Volume 14 - 2009 Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini |
Maio de 2009 - Vol.14 - Nº 5 Farmacoterapia CRÔNICA DE UMA FALÊNCIA ANUNCIADA J. Romildo Bueno Conforme já assinalado por diversos pesquisadores da área, a situação de pesquisa clínica difere radicalmente da prática clínica. Para a pesquisa exigem-se rígidos critérios diagnósticos de inclusão que diminuem o tamanho da população estudada – a amostra – e os critérios de exclusão são bem definidos, as chamadas co-morbidades psiquiátricas e as intercorrências clínicas são evitadas visando uma homogeneidade do universo pesquisado que destoa da prática clínica comum. Dessa forma, questiona-se desde a década de oitenta do defunto século se os resultados obtidos na chamada FaseIII da pesquisa com psicotrópicos seriam ou não relevantes para a prática clínica diária. A fase III consiste de estudos controlados em que a substância investigada – um futuro medicamento – tem sua eficácia comparada contra placebo e com os efeitos terapêuticos de substâncias de reconhecida eficácia e segurança. Para que os resultados sejam válidos, os pacientes são selecionados na população geral e, muita vez, recorre-se a convocações na imprensa leiga ou em hospitais gerais, isso é, o número de pacientes que espontâneamente procuram tratamento é mínimo... e essa redução deve-se à presença de co-morbidades psiquiátricas ou de doença clínica subjacente ou concomitante e, conseqüentemente, à vigência de outros tratamentos em andamento que poluem a amostra. Sumariando: a amostra selecionada para pesquisa não representa o universo dos que padecem da doença-alvo, é um conjunto de pacientes enviesado, viciado. A justificativa apresentada para tal viés se pauta na uniformidade diagnóstica, relativa higidez dos selecionados e sua possibilidade de tolerar as doses pré-determinadas para a duração do estudo de curta duração, fixada entre quatro e oito semanas. É correto ressaltar que esses estudos de fase III são exigidos pelas agências de registro e licenciamento de medicamentos como a FDA e a EMEA e com isso fica claro que a ausência de obrigatoriedade deixa à discrição dos fabricantes a realização ou não de estudos prolongados – seis meses a um ano – desejáveis para verificar manutenção do efeito terapêutico, toxicidade a médio e longo prazo, incidência real de efeitos colaterais, síndrome de abstinência (eufemisticamente denominada de “descontinuação”...), sustentada superioridade sobre o placebo. As dificuldades inerentes aos estudos duplo-cegos foram já questionadas por Kuhn (1) que sugeriu que mais problemas que respostas adviriam de sua realização, mas ao menos no presente é impossível a realização de estudos naturalistas, de longa duração visando apenas o licenciamento de dada substância ativa: não só pelo custo, mas pela validade de patentes e elevado grau de competição entre os diversos fabricantes. É no mínimo intrigante que cheguemos ao século vinte e um, logo após a década do cérebro da ONU com a co-existência de “duas psiquiatrias”: uma voltada à pesquisa aplicada e dirigida para a liberação comercial de novos medicamentos e outra destinada a verificar a utilidade dessas substâncias na prática clínica, demandando perda de tempo e esforço redobrado para um único objetivo que é o correto tratamento dos pacientes. Acontece que a pesquisa psicofarmacoterápica é que determina as tendências de intervenção terapêutica, é formadora de opinião! Que tipo de opinião, qual sua validade e seu alcance serão confirmados ou não quando os clínicos por ela influenciados passarem a utilizar os medicamentos em condições normais de temperatura e pressão... a tautologia explica melhor a situação que as evidências que deveriam provar algo! Claro está que tal estado de coisas é insustentável, não se pode comprovar um pré-requisito com a ação por ele autorizada! Um artifício utilizado é o de se lançar mão de evidências multiplicadas para validar a prova primeira: a esse truque denomina-se meta-análise isto é, procedendo-se a análise sistematizada de um dado número de trabalhos realizados com o mesmo método comprova-se que a premissa contida na primeira pesquisa – a substância X é superior ao placebo no tratamento dessa ou daquela condição – é verdadeira! Parece cômico, porém é o que mais se publica, a hipótese inicial é confirmada pela repetição de pesquisas realizadas com o mesmo rigor de métodos e critérios de inclusão e exclusão que se repetem ad nauseam. Não há como se verificar se a hipótese é confirmada se o espaço de observação é estendido, nem é possível descartar-se a hipótese se os resultados forem negativos. E quando se compara a substância X com um medicamento estabelecido a situação não se altera: continuamos presos às deficiências do método sem usufruir de seus recursos. Nessa encruzilhada misturam-se os interesses dos fabricantes de medicamentos, a exigência universitária de se publicar sempre e cada vez mais – publish or perish -, a ganância pelo lucro fácil e certo, a vaidade pessoal e os benefícios secundários como viajar de primeira classe e se hospedar em resorts já que cinco estrelas não bastam...
