Volume 22 - Novembro de 2017
Editor: Giovanni Torello

 

Julho de 2012 - Vol.17 - Nº 7

História da Psiquiatria

BIOGRAFIA DE MARIO ALVAREZ MARTINS (1908-1981)

Walmor J. Piccinini

Sumário

Mario Alvarez Martins, nascido em 1908 em Livramento, RS e falecido em Porto Alegre em 1985. Sua esposa foi Zaira Bittencourt Martins (7/10/1911-7/08/1985). O casal teve dois filhos, Roberto, psicanalista no Rio de Janeiro e Tanira, bibliotecária. Teve oito netos.

Formou-se pela Faculdade de Medicina da UFRGS em 1932.

Em 1938 tornou-se psiquiatra do Hospital São Pedro através de concurso público.

Em 1945 foi para Buenos Aires com Bolsa da Fundação Francisco Munhoz e com o salário de psiquiatra do Estado do Rio Grande do Sul. Foi analisado por Angel Garma.

Iniciou seu trabalho analítico em Porto Alegre, no mês de fevereiro de 1947.

Foi um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).

Foi Presidente da SPPA e da Associação Brasileira de Psicanálise.

A Fundação Universitária Mario Martins (http://www.polbr.med.br/ano12/wal0512.php ).

 Foi nomeada em sua homenagem.

Principais produções científicas: 1. “Contribuição ao Estudo Psicanalítico da Epilepsia”.

2. “Aspectos Técnicos no Tratamento Psicanalítico da Depressão”.

3. “Mania e Onipotência”

4. “Psicodinamismos e Fantasias Inconscientes da Menstruação e da Ovulação”.

5. “Transferência, Acting-out e Situações Traumáticas Primitivas”.

6. Fatores Psicológicos nos Mecanismos de Ação Terapêutica do Eletrochoque”.

Durante quinze anos realizou estudos antropológicos, mas, devido a sua doença que o levou a morte, não pode elaborar e publicar.

Dados Biográficos.

     Mário Álvarez Martins foi uma pessoa muito discreta, foram poucas pessoas que gozaram da sua intimidade. Cultivou a neutralidade analítica de maneira muito particular e, como seus analisandos, eram pessoas que frequentavam as atividades das sociedades científicas e universitárias, ele se manteve sempre à distância de um convívio social mais intenso.  A pessoa com quem tinha a mais antiga e afetuosa ligação era Cyro Martins (http://www.polbr.med.br/ano08/wal0708.php). Na inauguração da Fundação Universitária que recebeu o nome de Mário Martins, Cyro contou algumas passagens da vida de ambos. Achei que seria interessante reproduzi-la aqui:

MÁRIO MARTINS - PSICOTERAPEUTA

            A iniciativa do grupo de psiquiatras e psicanalistas, amigos e discípulos do Prof. David Zimmermann, de dar o nome de Mário Martins a esta instituição não poderia ser mais meritória do que o é. Mário Martins foi realmente uma personalidade singular no nosso meio. Dono de um talento literário inequívoco preferiu enveredar por outros caminhos que não a literatura, para preencher suas valências intelectuais. Vivendo num meio sem tradição cultural, onde imperava o autodidatismo, foi, sem pressa, desbravando as dificuldades, que não foram poucas, até chegar à psicanálise, já na casa dos trinta e seis anos, o que constituiu uma proeza, se considerarmos as vicissitudes de meio e tempo.

            Posso afiançar que convivemos durante aproximadamente meio século. Repartimos muitas vezes as nossas próprias fraquezas. Ele sempre muito lúcido, eu mais inquieto. De maneira que quem tirava habitualmente mais proveito daquela intimidade era eu.

