Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

jULHO de 2010 - Vol.15 - Nº 3

Farmacoterapia

INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS EMPREGADAS NOS PRIMÓRDIOS DA PSIQUIATRIA BRAILEIRA

J. Romildo Bueno

Costuma-se creditar, e por vezes com razão, à década de cinqüenta do século passado (!!!) a aurora da psicofarmacoterapia  -  com o significado de  início de tratamentos quimioterápicos das doenças mentais –  diferenciando-a dos chamados tratamentos biológicos. E antes dessa época? ... o quê se fazia além dos tratamentos biológicos?

            Até inícios de 1960, era “voz corrente” que a psiquiatria brasileira dividia-se em duas grandes correntes: 110 e 220 volts ...

            O que há de verdade nisso? Muito e quase nada ...

            Por esses tempos, muitas coisas eram feitas além da convulso terapia elétrica: choque cardiazólico, coma insulínico, choque úmido ( insulina combinada à eletroconvulsoterapia), método total (piretoterapia obtida com abcesso de fixação por injeção intramuscular de leite fervido combinado com choque insulínico e eletroconvulsoterapia), sonoterapia (sono profundo induzido pela combinação de barbituratos, escopolamina e anti-histamínicos. Houve uma versão mais moderna onde escopolamina foi  substituída por fenotiazínicos e os anti-histamínicos por benzodiazepínicos ...), auto-hemo-raque terapia ( sangue do próprio paciente colhido de forma antisséptica, punção lombar, retirada da quantidade em mililitros de liquor e injeção de volume correspondente de sangue) ...

            Eram inventivos nossos ancestrais (ou será nehandertais? ...).

            À primeira vista pode parecer que a psiquiatria punia os pacientes devido sua impotência  em tratá-los.  O fatalismo diagnóstico imperava em todos os quadrantes e as neuroses eram psicanalisadas enquanto as psicoses eram asiladas; ninguém queria ser psicótico ...

            A rigidez do modelo asfixiava qualquer tentativa de mudança e até mesmo a praxiterapia desenvolvida pelos estudos de Simon em 1928 mostrava-se carente de apoio: ora o paciente “produzia”, expressava-se com o recurso da arte, ora tudo era interrompido pelos sucessivos surtos da doença ou, como nos casos de “defeito esquizofrênico” a “produção” se estereotipava, repetindo ad infinitum o mesmo tema.

            Luiz Cerqueira , fundador e primeiro responsável pelo Serviço de Terapêutica Ocupacional – TO – do IPUB mantinha coleções de esculturas, pinturas, rendas, colchas de retalhos e outras criações de patchwork e, com eles demonstrava a evolução da doença e seus períodos inter-críticos e salientava que,  antes dos “neurolépticos” o “aspecto desagregado” das criações era progressivo, ocorria uma “ecopraxia das próprias criações”, o paciente se expressava monotematicamente; mas com a “cloropromazina” havia como que uma “interrupção” no processo inexorável de deterioração intelectivo-cognitiva causado pelas “psicoses” e as obras criadas, artísticas ou não,  ganhavam nova “vida”, novas formas, novas cores.

            A “coleção Luiz Cerqueira” apresentava essa vantagem: obras dos mesmos artistas antes e após o advento de anti-psicóticos e de anti-depressivos.

            E o que se fazia antes de 1950?

            A própria “sonoterapia” – terapia pelo sono profundo induzido – proposta por Kläsi em 1922 foi “modernizada” por Azima em meados da década de cinqüenta e passou a utilizar a clorpromazina.

            Entretanto, desde 1934 quando Henrique Roxo escreveu “Tratamento dos nervosos e psychophatas” a contribuição brasileira, empregando princípios ativos de diversas plantas medicinais – algumas oriundas da medicina folclórica – misturados com o que havia de progresso nos chamados “métodos biológicos” contribuiu para que a aventura terapêutica de ambos – médicos e pacientes – mudasse  de rumo, de norte e de prumo ...

            Claro está que as técnicas terapêuticas desenvolvidas por Roxo e colaboradores sempre estiveram calcadas nas diferentes influências “teóricas” por que passou a psiquiatria brasileira e é sobre isso, e de uma maneira informativa que nos dispomos a apresentá-las e, eventualmente discuti-las.

            O mencionado livro de Henrique Roxo utilizou a classificação de doenças mentais proposta e adotada pela Sociedade de Psychiatria, Neurologia e Medicina Legal  e, dest’arte os “tratamentos” propostos seguem os quadros descritos pela classificação.

            Para melhor estabelecer as relações entre classificação, tratamento e “resultados” recorremos aos arquivos do Instituto de Psychopatologia – atual  IPUB-UFRJ – e também àqueles da secção de triagem do Hospital Nacional de Alienados – inaugurado por Pedro II e que mais tarde abrigou a  Reitoria da Universidade do Brasil (atual UFRJ).

            Diante de tais prolegômenos, cabe-nos registrar a modéstia de nossa empreitada: não se trata de fazer história, simplesmente de recortá-la e divulgar fatos já embolorados pela amnésia crônica de brasileiros e brasileiras de quaisquer profissões e atividades ...

