Fevereiro de 2012 - Vol.17 - Nº 2
Pensando a Psiquiatria
OS QUADROS PARANÓIDES QUERELANTES - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PSIQUIÁTRICO-FORENSES
Dr. Claudio Lyra Bastos
Os indivíduos que apresentam quadros paranóides litigiosos ou querelantes
se caracterizam por uma tendência incoercível ao conflito legal, razão pela
qual têm especial interesse forense. A lei se torna a sua arma e o fórum, o seu
campo de batalha. A menor provocação inicia uma bola de neve interminável
de queixas e denúncias. Em geral o problema se inicia com alguma decisão
desfavorável, que o indíduo considera injusta. O mérito da questão não faz muita
diferença, já que a sua visão da lei é estritamente autocentrada.
Em termos
psicopatológicos, a observação mostra que tais situações não costumam envolver pacientes
esquizofrênicos, que raramente dispõem de organização mental suficiente para
interpretar adequadamente os códigos jurídicos e interagir socialmente; assim, dificilmente
procuram o sistema legal. A maior parte dos casos tendem a ser constituídos por
indivíduos paranóicos (diagnosticados na categoria dos transtornos delirantes
persistentes), personalidades paranóides ou ainda alguns obsessivos graves com
tendências psicóticas. É importante notar que nenhum desses quadros apresenta
boa resposta terapêutica, sendo importante destacar que, em boa parte dos
casos, eles nem mesmo chegam a se ver como doentes. Assim não costumam buscar
ou aceitar nenhum tipo de tratamento. Esta constatação traz algumas
conseqüências importantes para a saúde pública, assim como para a segurança, a
ordem pública e a justiça.
Pacientes
querelantes não costumam freqüentar hospitais, ambulatórios nem consultórios.
São muito mais facilmente encontrados em delegacias e ouvidorias. Quando sofrem
avaliações psiquiátricas, estas geralmente são solicitadas em função das
denúncias infundadas e sucessivas que fazem contra vizinhos, condôminos,
colegas, autoridades, etc. Alguns sentem-se constantemente invadidos e espionados
pelos vizinhos, que os espreitariam por câmaras ocultas, microfones e antenas; chegam
a nos mostrar, apontando pela janela, onde se localizariam as poderosas
teleobjetivas que lhes estariam a perscrutar a intimadade e a vida sexual. Outros
se revelam firmemente convencidos de que foram secretamente implantados chips em seus próprios cérebros, por
ordem de autoridades corruptas do governo, diabolicamente mancomunados com
potências estrangeiras. Outros, ainda, entendem que todo o seu bairro estaria
envolvido em perigosas atividades vinculadas a feitiçarias e missas negras,
reunindo-se todos às altas horas para convocar demônios, entregar-se à
depravação, sacrificar crianças, beber sangue e conjurar espíritos malignos.
O repertório de
situações conflituosas produzidas em série por essas pessoas de difícil trato e
precário relacionamento social inclui desde chamadas emergenciais da polícia
durante a madrugada, reportando invasões, assaltos e estupros, às denúncias detalhadas
feitas às ouvidorias e às solicitações indignadas dirigidas às defensorias
públicas.
Amigos, membros
da família ou conhecidos com personalidades mais sugestionáveis ou frágeis
podem, por vezes, acabar por partilhar dessas crenças, por mais mirabolantes e
insensatas que sejam, compondo o quadro descrito por Lasègue e Falret, no
século XIX, com nome de folie à deux.
Alguns casos, especialmente quando envolvem atividades sexuais, podem
eventualmente ser levados a sério e ocasionar processos, por absurdos que sejam.
Observa
McManus (palestra "The Psychiatry of
Unusually Persistent Litigants",
apresentada na International Bar
Association Conference, Praga, 2005):
"The
social climate, particularly in America
and Northwest Europe has been described as a
“rights culture” or a “culture of complaint” where customers, clients or
patients are encouraged by the system and by legislation to pursue any
complaint they might have."