            Conhecemo-nos na Rua da Praia, na época em que a Rua da Praia era passarela da beleza e do talento rio-grandenses. Não somente circulavam nas calçadas, olhando-se nas vitrines, as jovens bonitas e airosas, como também, entre os pedestres que andavam pra lá e pra cá, pelo meio da rua, pisando os caprichados paralelepípedos que o calçadão mais tarde esconderia, passeavam os políticos prestigiosos  da época, os intelectuais consagrados e os jovens promissores. Penso que, sem falsa modéstia, entre estes, estávamos nós, Mário, Lino de Mello e Silva, Carlos Tettamanzi, Mário Quintana e eu. Deixo, naturalmente, de referir inúmeros outros. O que nos aproximou, inicialmente, foi à inquietação literária. Estávamos vivendo ainda a ressaca da Semana de Arte Moderna, que teve seu epicentro em São Paulo, porém com repercussões mais ou menos fragorosas nos diversos centros intelectuais do país, conforme a receptividade de cada um. Também estávamos vivendo os fogos cruzados da campanha sucessória de 22, de revolução de 23 e dos vários levantes de 24, que culminariam na Coluna Prestes. Já então, durante aquelas intermináveis caminhadas, refrigeradas com alguns chopes, não muitos, porque éramos todos uns pelados, a estrutura moral de Mário e a sua capacidade de fisgar o ridículo das situações mais diversas se impunham, de molde a servir de pauta para estabilizar os nossos arrebatamentos. Nem se poderia dizer que suas ponderações sobre fatos e pessoas lhe saíssem pesadas de segundas intenções, porque suas intenções eram sempre diretas e transparentes, embora quase sempre picantes e não raro implacáveis. Era um jovem talentoso, sem vaidade e de um bom-senso incomum. A todos, dava uma impressão de seriedade. Possuía um senso de humor muito vigilante para os flagrantes da vaidade. E nesses momentos ria gostosamente.

            Para retratar o estilo da nossa convivência daquele período de pobreza e relaxe, eu poderia escolher diversos flashs, porém este sintetiza todos. Ele costumava troçar comigo, diante dos companheiros, dizendo que, quando me conheceu, eu tinha dezessete anos, lia Haeckel e batia no peito jurando que descendia de macaco. Nesses momentos ele era jovial.

            Mas chegou a hora em que o “Tempo da Flor”, para usar a expressão irônica e sentimental de Augusto Meyer, começou a passar. E tivemos de encarar com seriedade que já era vez de deixarmos de ser estudantes de preparatórios e nos decidirmos a enfrentar o vestibular, que, na época, não era esse bicho-papão de hoje. Soara, portanto, a hora da famosa pergunta, bastante perturbadora: “E agora, José?” Optamos pela medicina, apesar de que a praxe era os estudantes com inclinações literárias entrarem para a Faculdade de Direito. Não obstante isso, nós, o Mário, o Lino de Mello e Silva e eu, escolhemos a Medicina até com relativo entusiasmo. Acontece que, lá pelos anos de 1926-27, começaram a aparecer nas livrarias de Porto Alegre, livros sobre psicanálise, escritos alguns pelos pioneiros da nova ciência no Brasil. O entusiasmo dos autores supria, em parte, suas “falhas técnicas”. E junto com esses livros vieram também os primeiros volumes da tradução de Lopes Ballesteros. De sorte que, em seguida, nos antenamos nessa direção, o Mário e o Lino bem mais do que eu, pois já me encontrava bastante comprometido com a literatura. Mas fui indo na garupa deles, aprendendo por tabela algumas noções básicas de psicanálise. Em consequência, ainda primeiro-anistas, já andávamos rondando os muros do São Pedro e, como furões, íamos assistir lá as aulas de psiquiatria do sexto ano, ministradas pelos professores Luiz Guedes, catedrático e Raul Bittencourt, livre docente. Ambos tinham o dom da palavra e pertenciam ao gênero do professor sedutor, mas que puxavam brasa para a sua disciplina. A frequência de sextanistas era escassa, de sorte que a presença dos três mosqueteiros, não armados de mosquetes, mas do mais vivo interesse pela psiquiatria, um interesse em estado nascente, era bem-vinda. Lembro-me, com uma nitidez extraordinária, de uma aula de Raul Bittencourt sobre mania. Depois de discorrer acerca da tipologia de Krestschmer de um modo geral, entrou em particularidades, abordando o tipo corporal pícnico e o correspondente caráter ciclotímico. Em seguida apresentou o caso clínico. Tratava-se de uma mulher de meia-idade, retaca, tronco arredondado e braços curtos, verborreica e destemida. “E se aparecesse um leão na sua frente, o que a senhora faria?” “Eu matava o leão!” — foi a sua resposta incisiva. Nunca esquecemos esse episódio, tão ilustrativo, do quadro clínico em si e da importância da apresentação de casos no ensino médico.

