Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Julho de 2012 - Vol.17 - Nº 7 História da Psiquiatria BIOGRAFIA DE MARIO ALVAREZ MARTINS (1908-1981) Walmor J. Piccinini Sumário Mario Alvarez Martins, nascido em 1908 em Livramento, RS e
falecido Formou-se pela Faculdade de Medicina da UFRGS em 1932. Em 1938 tornou-se psiquiatra do Hospital São Pedro através de concurso público. Em 1945 foi para Buenos Aires com Bolsa da Fundação Francisco Munhoz e com o salário de psiquiatra do Estado do Rio Grande do Sul. Foi analisado por Angel Garma. Iniciou seu trabalho analítico Foi um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Foi Presidente da SPPA e da Associação Brasileira de Psicanálise. A Fundação Universitária Mario Martins (http://www.polbr.med.br/ano12/wal0512.php ). Foi nomeada em sua homenagem. Principais produções científicas: 1. “Contribuição ao Estudo Psicanalítico da Epilepsia”. 2. “Aspectos
Técnicos no Tratamento Psicanalítico da Depressão”. 3.
“Mania e Onipotência” 4.
“Psicodinamismos e Fantasias Inconscientes da Menstruação e da Ovulação”. 5.
“Transferência, Acting-out e Situações Traumáticas Primitivas”. 6.
Fatores Psicológicos nos Mecanismos de Ação Terapêutica do Eletrochoque”. Durante
quinze anos realizou estudos antropológicos, mas, devido a sua doença que o
levou a morte, não pode elaborar e publicar. Dados
Biográficos. Mário Álvarez Martins foi uma pessoa muito
discreta, foram poucas pessoas que gozaram da sua intimidade. Cultivou a
neutralidade analítica de maneira muito particular e, como seus analisandos,
eram pessoas que frequentavam as atividades das sociedades científicas e
universitárias, ele se manteve sempre à distância de um convívio social mais
intenso. A pessoa com quem tinha a mais
antiga e afetuosa ligação era Cyro Martins (http://www.polbr.med.br/ano08/wal0708.php). Na inauguração da Fundação
Universitária que recebeu o nome de Mário Martins, Cyro contou algumas
passagens da vida de ambos. Achei que seria interessante reproduzi-la aqui: MÁRIO MARTINS - PSICOTERAPEUTA A
iniciativa do grupo de psiquiatras e psicanalistas, amigos e discípulos do
Prof. David Zimmermann, de dar o nome de Mário Martins a esta instituição não
poderia ser mais meritória do que o é. Mário Martins foi realmente uma
personalidade singular no nosso meio. Dono de um talento literário inequívoco
preferiu enveredar por outros caminhos que não a literatura, para preencher
suas valências intelectuais. Vivendo num meio sem tradição cultural, onde
imperava o autodidatismo, foi, sem pressa, desbravando as dificuldades, que não
foram poucas, até chegar à psicanálise, já na casa dos trinta e seis anos, o
que constituiu uma proeza, se considerarmos as vicissitudes de meio e tempo. Posso
afiançar que convivemos durante aproximadamente meio século. Repartimos muitas
vezes as nossas próprias fraquezas. Ele sempre muito lúcido, eu mais inquieto.
