Volume 13 - 2008
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Junho de 2008 - Vol.13 - Nº 6

História da Psiquiatria

Psiquiatras e Comunistas. 2. Dyonélio Tubino Machado

MD. Walmor J. Piccinini
Psiquiatra.
Professor da Fundação Universitária Mário Martins.
Pesquisador da História da Psiquiatria Brasileira

 

 

Tenho em minhas mãos a décima primeira edição do livro Os Ratos, de Dyonelio Machado. Essa edição nos foi proporcionada pela Editora Ática de São Paulo em 1987, dois anos depois da morte do escritor gaúcho. A Guisa de Prefácio são reunidos depoimentos e informações sobre Dyonélio. Um depoimento generoso é de Érico Veríssimo. Perguntado sobre o que pensa do escritor Dyonélio Machado assim respondeu: “De vez em quando leio algum crítico afirmar que quem primeiro fez a ficção urbana no RS, fui eu. Engano. Quem o começou (salvo prova em contrário) foi Dyonélio Machado, com um livro de contos: Um Pobre Homem”. A Folha da Tarde de PA/RS (3/07/1970) continua a entrevista: - Na sua opinião, que dirá dele a posteridade?

-Seja como for, quando nossa geração tiver desaparecido fisicamente da face da Terra, é possível que um dia um crítico, se essa espécie ainda existir, buscando num arquivo eletrônico audiovisual os livros que se escreveram no Brasil entre as décadas de trinta e as de setenta, venha a descobrir os romances de Dyonélio machado e, parafraseando o belo final de O Louco do Cati, pense, diga ou escreva: “Só agora se vê como esse escritor era importante”. Dessa entrevista podemos concluir alguns pontos: o primeiro é que há um reconhecimento de Érico Veríssimo da obra de Dyonélio, ao contrário de algumas afirmações que as relações entre os dois não eram boas por supostas críticas de Érico quando do lançamento de Os Ratos. A segunda é a afirmação de Érico que no futuro haveria um “arquivo eletrônico audiovisual”, prognóstico feito em 1970, muito antes da internet, dos bancos de dados eletrônicos dos dias atuais. A terceira é a reafirmação de Dyonélio como grande escritor. Condição reconhecida por outros grandes nomes da literatura brasileira como Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Gilberto Amado e Moysés Velhinho. Cyro Martins, escritor, psicanalista, colega na psiquiatria do Hospital Psiquiátrico São Pedro, traça um perfil psicológico de “Os Ratos’ e na conclusão diz o seguinte: Este livro mostra mais uma vez o quanto os poetas se adiantam aos cientistas quando se trata dos “fundos ignorados” da alma humana”. (Do Mito À Verdade Científica. Editora Globo, Porto Alegre/RS-1964).

No Pequeno Dicionário da Literatura Brasileira há essa pequena biografia.

Machado, Dyonélio – Biográfico, crítico e bibliográfico.

Nasceu em 21 de agosto de 1941 em Quarai, RS. Diplomou-se em 1929 pela Faculdade de medicina de Porto Alegre, especializando-se em Psiquiatria. Dedicou-se também ao jornalismo, como redator e, posteriormente, diretor interino do Correio do Povo, de Porto Alegre. Exerceu o mandato de deputado no RS, depois do Estado Novo. Dyonélio machado alcançou notoriedade com OS RATOS, publicado em 1935 no Rio de Janeiro, logo após ter sido premiado, juntamente com obras de Érico Veríssimo, Marques Rabelo e João Alphonsus, em concurso de repercussão nacional. Nesse romance, descreve o dia angustiado de um modesto funcionário público às voltas com o problema de conseguir dinheiro para pagar, na manhã seguinte, a conta do leiteiro. A opressiva banalidade do episódio e o desfibramento moral de seu protagonista são ressaltados, com muita propriedade, através de um pontilhismo introspectivo, que se demora na reconstituição minuciosa das pequenas misérias e frustrações do cotidiano.

Outras Obras do autor: Contos: Um pobre Homem (1927).

Romances: O Louco do Cati (PA, 1942); Desolação, Rio 1944; Passos Perdidos, SP (s.d.); Os Deuses Econômicos, Rio, 1966.

 

No centro de Porto Alegre, na Avenida Borges de Medeiros, entre a Rua da Praia e a Av. Salgado Filho fica o Edifício Sulacap que ocupa quase todo quarteirão. Na primeira metade do século XX, era o endereço elegante de Porto Alegre. Foi ali que visitei Dyonélio Machado, conhecia seu filho, o psiquiatra e psicanalista Paulo Machado, falecido. Paulo foi aluno da primeira turma do Curso de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFRGS, conhecido como Curso do David (David Zimmermann-http://www.polbr.med.br/arquivo/wal0804.htm). 

Dyonélio ainda se mostrava ligado ao que acontecia no mundo psiquiátrico e nosso assunto foi sobre pacientes comuns. Já conhecia sua fama como escritor, tinha alguma lembrança da sua atividade política e como ex-diretor do Hospital Psiquiátrico São Pedro (1957-58).   Quando decidi escrever sobre psiquiatras comunistas, seu nome foi o primeiro que me veio na mente. E sua história é surpreendente, vamos tentar entender como foi que um menino pobre de Quarai, órfão aos 7 anos, conseguiu enfrentar condições muito adversas, construir uma vida honrada e com realizações de grande mérito.