            E, um dia, terminamos o curso de Medicina, isto é, cumprimos com as formalidades exigidas para receber o diploma e sair pelo mundo autorizados a exercer a profissão. Socialmente, a nossa turma foi considerada a de maior destaque, até então, na história da Faculdade. Quanto ao preparo, era lamentável. Os mais responsáveis estavam apavorados ante a perspectiva do desconhecido. Os frívolos acreditavam no poder mágico do canudo. Não obstante, dominava o entusiasmo da formatura. E sobreveio a clássica disputa entre a casaca e o linho branco. Houve pleito renhido. Venceu o linho branco. Para o Mário e pra mim pouco importava a preferência da turma por este ou aquele trajo para a cerimônia solene. Total, contávamos mesmo era com o nosso terninho puído, já cansado de guerra. Assim, não por modéstia nem por birra contra os colegas, com os quais nos dávamos muito bem, mas por absoluta necessidade, colamos grau na Secretaria da Faculdade. Presentes: os dois formandos e o diretor, o velho Sarmento. Acho que o juramento hipocrático foi rabonado, porque o ato foi brevíssimo. Descemos a escadaria da Faculdade, caminhamos cem metros juntos, nos despedimos e cada um agarrou o seu rumo. Eu fui para a minha pensão no Bom Fim. Ele tomou o bonde para ir almoçar na casa de uns parentes. Nos próximos dias viajaríamos para a fronteira, nosso pago de origem. Mário foi para Santana do Livramento, sua terra natal e onde ainda residia a sua família. O meu destino era São João Batista do Quaraí. O que houve de comum entre nós, num curto espaço de tempo, foram fatos extremamente chocantes para jovens que apenas saíam da Faculdade. Ele perdeu a mãe e eu perdi meu pai. Eu fiquei três anos e o Mário quatro, no interior. Durante todo esse tempo, porém, não tirávamos o olho da estrada. Eu saí antes, graças ao auxílio de amigos. Fui para o Rio de Janeiro estudar neurologia, já que psiquiatria, que era o que realmente me interessava, praticamente não existia no Brasil e na América Latina. Isso ocorreu no ano de 1937, ano do golpe estadonovista. Pois bem, como diz o refrão, o mal de muitos sempre traz o bem para uns poucos. Nós, Mário e eu, fomos contemplados com o bafejo da sorte, no meio da desgraça nacional. O novo regime, com seus interventores nos Estados, resolveu varrer caprichadamente a casa, como vassoura nova, abrindo concursos para os cargos públicos, entre eles, para sanitaristas e psiquiatras no Hospital São Pedro. Mário e eu resolvemos topar a parada. O meu amigo, porém, tímido e modesto, não se sentia animado a enfrentar o concurso para psiquiatra. Pretendia candidatar-se a sanitarista. Foi preciso muita decisão de minha parte para demovê-lo daquela atitude que estava e não estava em desacordo com a seriedade do seu caráter. Muito exigente consigo mesmo e com os outros, repugnava-lhe preparar-se às pressas para um concurso de tal monta, sem ter de antemão uma base razoável de conhecimento sobre a matéria. Custei a abrir uma brecha na sua autocrítica exagerada. Por fim, decidiu-se e começamos a estudar. Passávamos as manhãs no São Pedro e de tarde frequentávamos a enfermaria de neurologia da Santa Casa. Lembrem-se de que, naquele tempo, a especialidade chamava-se neuropsiquiatria. O concurso foi puxado, suamos o topete. Realizou-se em estilo de docência. A banca compunha-se dos renomados professores Antônio Saint Pastous, diretor da Faculdade de Medicina, pelo professor Fábio de Castro, catedrático de neurologia, e pelo muito estimado professor Celestino Prunes, titular da cadeira de Medicina Legal. Pois vejam só, foi justamente Celestino Prunes que, por pouco, não nos emborca o barco. Estávamos preparados para um exame de clínica psiquiátrica, conforme a orientação dos nossos técnicos, Jacinto Godoy e Décio Souza. De sorte que, quando o secretário da banca leu a lista dos pontos a serem sorteados para a prova escrita, nós, os candidatos — Mário, Luiz Ciúla, Victor de Brito Velho e eu — ficamos estarrecidos, pois Celestino incluíra pelo menos meia dúzia de pontos de psiquiatria forense. Nós nos julgamos perdidos e de certa forma traídos, depois de muito andar e no momento em que víamos a luz a boca do túnel, fomos recebidos pelos braços do grande inquisidor. Só que, em vez da frase do conto célebre — eu sabia que não me abandonarias! — poderiam ter nos dito: Nós sabíamos que vocês não passariam!