De maneira que quem tirava habitualmente mais proveito daquela intimidade era
eu. Conhecemo-nos
na Rua da Praia, na época em que a Rua da Praia era passarela da beleza e do
talento rio-grandenses. Não somente circulavam nas calçadas, olhando-se nas
vitrines, as jovens bonitas e airosas, como também, entre os pedestres que
andavam pra lá e pra cá, pelo meio da rua, pisando os caprichados
paralelepípedos que o calçadão mais tarde esconderia, passeavam os políticos
prestigiosos da época, os intelectuais
consagrados e os jovens promissores. Penso que, sem falsa modéstia, entre
estes, estávamos nós, Mário, Lino de Mello e Silva, Carlos Tettamanzi, Mário
Quintana e eu. Deixo, naturalmente, de referir inúmeros outros. O que nos
aproximou, inicialmente, foi à inquietação literária. Estávamos vivendo ainda a
ressaca da Semana de Arte Moderna, que teve seu epicentro Para
retratar o estilo da nossa convivência daquele período de pobreza e relaxe, eu
poderia escolher diversos flashs, porém este sintetiza todos. Ele costumava
troçar comigo, diante dos companheiros, dizendo que, quando me conheceu, eu
tinha dezessete anos, lia Haeckel e batia no peito jurando que descendia de
macaco. Nesses momentos ele era jovial. Mas
chegou a hora em que o “Tempo da Flor”, para usar a expressão irônica e
sentimental de Augusto Meyer, começou a passar. E tivemos de encarar com
seriedade que já era vez de deixarmos de ser estudantes de preparatórios e nos
decidirmos a enfrentar o vestibular, que, na época, não era esse bicho-papão de
hoje. Soara, portanto, a hora da famosa pergunta, bastante perturbadora: “E
agora, José?” Optamos pela medicina, apesar de que a praxe era os estudantes
com inclinações literárias entrarem para a Faculdade de Direito. Não obstante
isso, nós, o Mário, o Lino de Mello e Silva e eu, escolhemos a Medicina até com
relativo entusiasmo. Acontece que, lá pelos anos de 1926-27, começaram a
aparecer nas livrarias de Porto Alegre, livros sobre psicanálise, escritos
alguns pelos pioneiros da nova ciência no Brasil. O entusiasmo dos autores
supria, em parte, suas “falhas técnicas”. E junto com esses livros vieram
também os primeiros volumes da tradução de Lopes Ballesteros. De sorte que, em
seguida, nos antenamos nessa direção, o Mário e o Lino bem mais do que eu, pois
já me encontrava bastante comprometido com a literatura. Mas fui indo na garupa
deles, aprendendo por tabela algumas noções básicas de psicanálise. Em consequência,
ainda primeiro-anistas, já andávamos rondando os muros do São Pedro e, como
furões, íamos assistir lá as aulas de psiquiatria do sexto ano, ministradas
pelos professores Luiz Guedes, catedrático e Raul Bittencourt, livre docente.
Ambos tinham o dom da palavra e pertenciam ao gênero do professor sedutor, mas
que puxavam brasa para a sua disciplina. A frequência de sextanistas era
escassa, de sorte que a presença dos três mosqueteiros, não armados de
mosquetes, mas do mais vivo interesse pela psiquiatria, um interesse em estado
nascente, era bem-vinda. Lembro-me, com uma nitidez extraordinária, de uma aula
de Raul Bittencourt sobre mania. Depois de discorrer acerca da tipologia de
Krestschmer de um modo geral, entrou em particularidades, abordando o tipo
corporal pícnico e o correspondente caráter ciclotímico. Em seguida apresentou
o caso clínico. Tratava-se de uma mulher de meia-idade, retaca, tronco
arredondado e braços curtos, verborreica e destemida. “E se aparecesse um leão
na sua frente, o que a senhora faria?” “Eu matava o leão!” — foi a sua resposta
incisiva. Nunca esquecemos esse episódio, tão ilustrativo, do quadro clínico em
si e da importância da apresentação de casos no ensino médico. E, um
dia, terminamos o curso de Medicina, isto é, cumprimos com as formalidades
exigidas para receber o diploma e sair pelo mundo autorizados a exercer a
profissão. Socialmente, a nossa turma foi considerada a de maior destaque, até
então, na história da Faculdade. Quanto ao preparo, era lamentável. Os mais
responsáveis estavam apavorados ante a perspectiva do desconhecido. Os frívolos
acreditavam no poder mágico do canudo. Não obstante, dominava o entusiasmo da
formatura. E sobreveio a clássica disputa entre a casaca e o linho branco.
Houve pleito renhido. Venceu o linho branco. Para o Mário e pra mim pouco
importava a preferência da turma por este ou aquele trajo para a cerimônia
solene. Total, contávamos mesmo era com o nosso terninho puído, já cansado de
guerra. Assim, não por modéstia nem por birra contra os colegas, com os quais
nos dávamos muito bem, mas por absoluta necessidade, colamos grau na Secretaria
da Faculdade. Presentes: os dois formandos e o diretor, o velho Sarmento. Acho
que o juramento hipocrático foi rabonado, porque o ato foi brevíssimo. Descemos
a escadaria da Faculdade, caminhamos cem metros juntos, nos despedimos e cada
um agarrou o seu rumo. Eu fui para a minha pensão no Bom Fim. Ele tomou o bonde
para ir almoçar na casa de uns parentes. Nos próximos dias viajaríamos para a
fronteira, nosso pago de origem. Mário foi para Santana do Livramento, sua
terra natal e onde ainda residia a sua família. O meu destino era São João
Batista do Quaraí. O que houve de comum entre nós, num curto espaço de tempo,
foram fatos extremamente chocantes para jovens que apenas saíam da Faculdade.