            Inicialmente há que se reconhecer o mérito pioneiro e o otimismo de Henrique Roxo no que tange ao “tratamento de nervosos e psychopatas” pois julgava terem suas formulações  poder curativo, no sentido médico da palavra: de uma forma ou doutra melhoraram muito o cuidado dispensados aos doentes mentais.

            Da análise de suas “fórmulas magistrais” indicadas para as condições clínicas descritas na classificação da sociedade  pode-se inferir as medidas terapêuticas antes da publicação de seu tratado. Em algumas formulações consta o nome comercial da substância cujo nome químico colocamos entre parênteses.

Tratamento  da confusão mental

Tipo estuporoso

sangria – 300 ml

injeção de soro glicosado

prata coloidal

vacinas polivalentes

cardiazol ( pentametilenotetrazol  usado como cardiotônico)

“choques” (com peptonas e iodopeptonas – não confundir com convulsões)

Purgativos

Forma astênica

injeção de ouro coloidal

cacodilatos (arsenicais)

glicerofosfato de sódio

extratos de supra-renal, de hipófise e de cérebro

injeções de insulina (para estimular o apetite...)

auto-hemoterapia

Observação: quando essa forma é devida ao bromismo, utiliza-se dieta abundante, líquidos e cloreto de sódio.

Forma alucinatória

valerianato de atropina

extrato de cimifuga racemosa, de lúpulo e de alface

extrato de mulungu

salicilato de sódio por via venosa

barbituratos e hioscina

Forma de delírio agudo

opoterapia cardíaca

insulinoterapia

vacinas polivalentes

soro glicosado com adrenalina

óleo canforado

luminal (fenobarbital)

O capítulo confusão mental é o que possui a maior quantidade de fórmulas magistrais, o que nos faz supor serem os estados confusionais os  maiores responsáveis pelas internações havidas em essa época...

Nota-se a influência marcante de escolas européias variadas: opoterapia, sais coloidais de ouro e de prata, cardiazol, vacinas polivalentes, arsenicais, salicilatos e já se insinuando alguns fitoterápicos, como os extratos de alface (Lactuca sativa), erva de São Cristovão (Cimifuga racemosa), mulungu (Erythrina mulungu). O objetivo desses extratos era a sedação e o uso de salicilatos , arsenicais e metais coloidais devia-se à crença que a “confusão mental” representava um quadro tóxico, por vezes infeccioso, o que justificava o emprego de pentametilenotetrazol (cardiazol) como cardiotônico, uma vez que as infecções debilitam o coração. Sangrias e purgativos  tinham o propósito de depurar o organismo e as iodopeptonas causam hipertermia. As fórmulas magistrais tinham o sentido de “cercar” as pretensas etiopatogenias pelos sete lados...

Psicose tireóidea

Com duas vertentes: o syndromo thyreoidiano e o syndromo neurovegetativo

tratamento radioterápico associado à solução de Lugol (iodoterapia)

geneserina [fava de Calabar(Physostigma venenosum) rica em fisostigmina)]

e pílulas com a seguinte composição:

Luminal (fenobarbital)                2 cg

Extrato de alface                          10 cg

Extrato de lúpulo                           a a

Tomar 4 cada dia

Trata-se de combinação original essa mistura de sedativos com um alcalóide a geneserina, parente da fisostigmina, parasimpaticomimético indireto cujo mecanismo de ação e á inibição da acetilcolinesteráse e a solução de Lugol, largamente utilizada no hipotireoidismo. Essa formulação peculiar deve representar um “sinal dos tempos”: ao bócio ou “papeira” creditava-se debilidade mental ... a radioterapia (Rx) cuidava de eliminar possíveis picos  de hipertireoidismo ...

Alcoolismo

apomorfina – ou outro vomitivo como o acetato de amônia ou a poaya (Cephelis ipecacuanha)

extrato fluido de café ou injeções de estricnina (estimulantes psíquicos)

extrato fluido de Capsicum annuum (pimentão)  na dose de 1g/dia

Observação: na psicose alcoólica subaguda utilizar simultaneamente extrato fluido de Capsicum annuum, beladona e Cimifuga racemosa ou Casimiroa edulis (sapoti branco). Além disso, preconiza-se  o extrato gomoso de ópio associado ao julepo gomoso (láudano de Sydeham)

Dantes como hoje, o alcoolismo põe a nu um deserto terapêutico, aversivos ou vomitivos; ópio ou benzodiazepínico, que diferença há ...

Tratamento da esquizofrenia

Iodeto de cálcio                                 5g

extrato de mulungu                          10g

dito de alface                                      a a

dito de lúpulo                                     a a

A  formulação magistral acima era explicada no texto que ressaltava suas excelências: o lúpulo como anafrodísiaco, o alface como anticenetopático, o mulungu como o melhor dos calmantes  e o iodo como renovador textrino e estimulante de trocas materiaes.

Parece que para além das trocas materiaes existia um latente perigo de intercâmbios sexuais representado pela necessidade de um anafrodisíaco nas pílulas.