            O pânico durou talvez uns trinta segundos, até o momento em que eu, letra C, tirei o ponto. O professor Saint Pastous olhou para mim e perguntou: o senhor joga na loteria?  Não soube o que responder. Certamente ainda atarantado pelo susto que me acometera. Com efeito, naqueles segundos, tal qual como dizem que acontece com os afogados que, no momento crucial do afogamento recordam toda sua vida, eu me lembrei que, meses atrás fora despedido, na minha cidade, com charanga, churrasco e discurso porque vinha de muda para a capital, com pretensões a enfrentar aquele concurso. E agora, José? Mas o professor Saint Pastous abreviou o nosso sofrimento, lendo o que estava escrito no papelzinho: psicose maníaco-depressiva. Seguiu-se, no dia seguinte, a prova clínica no São Pedro e, na noite do terceiro dia, uma aula no salão nobre da Faculdade. Como veem, o Estado Novo estava querendo fazer média à nossa custa. Li, mais de uma vez, que, para Carlos Drummond de Andrade, cinco pessoas já eram uma multidão. O mesmo acontecia com o nosso Mário. Portanto, ante a contingência de ser forçado a enfrentar aquele salão cheio de gente, ele teria pensado, mais de uma vez, com saudades do silêncio e do recolhimento de Boa Esperança, de onde viera. Na hora, Mário gaguejou, tropeçou, mas foi em frente e venceu. Vencemos.

            Aprovados em concurso público e nomeados psiquiatras do Hospital São Pedro, os quatro, porque havia vagas para todos, estávamos oficialmente autorizados a abrir consultório na Rua da Praia, quiçá na Galeria Chaves, e oferecer à população nossos préstimos como especialistas em doenças mentais. Eu, mais ousado, fui o primeiro a me estabelecer. De vez em quando me caía algum psicótico para internar. Consultas de queixosos, raríssimas. Os clínicos abocanhavam todos. O Mário, parcimonioso de temperamento como era, resolveu esperar, por mais que eu lhe oferecesse o consultório. Esperar o quê? Não sabíamos. Na verdade, com os poucos neuróticos que nos apareciam, em geral graves, que os clínicos, cansados de tanto apanhar, nos encaminhavam, não sabíamos o que fazer. Convencer um fóbico, pela persuasão, de que ele deveria enfrentar sem temor o escuro, os recintos fechados ou a amplitude das praças, a um obsessivo de que ele não precisava voltar vinte vezes para verificar se chaveara bem a porta, ou um paranóide de que era pura desconfiança sua achar que o vizinho o espiava dia e noite, seria tarefa impossível, equivalente ao suplício de Sísifo. Receitar remédios? Que remédios? Sobre isso conversávamos muito no nosso consultório, depois que consegui que se solidarizasse comigo e fosse encarar de perto aquela realidade. Enquanto os tempos não mudavam, íamos, como os demais, fazendo insulinoterapia e aplicando eletrochoque nos pacientes do São Pedro e nos psicóticos que baixávamos no Sanatório São José.

            Na realidade, os tempos não mudariam, enquanto nós não mudássemos. Sobreveio, em 1942, uma prolongada doença neurológica do pai de Mário, que acabaria em óbito. Mário sofreu, se desgastou, interrompeu suas leituras de Freud. Mas no inverno de 1943, numa tarde sombria, dessas que tornam mais curtas as esperanças da gente, nos apareceu no consultório um senhor argentino oferecendo a assinatura da “Revista de Psicoanálisis”, flamante, e nos deixou os dois primeiros números. No primeiro, em artigo bastante detalhado, Arnaldo Rascovsky expunha para os psiquiatras da América Latina a possibilidade de formação psicanalítica em Buenos Aires. Resumindo, o Mário foi o primeiro psiquiatra latino-americano a topar a parada. Escreveu para Angel Garma. Recebeu uma contestação positiva. Começou os preparativos. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial, o Brasil já envolvido. De maneira que, até conseguir a licença militar para se afastar do país, levou um tempão. Já então, tínhamos trabalho no consultório, graças à criação dos Institutos de Previdência Social, embora nossa atividade se reduzisse a laudos para licença e para retorno ao trabalho. Desempenho burocrático, dirão. Certo, mas era um dinheirinho que entrava. Além disso, começávamos a ter pacientes de consultório, não psicóticos. E o Mário, mais depressa que eu, pela imposição da exigência assistencial, embrenhou-se na densidade humana da psicoterapia dinâmica.

            Anos depois, muitos anos mais tarde, conversando com o mestre e amigo Garma, ele declarou, numa atitude de franqueza e amizade, a propósito da primeira entrevista do Mário com ele: “Me gusto el tipo y lo tomé”.