Ele perdeu a mãe e eu perdi meu pai. Eu fiquei três anos e o Mário quatro, no
interior. Durante todo esse tempo, porém, não tirávamos o olho da estrada. Eu
saí antes, graças ao auxílio de amigos. Fui para o Rio de Janeiro estudar
neurologia, já que psiquiatria, que era o que realmente me interessava,
praticamente não existia no Brasil e na América Latina. Isso ocorreu no ano de
1937, ano do golpe estadonovista. Pois bem, como diz o refrão, o mal de muitos
sempre traz o bem para uns poucos. Nós, Mário e eu, fomos contemplados com o
bafejo da sorte, no meio da desgraça nacional. O novo regime, com seus
interventores nos Estados, resolveu varrer caprichadamente a casa, como
vassoura nova, abrindo concursos para os cargos públicos, entre eles, para
sanitaristas e psiquiatras no Hospital São Pedro. Mário e eu resolvemos topar a
parada. O meu amigo, porém, tímido e modesto, não se sentia animado a enfrentar
o concurso para psiquiatra. Pretendia candidatar-se a sanitarista. Foi preciso
muita decisão de minha parte para demovê-lo daquela atitude que estava e não
estava em desacordo com a seriedade do seu caráter. Muito exigente consigo
mesmo e com os outros, repugnava-lhe preparar-se às pressas para um concurso de
tal monta, sem ter de antemão uma base razoável de conhecimento sobre a
matéria. Custei a abrir uma brecha na sua autocrítica exagerada. Por fim,
decidiu-se e começamos a estudar. Passávamos as manhãs no São Pedro e de tarde frequentávamos
a enfermaria de neurologia da Santa Casa. Lembrem-se de que, naquele tempo, a
especialidade chamava-se neuropsiquiatria. O concurso foi puxado, suamos o
topete. Realizou-se em estilo de docência. A banca compunha-se dos renomados
professores Antônio Saint Pastous, diretor da Faculdade de Medicina, pelo
professor Fábio de Castro, catedrático de neurologia, e pelo muito estimado
professor Celestino Prunes, titular da cadeira de Medicina Legal. Pois vejam
só, foi justamente Celestino Prunes que, por pouco, não nos emborca o barco.
Estávamos preparados para um exame de clínica psiquiátrica, conforme a
orientação dos nossos técnicos, Jacinto Godoy e Décio Souza. De sorte que,
quando o secretário da banca leu a lista dos pontos a serem sorteados para a
prova escrita, nós, os candidatos — Mário, Luiz Ciúla, Victor de Brito Velho e
eu — ficamos estarrecidos, pois Celestino incluíra pelo menos meia dúzia de
pontos de psiquiatria forense. Nós nos julgamos perdidos e de certa forma traídos,
depois de muito andar e no momento em que víamos a luz a boca do túnel, fomos
recebidos pelos braços do grande inquisidor. Só que, em vez da frase do conto
célebre — eu sabia que não me abandonarias! — poderiam ter nos dito: Nós
sabíamos que vocês não passariam! O
pânico durou talvez uns trinta segundos, até o momento em que eu, letra C,
tirei o ponto. O professor Saint Pastous olhou para mim e perguntou: o senhor
joga na loteria? Não soube o que
responder. Certamente ainda atarantado pelo susto que me acometera. Com efeito,
naqueles segundos, tal qual como dizem que acontece com os afogados que, no
momento crucial do afogamento recordam toda sua vida, eu me lembrei que, meses
atrás fora despedido, na minha cidade, com charanga, churrasco e discurso porque
vinha de muda para a capital, com pretensões a enfrentar aquele concurso. E
agora, José? Mas o professor Saint Pastous abreviou o nosso sofrimento, lendo o
que estava escrito no papelzinho: psicose maníaco-depressiva. Seguiu-se, no dia
seguinte, a prova clínica no São Pedro e, na noite do terceiro dia, uma aula no
salão nobre da Faculdade. Como veem, o Estado Novo estava querendo fazer média
à nossa custa. Li, mais de uma vez, que, para Carlos Drummond de Andrade, cinco