Ao lado do exposto, relatam-se benefícios da opoterapia com extratos de cérebro e de timo, da malarioterapia, da auto-hemoterapia e da piretoterapia vaccinal. Outra indicação precisa, e reiterada,  é o tratamento pello trabalho e pellas distracções...

Como se vê, Roxo antecipou em décadas o que atualmente se propõe nos CAPs da vida, apenas com mais mestria e valorizando o trabalho médico.

In ilo tempore et nunc  as esquizofrenias não mereciam os cuidados terapêuticos que se dispensavam às confusões mentais e aos

“Delírios systematizados allucinatórios”  que excluem a paranóia e os syndromos paranóides. Esse diagnóstico, segundo o autor, engloba o delírio systematizado allucinatório chronico, o delírio episódico dos degenerados, a paraphrenia e alguns casos de demência precoce, delírio systematizado dos alcoólatras ... dos débeis mentais ... a forma delirante systematizada da psychose de involução ...

Como se vê, nessa rubrica – que mais se assemelha a um diagnóstico espectral - entra a grande maioria dos diagnósticos propostos pelas modernas classificações empregadas por psiquiatras.

O tratamento básico para tão extenso diagnóstico é o valerianato de atropina na dose de um quarto de miligrama por mililitro em injeções diárias e raro é o doente que se não cura em poucos dias ...

Ao lado dessa prescrição, utilizava-se o salicilato de sódio  venoso, a beladona, injeções venosas de arsenicais e a galvanização do cérebro com baixa e alta freqüência.

Em não se conhecendo a eletroconvulsoterapia, teria Henrique Roxo mais uma vez se adiantado ao propor como tratamento dos delírios systematizados allucinatórios algo como ‘uma’ estimulação magnética transcraniana ?!??!!

Para os delírios chronicos  Roxo recomenda uma receita magistral proposta por seu mestre e antecessor Teixeira Brandão:

Cimifuga racemosa                        2 g

Iodeto de potássio                         5 g

Cloral hidratado                             10 g

Xarope de belladona (sem especificação de dose, parece-me que existia tal preparação “padronizada” no Instituto de Psychopathologia)

Interessante notar que Roxo enfatizava que nestes casos crônicos não se deveria empregar o brometo uma vez que a intoxicação pelo bromo – bromismo – cursa com quadro delirante-alucinatório de fundo paranóide.

Tratamento da mania

purgativo

sulfato de sódio

injeções de morfina (10 mg por empola)

brometo de sódio (ad libitum)

tintura de beladona  (sem especificação quanto à concentração)

Eram indicadas outras medidas terapêuticas como “banho morno prolongado”, mas para manter os pacientes na banheira eram necessárias injeções de luminal (fenobarbital) ou de bromidrato de hyoscina e, quando necessário se lançava mão do somnifenio ( mistura de dietil- e dipropenil- barbiturato com dietilamina, primeiramente usada por Klaesi em 1922 para seu método de “Dauernarkose” ou terapia de sono profundo).

Eram contra indicados o ópio e quaisquer de seus derivados visto que o “remédio provoca uma dilatação dos vasos cerebrais” e assim “haveria uma agravação do estado congestivo que é freqüente na mania.”

Como manutenção propunha-se a associação de cloral ou brometos ao meimendro (hyosciamus Níger) e também à Cannabis indica. Como calmante era prescrito o mulungu na dose de 2 g diários. Quando o doente continuava “ ‘resistindo’, 5 g diários de paraldeido são de alguma ajuda “(apesar da halitose provocada pelo sonífero e assinalada por Roxo).

            Avançado o nosso mestre  Henrique Roxo que desde a primeira década do infante século XX já prescrevia Cannabis indica para o tratamento de manias resistentes ...

            Tratamento da melancolia

laxativo

tintura de ópio

xarope de éter

que se somavam ao tratamento básico constituído por cacodilina e extrato fluido de damiana (Turnera diffusa), até nossos dias considerado como ‘excelente afrodisíaco’. Como se nota, a perda de libido de pacientes deprimidos já era reconhecida e valorizada. Além destes medicamentos recomendava-se ainda o extrato fluido de coca.

Em outras palavras, cercava-se a constelação sintomática de melancólicos com psico-estimulantes, afrodisíacos e sedativos, algo como se misturar à bupropiona, os benzodiazepínicos e um dos inibidores duais de recaptura neuronal.

A escola de Roxo norteava a escolha terapêutica na inabalável crença de localismo cerebral: cada área desempenhava uma função, a “disfunção” era corrigida pela intervenção terapêutica ou como propõe Roxo: para cada sintoma haveria uma lesão cerebral correspondente e, em não a havendo,  a disfunção se  localizaria nas ‘funções hormonais tróficas’,  o que justifica o emprego da opoterapia – extratos de glândulas e de órgãos e que cujos métodos de extração e indicações clínicas foram sistematizados por Oliver & Schaffer na última década do século XIX.

O localismo cerebral defendido pelos neuropsiquiatras alemães foi mais tarde, bem além do princípio do prazer, denominado de Hirnmythologie = mitologia cerebral ...

 ... continua no próximo episódio ... sempre no mesmo canal ...


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