de toda dúvida razoável. Para provar a inocência do réu, um advogado deverá colocar razoavelmente outra pessoa na cena do crime, ou invalidar o modelo do investigador. Em outras palavras, falsear a teoria do crime. Tanto uma investigação científica quanto um julgamento criminal são, na verdade, discussões sobre validação de hipóteses. Tudo consiste em estabelecer uma explicação confiável que por si mesma elimine as alternativas. Um juiz não esteve presente na cena do crime que está julgando, portanto, ele só pode julgar em função das hipóteses e escolher aquela que melhor resistiu aos desafios durante o processo. O erro de julgamento não existe, pois, é o risco a que se está sujeito sempre que se elimina a hipótese nula.

O entendimento do raciocínio de causalidade é fundamental em toda pesquisa cientifica. Em especial, os peritos e psiquiatras forenses devem estar atentos às sutilezas do método hipotético-dedutivo e aos vieses que estão muito frequentemente sujeitos.

Erros, vieses e confusão

Erros e vieses são tidos por alguns autores como a mesma coisa. Preferimos separá-los em duas categorias distintas. Erro é uma variação aleatória ocasionalmente introduzida numa medida, enquanto viés é uma tendência que se repete em todas as medidas. Há vários tipos de vieses, sendo os mais importantes para nós os de aferição, memória e seleção de amostra (interna e externa).

O viés de aferição é eliminado usando-se um instrumento de medida corretamente aferido. O de amostragem é eliminado pelo rigor da seleção da amostra, que deve ser aleatorizada de acordo com a estrutura da população de dados. O viés de memória é aquele gerado quando a pesquisa de causalidade está baseada em relatos ou dados históricos, geralmente pouco confiáveis (extremamente tendenciosos por razões diversas), especialmente quando interpretações estão embutidas nos documentos investigados. Neste caso, devemos procurar confrontar os relatos com outras fontes independentes, procurar evidências e estabelecer hipóteses para sair da pura especulação. Se os fatos investigados encontram semelhanças com fatos conhecidos podemos estabelecer pontos de semelhanças e diferenças, e melhorar nossa hipótese, tendo sempre em mente que estamos lidando com hipóteses cuja demonstração na maioria das vezes não é possível (algumas vezes é possível fazer inferência usando modelos estocásticos, ou seja, atribuindo probabilidades às hipóteses e analisando-as dentro de estruturas lógicas).

Há também as variáveis externas que podem nos induzir a conclusões falsas, p. ex., atribuir a causa a uma variável quando na verdade deveria ser atribuída a outra (variável oculta). Isto também acontece quando uma variável intensifica o efeito de uma variável causal e pode ser confundida com esta (sinergismo), ou a presença de fatores modificadores que diminuem ou aumentam o efeito de uma variável. Este aspecto será futuramente objeto de comentário nosso, uma vez que pode estar presente no tratamento farmacológico psiquiátrico.


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