pessoas já eram uma multidão. O mesmo acontecia com o nosso Mário. Portanto,
ante a contingência de ser forçado a enfrentar aquele salão cheio de gente, ele
teria pensado, mais de uma vez, com saudades do silêncio e do recolhimento de
Boa Esperança, de onde viera. Na hora, Mário gaguejou, tropeçou, mas foi em
frente e venceu. Vencemos. Aprovados
em concurso público e nomeados psiquiatras do Hospital São Pedro, os quatro,
porque havia vagas para todos, estávamos oficialmente autorizados a abrir
consultório na Rua da Praia, quiçá na Galeria Chaves, e oferecer à população
nossos préstimos como especialistas em doenças mentais. Eu, mais ousado, fui o
primeiro a me estabelecer. De vez em quando me caía algum psicótico para
internar. Consultas de queixosos, raríssimas. Os clínicos abocanhavam todos. O
Mário, parcimonioso de temperamento como era, resolveu esperar, por mais que eu
lhe oferecesse o consultório. Esperar o quê? Não sabíamos. Na verdade, com os
poucos neuróticos que nos apareciam, em geral graves, que os clínicos, cansados
de tanto apanhar, nos encaminhavam, não sabíamos o que fazer. Convencer um
fóbico, pela persuasão, de que ele deveria enfrentar sem temor o escuro, os
recintos fechados ou a amplitude das praças, a um obsessivo de que ele não
precisava voltar vinte vezes para verificar se chaveara bem a porta, ou um
paranóide de que era pura desconfiança sua achar que o vizinho o espiava dia e
noite, seria tarefa impossível, equivalente ao suplício de Sísifo. Receitar
remédios? Que remédios? Sobre isso conversávamos muito no nosso consultório,
depois que consegui que se solidarizasse comigo e fosse encarar de perto aquela
realidade. Enquanto os tempos não mudavam, íamos, como os demais, fazendo
insulinoterapia e aplicando eletrochoque nos pacientes do São Pedro e nos
psicóticos que baixávamos no Sanatório São José. Na
realidade, os tempos não mudariam, enquanto nós não mudássemos. Sobreveio, em
1942, uma prolongada doença neurológica do pai de Mário, que acabaria em óbito.
Mário sofreu, se desgastou, interrompeu suas leituras de Freud. Mas no inverno
de 1943, numa tarde sombria, dessas que tornam mais curtas as esperanças da
gente, nos apareceu no consultório um senhor argentino oferecendo a assinatura
da “Revista de Psicoanálisis”, flamante, e nos deixou os dois primeiros
números. No primeiro, em artigo bastante detalhado, Arnaldo Rascovsky expunha
para os psiquiatras da América Latina a possibilidade de formação psicanalítica
Anos
depois, muitos anos mais tarde, conversando com o mestre e amigo Garma, ele
declarou, numa atitude de franqueza e amizade, a propósito da primeira
entrevista do Mário com ele: “Me gusto el tipo y lo tomé”. Quando
me tocou a vez de seguir a mesma rota, encontrei Talvez
vocês ignorem, mas o Mário foi o primeiro psicanalista brasileiro a cumprir
todos os efes-e-erres da carreira. De
volta a Porto Alegre, reassume o seu cargo no Hospital São Pedro e inaugura, no
consultório particular, um atendimento revolucionário para o nosso meio, o
psicanalítico. No hospital, com uma prudência exemplar, sem jamais tentar
deslumbrar ninguém, ele foi impondo um enfoque mais moderno da psicose e do
psicótico. No consultório, analisava pacientes comuns e candidatos, porque, já
então compenetrado da sua condição de pioneiro, tinha em mira a fundação de um
núcleo psicanalítico Através
da análise, das supervisões, dos seminários e do que captavam os seus
observadores no São Pedro, ele foi transmitindo aos colegas mais jovens, ávidos
da nova ciência, um tipo de relação médico-paciente totalmente novo em
psiquiatria, inédito no nosso meio. Não
