Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

Janeiro de 2010 - Vol.15 - Nº 1

Farmacoterapia

SOBRE DESASTRES NATURAIS, TERREMOTOS E HAITI

J. Romildo Bueno

 

O terremoto que atingiu o Haiti, a exemplo de outros desastres “naturais” como as  enchentes do  Tietê ou do Itajaí, mobilizou e comoveu “toda a população” de nosso planeta. Como não poderia deixar de ocorrer os idiotas de plantão vomitaram a chorumela de sempre: é a resposta da mãe natureza às agressões perpetradas pelo ‘bicho HOMEM’... como se possível fosse podermos mover placas tectônicas ... felizmente ainda não há técnica disponível para tão hercúlea tarefa se não fá-lo-íamos ainda que só para testar ... por outro lado, explicações religiosas foram explicitadas para salientar nossa impotência perante os desígnios dos deuses ... houve até um televangelista que vinculou o terremoto à opção dos haitianos pela liberdade, igualdade e fraternidade ...      

Claro está que um desastre de tamanha proporção atingiu as categorias profissionais da área da saúde, aí inclusas as especialidades do setor psi: psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e afins; diversas entidades manifestaram-se, ofereceram solidariedade e os acompanhamentos de praxe e como de costume só mesmo os MÉDICOS SEM FRONTEIRAS  e os militares compareceram ao local do ‘brutal evento’ ... c’est la vie ...

Todos os profissionais da área da saúde deixaram claro que as conseqüências sanitárias são inevitáveis assim como a grande maioria dos sobreviventes enfrentará os chamados transtornos do stress pós-traumáticos. Daí os meios de comunicação dar espaço aos chamados especialistas... ouçamos suas opiniões estampadas em jornais e, portanto públicas:

‘ ... quando se perdem no modo imediato (como no terremoto), as referências sígnicas e simbólicas que nos constituem, o psiquismo tende a se desligar delas e procurar , rapidamente, inconscientemente, outras ligações ...’ ‘ ...um terremoto como o do Haiti se encaixa na definição psicanalítica de um acontecimento traumático...que ameaça a integridade do sujeito e do qual ele não consegue dar conta simbolicamente...não consegue transformar em palavras ...’ ‘ ... nessas horas percebe  que ele tem mais força em grupo do que isolado, surgem os gestos de solidariedade ...’ ‘ ... a cobertura que só aborda as manifestações mais visíveis da dor pode acabar apresentando as vítimas como não-sujeitos, diminuindo nossa capacidade de sentir empatia ...’ ‘ ... os sobreviventes de eventos do tipo muitas vezes têm que lidar com traumas e com a chamada “culpa do sobrevivente”: a angústia por ter escapado enquanto pessoas amadas morreram ...’ ‘ ... os chamados elementos sociais habituais( laços familiares, poderes instituídos, ordens introjetadas, supereu ativo etc) se rebaixam, ao menos temporariamente, perdem sua importância e se substituem por outros “elementos” pulsionais ... ’ ‘ ... o trauma só se resolve pela fala ...’

Nem um militante do setor psi discordaria do acima exposto ... a não ser um ‘antigo psiquiatra clínico’ versado em técnicas psicofarmacoterápicas e que crê que tais platitudes ex-post-facto são tão ocas quanto as explicações divinas. Não existe armadilha mais manjada que o dizer que ‘o trauma só se resolve pela fala’, isso não passa de lugar comum, o homem usa a fala como instrumento tal qual o açougueiro usa suas facas para destrinchar carnes e ossos...

Quais as providências tomadas na vigência de stress pós-traumático AGUDO secundário aos desastres, naturais ou não?

Primeiramente a comunicação do fato: em pílulas cada vez mais amargas: essa prática aumenta o trauma, amplifica a dor... ( atenção revisores: dois pontos dentro de dois pontos é prática muito usada, vide Guimarães Rosa...).

Segundamente, monta-se  um comitê de recepção em algum local disponível onde os primeiros cuidados são dispensados: socorro médico, ajuda psicológica, assistência social, cuidados básicos como vacinação e medidas higiênicas, distribuição de alimentos e amparo financeiro ( não sejam cínicos, o dinheiro é nosso meio de troca...).

Terceiramente é feita a triagem daqueles que apresentam claro transtorno psíquico e esses sobreviventes ao desastre ou os parentes dos ‘desaparecidos’ são estimulados a resolver o trauma falando sobre ele, expondo suas dores e as repisando (uma tortura mnêmica infinita...).

Quaternariamente são expressas a solidariedade e a piedade, coisas pequenas face ao fim maior que é a morte...

Por isso é que os resultados positivos, benéficos de tais intervenções terapêuticas são tão escassos, o agravamento do stress e sua cronificação são a regra. Uma vez estabelecido, cronificado, o stress segue seu curso seja se transformando em pós-traumático seja desencadeando doença depressivo-ansiosa ou depressão franca.