O império contra ataca...
Esse absurdo, digno de um Ionesco de boa cepa, começou a ser denunciado quando um grupo de pesquisadores-americanos-formadores-de-opinião teve suas finanças vasculhadas: algumas falcatruas foram expostas como sonegação de imposto de renda, usar o nome da instituição em pesquisas sem se recolher o que caberia à fundação ou congênere, receber dinheiro ou ações para se criar ou se reverter tendências de prescrição y otras cositas más, por supuesto... O golpe foi sentido no conjunto das instituições acadêmicas, envolvendo pesquisadores que nunca haviam participado desse já conhecido invisible college sem cujo nihil obstat nem um medicamento novo seria licenciado. Um leitor menos distraído notaria uma monótona repetição de nomes a afirmar que X é melhor que Y que, por sua vez é igual a Z salvo pela ocorrência de alguns efeitos colaterais. È uma ciranda de publicações feitas principalmente no hemisfério norte, uma espécie de rodízio em que um medicamento é avaliado sempre pelos mesmos grupos de pesquisadores que, por acaso participam dos simpósios patrocinados pela indústria nos mais badalados e freqüentados congressos do mundo científico... Pois bem, duas novidades: a Associação Psiquiátrica Americana – APA – acaba de anunciar que os “simpósios patrocinados pela indústria (com farta distribuição de café-da-manhã ou de lanche) não mais serão realizados em seus congressos anuais e o prestigioso American Journal of Psychiatry em seu último número publica o instigante artigo “CAN PHASE III TRIAL RESULTS OF ANTIDEPRESSANT MEDICATIONS BE GENERALIZED TO CLINICAL PRACTICE? A STAR*D Report” (2) A discrepância entre as meta-análises realizadas logo após o lançamento de um medicamento e os resultados e efeitos colaterais coletados após cinco ou mais anos de uso clínico normal são de tal modo gritantes que parece tratar-se de duas substâncias diferentes. Um exemplo: a incidência de ‘disfunções sexuais’ nos estudos “fase III” alcançava 5 a 8% dos pacientes enquanto após cinco ou mais anos de emprego clínico normal tais disfunções se situavam entre 45 e 56% dos que recebiam tratamento. O mesmo observa-se no item eficácia- resposta terapêutica alcançando cerca de 60% dos pacientes selecionados para os estudos “fase III” de curta duração e que não passa dos 40% daqueles que procuram tratamento espontâneamente. A conclusão do estudo é auto-explicativa:...”Phase III trials do not recruit representative treatment-seeking depressed patients... broader phase III inclusion criteria would increase the generalizability of results to practice…(and thus)) reducing the placebo response…” Apesar das limitações do estudo os números são bastante eloqüentes: mais de 4.000 pacientes submetidos a triagem, 2.855 foram selecionados. Desse total, 22,2% (635) satisfaziam os critérios para inclusão em ensaios clínicos do tipo fase III e a amostra foi denominada de “estudo de eficácia”, 2.220 (77,8%) que não satisfaziam esses critérios foram denominados de “não-eficácia” – ou os que procuram tratamento - e do total apenas 21 pacientes não foram classificados em uma ou outra amostra. Os instrumentos de avaliação clínica foram os seguintes: escala de Hamilton para depressão (HAM-D), Escala de avaliação de doenças concomitantes (CIRS), Inventário Rápido de Sintomas Depressivos (QIDS) e o Questionário para Triagem de Diagnóstico Psiquiátrico (PDSQ-DSM-IV). O tratamento selecionado foi o citalopram em dose variáveis entre 20 a 60 mg/dia e a escolha se baseou na baixa incidência de sintomas de abstinência (“síndrome de ‘descontinuação’) quando da interrupção do uso do medicamento. Foi escolhida a oitava semana de tratamento para se comparar os resultados nas duas amostras, tempo de tratamento necessário afastar o efeito placebo de maneira mais correta. Sabe-se que o efeito placebo é mais evidente nas seis