Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Agosto de 2012 - Vol.17 - Nº 8 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA O DSM, A FENOMENOLOGIA, E A PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA Fernando Portela Câmara A
psiquiatria adquiriu o status de especialidade em medicina quando médicos
interessados em estudar as doenças mentais aderiram ao método filosófico
proposto por Francis Bacon A fenomenologia
(do grego: aparência externa (das coisas)) trouxe uma grande contribuição à
psiquiatria ajudando-a a refinar e desenvolver a psicopatologia, consolidando a
especailidade. Essa influência marca o momento que a fenomenologia mudou seu
significado original, passando a se referir à experiência subjetiva do sujeito,
por Heidegger, Husserl e Jaspers. Embora Jaspers tenha sido muito influente entre os psiquiatras, a
psiquiatria contemporânea voltou a usar o termo no sentido mais próximo do
original, quando a fenomenologia passou a ser usada não somente na
psicopatologia, mas também na clínica psiquiátrica (sinais, sintomas,
categorias diagnósticas, classificações). O
aparecimento da psicanálise, rapidamente adotada por muitos psiquiatras, introduziu
o dualismo na psiquiatria e tornou o diagnóstico e nosologia secundários, enfraquecendo
tremendamente o conceito de doença mental e sua experiência histórica. Contra isso
opunha-se Kraepelin e seus seguidores, que nessa
mesma época desenvolviam e aperfeiçoavam a nosologia psiquiátrica, refinando o
diagnóstico e introduzindo a classificação das doenças mentais, exercendo uma
significativa influenciando na psiquiatria européia. Com o
crescimento da psiquiatria americana após a II Guerra Mundial e seu domínio pelo
pensamento psicanalítico, as doenças psiquiátricas passaram a ser consideradas
como originárias de “conflitos intrapsíquicos”, atrasando consideravelmente os
EUA no progresso do método inaugurado por Kraepelin e
outros. A Europa não se rendera à Freud e continuava a ensinar nosologia
psiquiátrica através da fenomenologia. Aqui no Brasil adotavam-se as escolas
francesa, alemã ou inglesa, além da psicanalítica e sua oposição, o pavlovianismo, não havendo, de fato, uma escola brasileira,
mas “expoentes” que representavam as diversas escolas européias. Enquanto
a Europa fazia significativos progressos na psiquiatria, os EUA sucumbiam da
desorganização dessa especialidade, fragmentada em teorias psicanalíticas, com
alguns poucos grupos seguindo a vertente fenomenológica. Na década de 1970 vários
importantes papers
americanos chamaram a atenção para esse fato, e tinham como foco principal a
confusão da falta de critérios e metodologia para o diagnóstico e classificação
das doenças mentais. Dois importantes estudos mostravam definitivamente que os
americanos estavam super-diagnosticando doenças mentais ao contrário do resto
do mundo (Kendell, 1975; Kendel
et al, 1971; Sartorius et al, 1972). Um artigo, hoje
famoso, que teve por título “On being
sane in insane places” (Rosenhan, 1973) descreveu
como oito falsos pacientes foram admitidos em hospitais psiquiátricos americanos
apenas por referirem ouvir uma voz que ocasionalmente dizia “thud”. Apenas essa queixa, sem outros exames, foi
suficiente para interná-los como “esquizofrênicos”, mesmo que, logo após terem
sido internados passassem a se comportar e falar normalmente. Eles raramente
viam a equipe de psiquiatras e, após uma média de 19 dias, tiveram alta com o
diagnóstico de “esquizofrenia em remissão”. A
reação não tardou. Em 1980 saiu a publicação da terceira edição do “DSM: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders” (DSM-III ), da Associação Americana de
Psiquiatria, marcando o retorno da psiquiatria americana à linha kraepeliniana e procurando realinhar-se com a nona edição
da “Classificação Internacional de Doenças” (CID-9), da Organização Mundial de
Saúde. Essa versão marcou uma radical revisão do DSM-II, introduzindo
“novidades” tais como adoção de critérios diagnósticos baseados em evidências e
sua validação por meio de instrumentos. Nesse ponto, o DSM-III teve uma forte
influência do trabalho de Robins e Guze (1970). A
grande e radical novidade introduzida pelo DSM-III consistiu em abandonar toda
discussão sobre causalidade psicanalítica, eliminou o termo “neurose” da
nosologia psiquiátrica, adotou critérios validados para o diagnóstico, e
introduziu a abordagem multiaxial. O DSM pretendia ser, na origem, um
instrumento para auxiliar o diagnóstico, unificar a linguagem psiquiátrica e
validar instrumentos de pesquisa. Inesperadamente,
o DSM causou uma revolução na psiquiatria americana que afetaria a psiquiatria
mundial. Logo após sua publicação, o volume de pedidos foi enorme e a APA não
tinha como dar conta da demanda. Não se imaginava que uma classificação
psiquiátrica se tornasse um best seller!
A classificação foi imediatamente adotada não apenas por psiquiatras, mas por
profissionais que nada tinham a ver com essa especialidade, tais como
psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e advogados. Foi a partir daí que
o DSM-III e seus sucessores, os DSM-III-R, DSM-IV e agora o DSM-V, se tornaram
a definitiva e suprema autoridade em psiquiatria, violando o seu propósito
original de ser um guia auxiliar para o diagnóstico, pesquisa e linguagem psiquiátricas. Entretanto,
a consequência talvez mais crítica para a psiquiatria foi que, apesar da
inspiração européia do DSM, a psicopatologia perdeu sua importância para os DSMs e caiu ·
Os sintomas característicos para o diagnóstico
foram descontextualizados da sua descrição e inserção biográfica; ·
O DSM passou a ser usado como um livro texto de
psiquiatria, distorcendo a formação dos estudantes, reduzindo as doenças
mentais a listas de sintomas e retirando a história da doença e sua fenomênica,
consequentemente desumanizando o paciente e os tratamentos. Além
disso, essa classificação, como está sendo usado para o diagnóstico, tornou a
validade dos diagnósticos por tal expediente questionável. A
psiquiatria não é apenas uma ciência, mas também uma arte. Como ciência, ela
retira seu conhecimento da pesquisa clínica e da psicopatologia descritiva, esta
o seu instrumento de acesso ao mundo do doente. Sem a psicopatologia é
impossível compreender o nosso paciente, devolver sua humanidade e tratá-lo com
dignidade. Como arte, a psicopatologia exige empatia, experiência e
treinamento, o que numa época de tecnologias facilmente assimiláveis e de busca
por resultados rápidos torna-se menos interessante. A psicopatologia tende a
cair no esquecimento se instrumentos tais como o DSM passarem a ser a norma
psiquiátrica, e se isso acontecer a psiquiatria desaparecerá. Referências Kendell RE. Psychiatric diagnosis in
Kendell RE, Cooper JE, Gourlay AJ,
Copeland JR, Sharpe L, Gurland BJ. Diagnostic
criteria of American and British psychiatrists. Arch Gen Psychiatry . 1971;25:123–130. Robins E, Guze SB.
Establishment of diagnostic validity in psychiatric illness: its application to
schizophrenia. Am J Psychiatry, 1970;126:983–987. Rosenhan DL. On being sane in insane places. Science, 1973;179:250–258. Sartorius N, Shapiro R,
Kimura M, Barrett K. WHO interna-tional pilot study
of schizophrenia. Psychol Med . 1972;2: 422–425.
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