            Quando me tocou a vez de seguir a mesma rota, encontrei em Buenos Aires, no meio psicanalítico, uma lembrança muito viva da pessoa do Mário. Ele fizera amizade muito forte com Pichón Rivière, com Arminda Aberastury, com Arnaldo Rascovsky, com Luiz Rascovsky, com Cárcamo e muitos outros, que estavam, então, recém despontando. Na época, as exigências do Instituto de Psicanálise não só em Buenos Aires, mas em todos os Institutos filiados à Internacional, eram menos rigorosos quanto ao tempo de formação. Assim, tendo ido em 1944, Mário pôde retornar em 1947, para iniciar aqui uma nova etapa existencial, de extraordinária relevância, não apenas para ele, mas para todos os nós, para a medicina de Porto Alegre, do Rio Grande e do Brasil. E da nossa cultura em geral, se considerarmos as dimensões que adquirem os conhecimentos psicanalíticos na sequencia em cadeia das diferentes áreas do saber.

            Talvez vocês ignorem, mas o Mário foi o primeiro psicanalista brasileiro a cumprir todos os efes-e-erres da carreira.

            De volta a Porto Alegre, reassume o seu cargo no Hospital São Pedro e inaugura, no consultório particular, um atendimento revolucionário para o nosso meio, o psicanalítico. No hospital, com uma prudência exemplar, sem jamais tentar deslumbrar ninguém, ele foi impondo um enfoque mais moderno da psicose e do psicótico. No consultório, analisava pacientes comuns e candidatos, porque, já então compenetrado da sua condição de pioneiro, tinha em mira a fundação de um núcleo psicanalítico em Porto Alegre. Na dura condição de único, teve seus anos de isolamento, não sei se esplêndidos. Mas que foram fecundos foram. Analisava, supervisionava e dava seminários. Ao mesmo tempo, levava adiante, no São Pedro, pacientes investigações, sobretudo em epilepsia, que seria tema de seu primeiro grande trabalho, com o qual conquistou o título de membro associado da Associação Psicanalítica da Argentina.

            Através da análise, das supervisões, dos seminários e do que captavam os seus observadores no São Pedro, ele foi transmitindo aos colegas mais jovens, ávidos da nova ciência, um tipo de relação médico-paciente totalmente novo em psiquiatria, inédito no nosso meio.

            Não obstante a sua cautela, não lhe faltaram dardos e maus augúrios. Houve um colega, dos mais inteligentes e preparados da velha guarda, que me fez o seguinte comentário: o Mário diz que vai fazer só psicanálise, mas eu não dou um ano para que ele esteja outra vez fazendo eletrochoque e insulina! Claro que houve muitos outros episódios desse gênero, que eu já esqueci. Minha intenção é trazer à tona alguns elementos valiosos para o processo histórico que lhe fará justiça.

            Mas esse foi o primeiro capítulo da sua obra de implantador da psicanálise em Porto Alegre. Implantador, em moldes de extrema seriedade científica. De vez em quando surgia alguma ave de arribação, pavoneando-se com a bandeira da psicanálise. O ambiente, pequeno, comovia-se. Mas a orientação de Mário era não polemizar. Dentro de alguns anos começaram a chegar de volta, de Buenos Aires e do Rio de Janeiro, José Lemmertz, Celestino Prunes e eu, operários para a obra em construção, prosseguindo sempre sob a batuta de Mário. Já então alguns de seus discípulos da primeira hora — David Zimmermann, Ernesto La Porta, Paulo Guedes, Roberto Pinto Ribeiro — estavam incorporados na luta pela conquista de um lugar ao sol para a psicanálise em Porto Alegre. Não se pense que o ambiente nos fosse hostil. Pelo contrário, tanto de parte das camadas mais esclarecidas da população, como do meio universitário.

            A luta a que me refiro diz respeito ao desgaste em energia, decisão e dinheiro para conseguirmos, junto à Associação Psicanalítica Internacional, o nosso reconhecimento, primeiro como Grupo de Estudos e depois como Sociedade.  Essa autonomia era indispensável para, de acordo com os cânones, podermos formar novos analistas. Inúmeras foram às viagens a Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro, Santiago do Chile, e aos Congressos Internacionais da Dinamarca e da Suécia. Era preciso aproveitar essas oportunidades para falar com as cabeças, para chegar a eles pela mão dos nossos padrinhos mais próximos, Garma, Pichón, Arnaldo, Kemper. Em todas essas investidas, o Mário esteve sempre presente, capitaneando o grupo. Ágil nas investidas e corajoso, demonstrando que não estava disposto a levar desaforo pra casa, suas intervenções, incisivas e lógicas, de acordo com a sua maneira de agir em todo o resto na vida, acabaram nos levando até lá, à dignidade de Sociedade Psicanalítica.