primeiras semanas de uso de substâncias psicotrópicas. Os resultados, ressaltando novamente as limitações do ensaio clínico, demonstram as diferenças entre as duas amostras: amostra eficácia – resposta terapêutica = 51% remissão = 34,4% amostra ‘não-eficácia’ – resposta terapêutica = 39,1% remissão = 24,7% As diferenças de resultados entre as duas populações estudadas, além de estatíscamente significativas, provam que os critérios de inclusão na seleção de pacientes para ensaios clínicos do tipo fase III mascaram a “realidade terapêutica” da prática clínica diária! Trocando em miúdos, tais ‘critérios’ escolhem pacientes com menor tempo de doença depressiva e menor carga genética: ancestrais sem depressão ou em número reduzido. Na seqüência, esses pacientes apresentam um número menor de tentativas de suicídio, de co-morbidades (principalmente no tange aos transtornos de ansiedade generalizada –TAG) e uma quase ausência de características atípicas. Quase que uma “amostra marciana’, dessas que não se encontra na clínica cotidiana... Nessa amostra, tão criteriosamente escolhida a ocorrência de efeito placebo é bastante superior à verificada na população normal de deprimidos que procura tratamento. Thase (3) já demonstrara a inutilidade de meta-análises na demonstração de maior eficácia antidepressiva dos inibidores de recaptura de serotonina e de nor-adrenalina (ISRSN) quando contrapostos aos inibidores seletivos de recaptura de serotonina (ISRS): a igualdade de efeitos terapêuticos põe abaixo o mito de maior efeito antidepressivo dos ISRSN, exceção feita à monocloroimipramina...
Conseqüências...
A primeira e muito grave: os ensaios clínicos do tipo fase III só têm serventia para se determinar a eficácia de um composto para fins de seu licenciamento. Em não podendo se basear nos estudos clínicos fase III para orientar sua práxis, o psiquiatra clínico nem deve perder seu tempo em lê-los: a natureza agradece a quantidade de árvores que serão poupadas na impressão de tantas separatas... A segunda, e mais interessante: as meta-análises que servem de base para a elaboração de ‘guide-lines’, algoritmos e diretrizes de tratamento só utilizam estudos clínicos controlados e padronizados – os ensaios clínicos do tipo fase III – o que as torna... inválidas!!! Sem o suporte dos ensaios clínicos controlados as badaladas ‘guide-lines” não existem, são uma obra de ficção científica! Mal estávamos, pior ficamos: torna-se urgente rever os guias terapêuticos, as indicações clínicas exatas e a incidência de efeito placebo para cada um dos anti-depressivos de uso corrente. Tarefa árdua e que só será possível se baseada em estudos de populações de pacientes que buscam tratamento, tais quais aqueles que chegam aos ambulatórios e consultórios psiquiátricos desse globo terráqueo... Resta convencer os fabricantes de medicamentos... Esses estudos – selecionando pacientes que buscam ajuda terapêutica – demandam mais tempo, são mais caros e devem ser feitos em condições normais além dos feitos ambientes selecionados como os das clínicas universitárias. Isso implica na criação de centros de pesquisa não-universitários por sua vez, demanda a formação de pesquisadores que não sejam professores universitários. 2009 marca o fim da idade da inocência em pesquisa psicofarmacoterapêutica...
Referências
1 – Kuhn,R in Kielholz, P (Ed) – Depressive Illness – An International Symposium (p 207) – 1972, Hans Hubner Publishers, Bern, 302 pp 2 – Wiesniewski, S.R.; Rush, A.J.; Nieremberg, A.A. et allii – Can Phase III Trial Results of Antidepressant Medications be Generalized to clinical Practice? – A STAR*D Report – 2009, 166: 599-607 3 – Thase, M. – Are SNRIs more Effective than SSTIs? A Review of the current state of the controversy – Psychopharmacol. Bull. 2008, 41(2): 58-85
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