E por que tal resultado é tão previsível?

Quais as características marcantes do transtorno de stress pós- traumático?

Lembranças perturbadoras recorrentes e intrusivas do evento, incluindo imagens, pensamentos ou percepções ... sonhos recorrentes ... agir ou sentir como se o evento traumático estivesse acontecendo ... intenso sofrimento psicológico à exposição de dados internos ou externos que rememoram o evento ... achatamento afetivo ... insônia ... irritabilidade ... dificuldade de concentração ... permanência da memória  que não  se desgasta nem some ...

Esperar a cura pela palavra se essa só faz reavivar o stress recém atravessado é desperdício de esperança, gastança indevida de sentimento, perda de tempo...

... e de dinheiro ... e de recursos que poderiam ser melhor utilizados em situações de desastre ...

Qual a alternativa?

Sedação prolongada e administração de ansiolíticos já se revelaram ineficazes, uso de antidepressivos demanda tempo para aparição de efeitos terapêuticos, estabilizadores do humor só funcionam após período de latência, emprego de sais de lítio idem, idem na mesma medida.

A primeira impressão é a de estarmos no mato sem cachorro ou então com um jacaré na coleira...

Essa sensação mudaria se déssemos atenção à experiência de países como Cuba ( e seus furacões...), China e Irã e Turquia e Albânia e Bulgária ( e seus terremotos...) ... é, Albânia sim senhor,  e isso desde os tempos de seu grande líder Enver Hoxa ... e é isso também, a Bulgária existe... basta se recorrer a “O púcaro búlgaro” ...

E que tipo de experiência foi acumulado nesses países tão terceiro mundistas???

A experiência da escassez de recursos humanos, psicológicos, psiquiátricos e ... de recursos financeiros, ça va sans dire ...

Nesses países, na vigência de desastres naturais aqueles sobreviventes, parentes, amigos que apresentam o apático desespero do stress pós-traumático recebem inicialmente uma injeção intramuscular de hidrocortisona na dose de 100 mg e só depois são encaminhados para outros tipos de atendimento.

E não se trata de mais uma manobra da indústria farmacêutica para forçar o uso de remédios: a hidrocortisona – cortisol sintético – foi sintetizada em 1954, sobre tal produto não mais existem patentes ou direitos de fabricação e custa tão barato que é quase inexistente no ‘arsenal terapêutico’ da maioria dos países ‘capitalistas’ ...

Será uma ‘empulhação’? ou uma ressurreição da hidrocortisona como ‘panacéia universal’, um modismo da década de cinqüenta?

Essa prática deve-se ao mais científico dos métodos: tentativa e erro e se originou a partir das observações empíricas sobre as ações da hidrocortisona sobre a memória..

         Uma sobrecarga de cortisol circulante interfere com o funcionamento do hipocampo e, conseqüentemente sobre as funções mnêmicas ... ‘elementar, meu caro Watson’ ...

         Claro está que não se pode manter o esquema terapêutico para além da dose única: doses altas e repetidas de qualquer glicocorticóide irão bloquear a liberação de ACTH e também os receptores GR1 e GR2 que regulam a síntese e liberação de serotonina na rafe mediana,  o que conduziria ao aumento do stress, de ansiedade e erupção de quadro depressivo.

         Não há milagre, é pura neuropsicofisiologia: sobrecarga transitória de cortisol por ação hipocâmpica, bloqueia parcialmente a memória imediata!

         E para aqueles cuja memória imediata e traumática é um martírio, a hidrocortisona é um alívio indescritível.

         E por que tal método não é empregado nos países desenvolvidos e/ou em desenvolvimento (talvez fosse melhor chamá-los de ‘países anões’ pois enquanto ‘se desenvolvem’ mantém a distância - a ‘altura’ -  para os já desenvolvidos)?     

         Esse é mistério insondável...

         Dizem os ‘papas’ da neuropsicofisiologia que não há como avaliar os efeitos de dose única de hidrocortisona, não há estudo duplo-cego comprobatório de tal ação (aliás, como se fazer um estudo duplo-cego em situação de desastre? ... um pirulito p’ra quem encontrar a resposta correta ... )

         Que não se arreliem os adeptos das psicoterapias: após o efeito imediato da hidrocortisona os sobreviventes estarão mais aptos para explorar seu ‘inconsciente individual ou coletivo’ ... seus efeitos são transitórios como a vida ...

         Creio correta a assunção que a solidariedade é tão mais eficiente quanto mais custosa. O solidário quando gasta mais, quando é mais piedoso guarda maior distância, é mais superior que os que carecem de sua ajuda ... talvez por isso necessário se faz falar em bilhões quanto se trata de ajudar o próximo ou o outro ... uma espécie de proteção para que isso não me aconteça: ‘quem dá aos  pobres empresta a deus’ ...

        

         “Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar se querendo o mal, por principiar” ( Grande sertão: veredas’ – João Guimarães Rosa )   

 


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