obstante a sua cautela, não lhe faltaram dardos e maus augúrios. Houve um
colega, dos mais inteligentes e preparados da velha guarda, que me fez o
seguinte comentário: o Mário diz que vai fazer só psicanálise, mas eu não dou
um ano para que ele esteja outra vez fazendo eletrochoque e insulina! Claro que
houve muitos outros episódios desse gênero, que eu já esqueci. Minha intenção é
trazer à tona alguns elementos valiosos para o processo histórico que lhe fará
justiça. Mas
esse foi o primeiro capítulo da sua obra de implantador da psicanálise A
luta a que me refiro diz respeito ao desgaste em energia, decisão e dinheiro
para conseguirmos, junto à Associação Psicanalítica Internacional, o nosso
reconhecimento, primeiro como Grupo de Estudos e depois como Sociedade. Essa autonomia era indispensável para, de
acordo com os cânones, podermos formar novos analistas. Inúmeras foram às
viagens a Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro, Santiago do Chile, e aos
Congressos Internacionais da Dinamarca e da Suécia. Era preciso aproveitar
essas oportunidades para falar com as cabeças, para chegar a eles pela mão dos
nossos padrinhos mais próximos, Garma, Pichón, Arnaldo, Kemper. Em todas essas
investidas, o Mário esteve sempre presente, capitaneando o grupo. Ágil nas
investidas e corajoso, demonstrando que não estava disposto a levar desaforo
pra casa, suas intervenções, incisivas e lógicas, de acordo com a sua maneira
de agir em todo o resto na vida, acabaram nos levando até lá, à dignidade de
Sociedade Psicanalítica. E se
ponderarmos a concludente convicção de Thomas Mann de que a psicanálise é um
dos pilares que sustentam os fundamentos do porvir e deverá contribuir na
construção do edifício de uma humanidade livre e sábia, então a nossa emoção
cresce por termos vivido aquele momento ideal. Convém
ainda lembrar a influência dos ensinamentos de Mário Martins na criação e na
orientação doutrinária do curso de psiquiatria Melanie Klein, que tão bons
psiquiatras têm dado ao Estado. E também o influxo do seu pensamento atingiu o
currículo da disciplina de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal. Mas a
grande obra de Mário Martins, maior do que tudo isso que já apontei e superior
aos seus seminários e aos seus escritos foi a que realizou, durante trinta
anos, para usarmos números redondos, no recolhimento do seu consultório de
analista. Atestam-no as figuras hoje em destaque na esfera psicanalítica
brasileira e continental que passaram pelo seu divã. Meditem
vocês, agora, um segundo, sobre aquele flash da prova escrita do nosso concurso
de psiquiatria, acontecido há cinquenta anos. Imaginem só se os meus sortudos
dedos houvessem sofrido uma vacilação e se deslocado milímetros para a esquerda
ou para a direita. Poderia ter acontecido o pior, e hoje não estaríamos aqui
homenageando a memória do nosso amigo e mestre! Concentrando a evocação sobre
determinados aspectos de sua personalidade, vendo-o longe, no quarto de
estudante, na Rua da Praia, no hall da Faculdade, e depois, já casado, pai, ou
presidindo uma sessão na Sociedade Psicanalítica, sem querer simplificar o
retrato, vejo nessas diferentes posturas um conjunto harmônico de
personalidade. Era bravo e afável, sorria facilmente, e tinha um senso de humor
muito livre que, certamente, era a sua principal pauta de aferimento da
realidade. Era dotado de um alto grau de isenção, qualidade fundamental do
psicoterapeuta. Quando leio em qualquer manual a lista dos requisitos para um profissional
chegar a ser um bom psicoterapeuta, lembro-me sempre do Mário. Ele os preenchia
todos. Digo-o com tranquilidade, sem nenhum temor de estar cometendo excessos.