            E se ponderarmos a concludente convicção de Thomas Mann de que a psicanálise é um dos pilares que sustentam os fundamentos do porvir e deverá contribuir na construção do edifício de uma humanidade livre e sábia, então a nossa emoção cresce por termos vivido aquele momento ideal.

            Convém ainda lembrar a influência dos ensinamentos de Mário Martins na criação e na orientação doutrinária do curso de psiquiatria Melanie Klein, que tão bons psiquiatras têm dado ao Estado. E também o influxo do seu pensamento atingiu o currículo da disciplina de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal.

            Mas a grande obra de Mário Martins, maior do que tudo isso que já apontei e superior aos seus seminários e aos seus escritos foi a que realizou, durante trinta anos, para usarmos números redondos, no recolhimento do seu consultório de analista. Atestam-no as figuras hoje em destaque na esfera psicanalítica brasileira e continental que passaram pelo seu divã.

            Meditem vocês, agora, um segundo, sobre aquele flash da prova escrita do nosso concurso de psiquiatria, acontecido há cinquenta anos. Imaginem só se os meus sortudos dedos houvessem sofrido uma vacilação e se deslocado milímetros para a esquerda ou para a direita. Poderia ter acontecido o pior, e hoje não estaríamos aqui homenageando a memória do nosso amigo e mestre! Concentrando a evocação sobre determinados aspectos de sua personalidade, vendo-o longe, no quarto de estudante, na Rua da Praia, no hall da Faculdade, e depois, já casado, pai, ou presidindo uma sessão na Sociedade Psicanalítica, sem querer simplificar o retrato, vejo nessas diferentes posturas um conjunto harmônico de personalidade. Era bravo e afável, sorria facilmente, e tinha um senso de humor muito livre que, certamente, era a sua principal pauta de aferimento da realidade. Era dotado de um alto grau de isenção, qualidade fundamental do psicoterapeuta. Quando leio em qualquer manual a lista dos requisitos para um profissional chegar a ser um bom psicoterapeuta, lembro-me sempre do Mário. Ele os preenchia todos. Digo-o com tranquilidade, sem nenhum temor de estar cometendo excessos. Mário escreveu pouco. Escrevia devagar, mas sabia escrever, sobretudo pensava e repensava acerca do tema, antes de abordá-lo. Ademais, seu tempo era muito escasso para escrever, a não ser, talvez, nos últimos anos.

            Não obstante possuir uma cultura literária apreciável e um sentido crítico penetrante, Mário, em toda a sua vida, escreveu um único artigo literário. Foi sobre o meu romance “Enquanto as águas correm”, escrito em 1938, nos breves intervalos do nosso estudo de psiquiatria para o famoso concurso. O Mário o acompanhou trecho a trecho. De sorte que, quando o livro apareceu em 1939, ele estava muito por dentro e apto, portanto, para escrever, como escreveu, uma magnífica apreciação crítica sobre o romance. Mas ele não assinou Mário Martins, nem o nome inteiro Mário Álvarez Martins, mas rabonou o nome, assinando Mário Álvarez. Era o mesmo que se ocultar sob um pseudônimo. Teria sido por timidez? Por modéstia? Nada disso. Ele não queria nenhum compromisso fora da Medicina, assim como daí em diante fora da psiquiatria e, posteriormente, fora da psicanálise.

            Para vocês fazerem uma ideia de seu talento literário, do bom gosto da sua linguagem e da captação sutil dos flagrantes poéticos, vou ler um tópico daquele artigo. Antes, porém, quero esclarecer que Izidro é o nome do personagem central do romance.

            “Izidro chega a um recanto da fronteira do Rio Grande (e com sua chegada se inicia a narração) como uma vida acabada, um homem esgotado por uma existência errante e aventureira". Na verdade, era uma alma inquieta e insatisfeita, que em vão se procurara, e que a força dos acontecimentos (sabemos depois que vinha expulso como extremista) impelia abruptamente para o seu destino.