No passado, os
querelantes e os paranóides litigantes ocupavam uma significativa posição entre
os quadros psicopatológicos e despertavam interesse clínico e acadêmico. Mais
tarde, críticas sobre a patologização das queixas e da reinvindicação de
direitos esvaziaram o prestígio do quadro,
fazendo-o desaparecer da pauta dos congressos e das publicações.
De acordo com Lester, Wilson, Griffin
& Mullen (British Journal of Psychiatry, Unusually Persistent Complainants; 2004, 184, 352-356):
"Querulous paranoia ... has
virtually disappeared from the professional landscape. This decline occurred at
the very time that a proliferation of complaint organizations and agencies of
accountability were drawing more and more people into asserting their
individual rights through the pursuit of claims and grievances. Querulous
behaviour, as a result, far from declining, is on the increase, bringing with it
suffering for the querulous and disruption to the organizations through which
they seek their vision of justice."
Nos países de
língua inglesa existem mecanismos para evitar queixas infundadas, independente
da questão psiquiátrica. Tais queixas podem ser qualificadas legalmente como vexatious litigation. Assim
se denomina a ação judicial feita exclusivamente para perseguir o adversário,
independente de seu mérito. Pode assumir a forma de uma ação principal frívola
ou a apresentação repetitiva
e injustificada de
ações sem mérito, numa matéria
que poderia ser uma causa justa de ação. O litígio vexatório
é considerado um abuso do processo
judicial e pode resultar em sanções contra o agente.
Aqui, a
lentidão, a dificuldade de acesso e a reduzida eficácia do sistema tornam esses
casos menos comuns no âmbito judicial, mas certamente não sãp pequenos os
conflitos criados por esses indivíduos.
A progressiva
busca do sistema judiciário para queixas e denúncias é um fenômeno globalizado,
e assim tende a fazer aumentar as denúncias de fundo paranóico, criando
situações complexas e embaraçosas, tendo em vista que:
a) o simples
fato de que o queixoso revele alguma doença mental não invalida a denúncia em
si mesma;
b) se a denúncia é claramente
vexatória, inverídica ou absurda, pouco importa o fato de o queixoso ser doente
mental, no que se refere à conduta da autoridade policial ou judicial;
c) boa parte dos
querelantes não é civilmente incapaz;
d) boa parte
deles não faz ou não aceita qualquer tratamento psiquiátrico.
Uma questão
importante é que o querelante pode, eventualmente, vir a fazer uso de
violência, ou a ser vítima dela. Dizem Lester et
al.:
"Over half of the persistent complainants made
some form of threat of violence directed at the complaints professionals. Equally
troubling was the frequency of suicide threats. These threats explain the apprehensiveness
about personal safety expressed by many of the professionals
when
dealing with the unusually persistent."
O tema é
complexo e envolve ainda de forma intricada diversas questões culturais,
institucionais, políticas e administrativas que suscitam um sem número de
dúvidas e reflexões, ramificando-se em outros problemas.
A partir do
próximo mês apresentaremos alguns casos reais, adaptados de laudos periciais,
para ilustrar essas questões, com o objetivo de levantarmos uma discussão sobre
o tema. O primeiro relato que veremos foi confeccionado pelo Dr. Felipe Kenji
Sudo, médico psiquiatra perito do MPRJ, naturalmente expurgado de alguns
detalhes supérfluos e daqueles que pudessem permitir a identificação.
Um dos mais famosos casos foi o da
pré-escola McMartin, o mais longo e caro da história dos Estados Unidos. Ocorreu
na California em 1983, quando Judy Johnson, mãe de um menino de 2 anos e meio, alcoolista
e psicótica, acusou os donos da pré-escola de abusos sexuais, pedofilia,
orgias, libações de sangue, cultos satânicos, sacrifícios de animais, etc. O
processo só terminou sete anos depois, sem condenações.
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