Mário escreveu pouco. Escrevia devagar, mas sabia escrever, sobretudo pensava e
repensava acerca do tema, antes de abordá-lo. Ademais, seu tempo era muito
escasso para escrever, a não ser, talvez, nos últimos anos. Não
obstante possuir uma cultura literária apreciável e um sentido crítico
penetrante, Mário, em toda a sua vida, escreveu um único artigo literário. Foi
sobre o meu romance “Enquanto as águas correm”, escrito em 1938, nos breves
intervalos do nosso estudo de psiquiatria para o famoso concurso. O Mário o
acompanhou trecho a trecho. De sorte que, quando o livro apareceu em 1939, ele
estava muito por dentro e apto, portanto, para escrever, como escreveu, uma
magnífica apreciação crítica sobre o romance. Mas ele não assinou Mário
Martins, nem o nome inteiro Mário Álvarez Martins, mas rabonou o nome,
assinando Mário Álvarez. Era o mesmo que se ocultar sob um pseudônimo. Teria
sido por timidez? Por modéstia? Nada disso. Ele não queria nenhum compromisso
fora da Medicina, assim como daí em diante fora da psiquiatria e,
posteriormente, fora da psicanálise. Para
vocês fazerem uma ideia de seu talento literário, do bom gosto da sua linguagem
e da captação sutil dos flagrantes poéticos, vou ler um tópico daquele artigo.
Antes, porém, quero esclarecer que Izidro é o nome do personagem central do
romance. “Izidro
chega a um recanto da fronteira do Rio Grande (e com sua chegada se inicia a
narração) como uma vida acabada, um homem esgotado por uma existência errante e
aventureira". Na verdade, era uma alma inquieta e insatisfeita, que em vão
se procurara, e que a força dos acontecimentos (sabemos depois que vinha
expulso como extremista) impelia abruptamente para o seu destino. Ele
se vê sozinho, a caminhar sem rumo sob a luz desconhecida de um fundo
crepúsculo dos pampas que se abria, cheio de revelação, como um “painel” de
“silêncio”. E aí
começamos a perceber (porque tudo é apenas sugerido tanto ao leitor como à
consciência do próprio personagem) porque sua alma “renasce” e abandona a
tumultuária existência anterior, inclinando-se para os seus profundos
desígnios. Sem crenças, sem fé, sem ideais, Izidro iniciará, não obstante, a
partir daquele dia, uma existência de renúncia e isolamento, perdão para a
vida, ternura e compreensão para os humildes. Apenas o guiam os impulsos
secretos que haviam disputado (e continuarão disputando) a direção da sua
personalidade. Esses
traços essenciais são apenas entrevistos à medida que vamos avançando no
romance. O próprio personagem, como dissemos, não toma consciência da sua
situação. Nunca se lhe revela a verdade e o sentido da sua vida. Ele continuará
a julgar-se a si mesmo egoísta e frio, apartado dos homens pelo duro coração
sem piedade, e planejará voltar um dia ao mundo agitado em que vivera antes, na
completa inconsciência do que era a certeza de sua alma. Essa
inconsciência, essa incompreensão íntima em um ser de pensamentos claros,
habituado à introspecção, constitui o sopro maior de sofrimento que agita o
personagem, é o clima da sua desgraça e é talvez o que lhe dá sua contida força
dramática. E
quando, pelo fim do livro, o vemos miserável e velho, já próximo da morte,
sentimos crescer ainda mais o desamparo que enche seu coração de um estranho
sofrimento sem angústias nem revoltas. Eis
aí uma faceta de Mário Martins que vocês ignoravam. Seria uma lástima se não
tomassem conhecimento dela. No
trecho citado dá para ver a penetração psicológica do articulista e um enfoque
de apreciação crítica atualizado, de acordo com o conhecimento em profundidade
do psiquismo que resultou do advento da psicanálise. É
imperioso que assinalemos nesta oportunidade, as pacientes investigações de
Mário Martins em torno da epilepsia, o mal sagrado, que desde a antiguidade
provocou sempre tanto pânico ao redor, devido às suas ruidosas exteriorizações.