            Ele se vê sozinho, a caminhar sem rumo sob a luz desconhecida de um fundo crepúsculo dos pampas que se abria, cheio de revelação, como um “painel” de “silêncio”.

            E aí começamos a perceber (porque tudo é apenas sugerido tanto ao leitor como à consciência do próprio personagem) porque sua alma “renasce” e abandona a tumultuária existência anterior, inclinando-se para os seus profundos desígnios. Sem crenças, sem fé, sem ideais, Izidro iniciará, não obstante, a partir daquele dia, uma existência de renúncia e isolamento, perdão para a vida, ternura e compreensão para os humildes. Apenas o guiam os impulsos secretos que haviam disputado (e continuarão disputando) a direção da sua personalidade.

            Esses traços essenciais são apenas entrevistos à medida que vamos avançando no romance. O próprio personagem, como dissemos, não toma consciência da sua situação. Nunca se lhe revela a verdade e o sentido da sua vida. Ele continuará a julgar-se a si mesmo egoísta e frio, apartado dos homens pelo duro coração sem piedade, e planejará voltar um dia ao mundo agitado em que vivera antes, na completa inconsciência do que era a certeza de sua alma.

            Essa inconsciência, essa incompreensão íntima em um ser de pensamentos claros, habituado à introspecção, constitui o sopro maior de sofrimento que agita o personagem, é o clima da sua desgraça e é talvez o que lhe dá sua contida força dramática.

            E quando, pelo fim do livro, o vemos miserável e velho, já próximo da morte, sentimos crescer ainda mais o desamparo que enche seu coração de um estranho sofrimento sem angústias nem revoltas.

            Eis aí uma faceta de Mário Martins que vocês ignoravam. Seria uma lástima se não tomassem conhecimento dela.

            No trecho citado dá para ver a penetração psicológica do articulista e um enfoque de apreciação crítica atualizado, de acordo com o conhecimento em profundidade do psiquismo que resultou do advento da psicanálise.

            É imperioso que assinalemos nesta oportunidade, as pacientes investigações de Mário Martins em torno da epilepsia, o mal sagrado, que desde a antiguidade provocou sempre tanto pânico ao redor, devido às suas ruidosas exteriorizações. O incremento da ameaça interna de desintegração, originada do impacto da cena primária, “constitui — como afirma Mário — a representação inconsciente básica do Complexo de Édipo”.

            Essa é uma concepção original da crise epiléptica. Segundo se depreende do pensamento de Mário, a persistência da fantasia inconsciente impregnada da imagem combinada determinaria transtornos ulteriores de adaptação sexual. Essa fantasia é reforçada pelas experiências com a rudeza ambiental.

            Outros estudos relevantes de Mário Martins abordam a feminilidade. Mas, por questão de tempo, torna-se impossível fazer mais citações, embora oportunas. Entendo que esses trabalhos devam ser lidos e discutidos pelos jovens psiquiatras e psicanalistas, para proveito do seu exercício profissional e em homenagem à memória do pioneiro da psicoterapia dinâmica em Porto Alegre. Mário encontrou na psicanálise o campo de ação adequado para o seu temperamento. Embora não fosse um homem que se embriagasse com a magia da palavra falada, a sua ação foi predominantemente didática e psicoterapêutica. Ele acreditava na eficácia terapêutica da psicanálise. Aqui, neste recanto do mundo, nos caminhos da sutileza da alma, foi um continuador de Freud e dos grandes doutores que o acompanharam nos primeiros tempos. Seu pensamento, desde quando jovem, seguiu uma linha de filosofia materialista, mas sabia alternar as exaustivas pesquisas científicas do psiquismo com os embalos da poesia, por uma necessidade imanente de sua personalidade. A obra de Mário Martins — escrita, falada e atuada — vista como uma construção, num todo consistente, há de merecer de vocês, num futuro não muito distante, uma apreciação definitiva, com mais reflexão e menos emoção do que o faço hoje.

     A obra de Cyro Martins e muitos trabalhos em homenagem a Mário Martins estão no CELPCYRO (http://www.celpcyro.org.br/joomla/ ) site organizado por sua filha Maria Helena Martins com a colaboração do atual presidente do Celpcyro Dr. Cláudio Meneghello Martins.

    A turma de 1932 da Faculdade de Medicina, além do Cyro e do Mário, teve a figura de Dyonélio Machado. A curiosidade é que Dyonélio deveria ter se graduado em 1930, mas seguiu para o Rio de Janeiro com as tropas do sul e só retornou em 1932 com sua tese de doutoramento pronta. (http://www.polbr.med.br/ano08/wal0608.php).

     Nas publicações sobre Mário Martins na página da CELPCYRO vamos encontrar depoimentos de Roberto Bittencourt Martins, David Zimmermann e Sérgio Paulo Annes.

Sobre a Fundação da SPPA assim escreveu Sérgio Paulo Annes:

A SPPA foi fundada por oito membros. Quatro titulares, didata, e quatro membros associados. Os primeiros foram: Mario Martins, Cyro Martins, José Jaime Lemmertz fizeram suas formações em Buenos Aires e por lá se tornaram didata. O Professor Dr. Celestino Prunes fez sua formação na Sociedade do Rio de Janeiro e por lá se tornou didata. Os quatro didata que deram origem á nossa Sociedade tiveram suas formações e origens em Karl Abraham, discípulo de Freud, mas que não foi analisado. Abraham tratou Theodor Reik que por sua vez tratou Angel Garma e Celes Ernesto Cárcamo. Garma tratou Mario Martins e Arnaldo Raskowsky e este tratou Cyro Martins. Celes Ernesto Cárcamo tratou Luiz Raskowsky analista de José Jaime Lemmertz. Karl Abraham também foi o analista de Müller Braunschweig que foi analista de Werner Kemper, por quem Celestino foi analisado. Celes E. Carcamo foi, também, o analista de Zaira Bittencourt Martins que supervisionou as primeiras analistas de crianças entre nós.

Sobre Zaira, assim escreveu filho Roberto: Pioneira da psicanálise infantil no Rio Grande do Sul, nasceu em Bagé (Fronteira Sul do Rio Grande do Sul) a 7 de outubro do 1911, filha  de  Pedro de  Bittencourt , também bageense, e de Anna Thereza Mattos de Bittencourt, nascida em Taquarembó (Uruguai). Seu pai era proprietário do uma pequena fazenda no município, onde Zaira (segunda entre quatro irmãos) passou seus primeiros anos. Da infância, recordaria sempre os brinquedos, comuns no meio rural da época: rústicas bonecas de pano, pedaços de ossos de gado que serviam para simbolizar animais, pessoas, casas etc..     E prosseguiu em seu trabalho clínico com crianças e pré-adolescentes, bem como nas tarefas de ensino e administrativas de sua Sociedade, até 1985, quando, a 7 de agosto, veio a falecer por complicações de uma cirurgia cardíaca realizada quatro meses antes.

    No início do século XX, percorriam os campos do Rio Grande do Sul, os trens de passageiro e de gado. Nos trens que iam buscar gado nas fazendas do interior havia um vagão que trazia os “loucos” para o São Pedro. Vinham sem identificação, eram recolhidos pela polícia e chegavam ao hospital onde recebiam a ficha de inominados. Roberto B. Martins, em Ibiamoré, o trem fantasma, descreve um trem que percorria os campos do sul e que, nas madrugadas de cerração recebia sua carga humana e desaparecia nas brumas. Esta imagem fantástica sempre foi para mim o símbolo de uma forma de tratar os doentes mentais com medo e rejeição. Quem entrava no trem nunca mais era visto.

    O mesmo autor escreveu um artigo em que procura entender o que teria levado Mário Martins, seu pai, a interessar-se pela psicanálise a partir da leitura do número 1 da Revista Argentina de Psicoanálisis. http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=0&id=356

    David Zimmermann foi dos primeiros discípulos de Mário Martins e é dele o texto publicado em CELPCYRO: http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=0&id=7480

    Ao contrário, do que se possa imaginar, os primeiros analistas do Rio Grande do Sul, eram homens de poucos recursos. Mário Martins residiu no Sanatório São José, a convite do Dr. Jacinto Godoy por não ter condição de pagar um aluguel. Na sua apreciação sobre Mário, o Professor David tenta dar um brilho a este fato afirmando que Mário teria sido o primeiro residente em psiquiatria do Brasil. A verdade é mais simples, ele era morador do Sanatório e pagava sua hospedagem com serviços. O próprio David era de origem modesta e só conseguiu sua formação com muito sacrifício. Mário foi a Buenos Aires com uma bolsa de formação da Fundação Francisco Munhoz, no seu retorno a Porto Alegre, levou algum tempo pagando esta bolsa com seu trabalho. Com todas estas dificuldades, Mário, Cyro e vários outros analistas e estudantes da época eram pessoas de reconhecidos dotes literários e humanistas por natureza.


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