O incremento da ameaça interna de desintegração, originada do impacto da cena
primária, “constitui — como afirma Mário — a representação inconsciente básica
do Complexo de Édipo”. Essa
é uma concepção original da crise epiléptica. Segundo se depreende do
pensamento de Mário, a persistência da fantasia inconsciente impregnada da
imagem combinada determinaria transtornos ulteriores de adaptação sexual. Essa
fantasia é reforçada pelas experiências com a rudeza ambiental. Outros
estudos relevantes de Mário Martins abordam a feminilidade. Mas, por questão de
tempo, torna-se impossível fazer mais citações, embora oportunas. Entendo que
esses trabalhos devam ser lidos e discutidos pelos jovens psiquiatras e
psicanalistas, para proveito do seu exercício profissional e em homenagem à
memória do pioneiro da psicoterapia dinâmica A obra de Cyro Martins e muitos trabalhos em homenagem a Mário Martins estão no CELPCYRO (http://www.celpcyro.org.br/joomla/ ) site organizado por sua filha Maria Helena Martins com a colaboração do atual presidente do Celpcyro Dr. Cláudio Meneghello Martins. A turma de 1932 da Faculdade de Medicina, além do Cyro e do Mário, teve a figura de Dyonélio Machado. A curiosidade é que Dyonélio deveria ter se graduado em 1930, mas seguiu para o Rio de Janeiro com as tropas do sul e só retornou em 1932 com sua tese de doutoramento pronta. (http://www.polbr.med.br/ano08/wal0608.php). Nas publicações sobre Mário Martins na página da CELPCYRO vamos encontrar depoimentos de Roberto Bittencourt Martins, David Zimmermann e Sérgio Paulo Annes. Sobre a Fundação da SPPA assim escreveu Sérgio Paulo Annes: A
SPPA foi fundada por oito membros. Quatro titulares, didata, e quatro membros
associados. Os primeiros foram: Mario Martins, Cyro Martins, José Jaime
Lemmertz fizeram suas formações Sobre Zaira, assim escreveu filho Roberto: Pioneira da psicanálise infantil no Rio Grande do Sul, nasceu em Bagé (Fronteira Sul do Rio Grande do Sul) a 7 de outubro do 1911, filha de Pedro de Bittencourt , também bageense, e de Anna Thereza Mattos de Bittencourt, nascida em Taquarembó (Uruguai). Seu pai era proprietário do uma pequena fazenda no município, onde Zaira (segunda entre quatro irmãos) passou seus primeiros anos. Da infância, recordaria sempre os brinquedos, comuns no meio rural da época: rústicas bonecas de pano, pedaços de ossos de gado que serviam para simbolizar animais, pessoas, casas etc.. E prosseguiu em seu trabalho clínico com crianças e pré-adolescentes, bem como nas tarefas de ensino e administrativas de sua Sociedade, até 1985, quando, a 7 de agosto, veio a falecer por complicações de uma cirurgia cardíaca realizada quatro meses antes. No início do século XX, percorriam os campos do Rio Grande do Sul, os trens de passageiro e de gado. Nos trens que iam buscar gado nas fazendas do interior havia um vagão que trazia os “loucos” para o São Pedro. Vinham sem identificação, eram recolhidos pela polícia e chegavam ao hospital onde recebiam a ficha de inominados. Roberto B. Martins, em Ibiamoré, o trem fantasma, descreve um trem que percorria os campos do sul e que, nas madrugadas de cerração recebia sua carga humana e desaparecia nas brumas. Esta imagem fantástica sempre foi para mim o símbolo de uma forma de tratar os doentes mentais com medo e rejeição. Quem entrava no trem nunca mais era visto. O mesmo autor escreveu um artigo em que procura entender o que teria levado Mário Martins, seu pai, a interessar-se pela psicanálise a partir da leitura do número 1 da Revista Argentina de Psicoanálisis. http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=0&id=356 David Zimmermann foi dos primeiros discípulos de Mário Martins e é dele o texto publicado em CELPCYRO: http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=0&id=7480 Ao contrário, do que se possa imaginar, os primeiros analistas do Rio Grande do Sul, eram homens de poucos recursos. Mário Martins residiu no Sanatório São José, a convite do Dr. Jacinto Godoy por não ter condição de pagar um aluguel. Na sua apreciação sobre Mário, o Professor David tenta dar um brilho a este fato afirmando que Mário teria sido o primeiro residente em psiquiatria do Brasil. A verdade é mais simples, ele era morador do Sanatório e pagava sua hospedagem com serviços. O próprio David era de origem modesta e só conseguiu sua formação com muito sacrifício. Mário foi a Buenos Aires com uma bolsa de formação da Fundação Francisco Munhoz, no seu retorno a Porto Alegre, levou algum tempo pagando esta bolsa com seu trabalho. Com todas estas dificuldades, Mário, Cyro e vários outros analistas e estudantes da época eram pessoas de reconhecidos dotes literários e humanistas por natureza.
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