Quarai é uma cidade distante de Porto Alegre, na fronteira com o Uruguai e foi lá que nasceu Dyonélio Tubino Machado no dia 21 de agosto de 1895. Seu pai se chamava Sylvio Rodrigues Machado e a mãe era Dona Elvira Tubino Machado. O casal teve dois filhos, Dyonélio e Severino. Muito cedo a tragédia se abateu sobre essa família. O pai, Sylvio, foi assassinado a facadas e a família, numa época em que o estado era ausente, ficou em má situação econômica. Nessa época difícil começa a desabrochar a força de caráter do jovem Dyonélio que, ainda criança trabalhava para ajudar no sustento da casa e poder estudar. Vendendo bilhetes de loteria, monitorando colegas necessitado e trabalhando como servente no Semanário “O Quarai”, nesse processo foi estabelecendo vínculos de amizade e descobrindo o gosto pelo jornalismo. Chegou a fundar o próprio jornal que chamava O Martelo. Cheguei a ler que isso mostraria seu interesse pelo comunismo o que é improvável pois o jornal era de 1911 e a Revolta de Outubro na Rússia foi em 1917. Com todas as dificuldades enfrentadas, já maduro, com 29 anos, entrou para o Curso Médico onde se formou em 1929, nessa época tinha 34 anos e já escrevera um livro de contos. No ano seguinte foi para o Rio de Janeiro e se especializou em psiquiatria com o Professor Antonio Austregésilo.

Provavelmente no Rio de Janeiro descobriu o comunismo. Em 1934 traduziu o livro de Eduardo Weiss, Elementos de Psicanálise, leitura obrigatória, na época, para a introdução à psicanálise o que o tornou um dos pioneiros nessa área de conhecimento em Porto Alegre. Ele, pessoalmente, nunca se tornou psicanalista, fazia psicoterapia de orientação dinâmica e, mesmo comunista, não adotou a teoria pavloviana que Stalin tornou obrigatória para a psiquiatria soviética em 1951.

A Psiquiatria era sua fonte de sustento, mas desde jovem freqüentava grupos de intelectuais, adorava o jornalismo e freqüentava uma roda de jovens intelectuais da qual faziam parte, Celestino Prunes, depois um dos primeiros psicanalistas de Porto Alegre, Eduardo Guimarães, Alceu Wamozy, poeta e Almir Alves, que se tornou neurocirurgião, estagiou nos EUA, trouxe a eletroencefalografia para Porto Alegre e realizou a maioria das cirurgias de lobotomia no Hospital São Pedro. Alguns tratam esse grupo como a turma da Praça da Harmonia. Dyonélio fala na República do Império trocadilho, pois os estudantes viviam numa república no beco do império, dai o nome de gozação.

Ainda como estudante de medicina Dyonélio escreveu um livro de contos “Um Pobre Homem”(1927). Em 1935, já com 40 anos de idade lança “Os Ratos” que é considerado sua obra prima e muito considerado nos meios intelectuais, Guimarães Rosa o considerava um dos cinco principais livros de literatura brasileira.

"Os Ratos", que nasceu de um pesadelo relatado a Dyonelio por sua mãe, conta a história de um pobre barnabé, Naziazeno Barbosa, que perambula um dia inteiro pelo centro de Porto Alegre atrás de uns trocados para saldar uma dívida improrrogável com o seu leiteiro. Ao cabo dessa extenuante jornada de sobressaltos e humilhações, quando se deita para dormir, à noite, Naziazeno deixa o dinheiro do leiteiro sobre a mesa da cozinha, para ser recolhido pelo implacável cobrador na manhã seguinte. Exausto, meio acordado, meio adormecido o pobre Naziazeno julgava que os ratos estão roendo o maço de dinheiro, mas já não encontra forças para saltar da cama e correr à cozinha a tempo de evitar um desastre. O pesadelo do dia torna-se pequeno comparado com a angústia e o sofrimento dessa situação absurda.

 

Seguiu produzindo romances como “O Louco do Cati”(1942), “Deuses Econômicos”(1966); ‘Endiabrados”(1980); A Fada”” e o “Estadista: nos anos 80.

 

Além de escritor, como já referimos, Dyonélio foi um dos fundadores da Associação Riograndense de Imprensa. Foi colaborador e Diretor do Correio do Povo, jornalista do Diário de Notícias. Com o historiador Décio Freitas, em 1946, fundou o jornal Tribuna Gaúcha que se tornou porta-voz do Partido Comunista Brasileiro. Atestando o caráter de Dyonélio Machado, Décio Freitas conta que, ao deixar a militância no PCB, seus antigos companheiros o repudiaram e lhe “viravam a cara”, Dyonélio sempre o ratou com o mesmo respeito e consideração.

A tinta de impressão corria em suas veias. Em 1921, participa, em Porto Alegre, do lançamento do jornal "A Informação". Naquele mesmo ano, casava com dona Adalgisa Martins, professora de piano na sua Quaraí.

Uma frase do jornalista Justino Martins, já falecido, talvez sintetize de forma absolutamente precisa as dificuldades que o leitor médio encontra na obra de Dyonelio: "Seu estilo - disse Martins - é seco como ele próprio, e, às vezes, tanto um como outro são até difíceis de entender".

Falecido em 1985, às vésperas de completar 90 anos, Dyonelio deixou-nos uma obra composta de 12 romances, um livro de contos, um volume de memórias e vários ensaios.

O isolamento que se impôs no final da vida, assim como sua aversão às entrevistas, de certo modo contribuíram para que ele ficasse por tanto tempo meio esquecido. Mas sua obra ocupa hoje um lugar de destaque na galeria das grandes obras literárias da língua portuguesa.

 

Dyonélio Machado e a Militância Política

O porquê ou o como Dyonélio se tornou comunista, não encontramos explicação. Quando o conhecemos, vivia recluso, as voltas com seus escritos e eventuais pacientes fiéis. Foi diretor do Hospital Psiquiátrico São Pedro no período de 1957-58. Quase não encontramos informações da sua passagem pela direção, nenhuma obra, nenhuma realização expressiva.  Sua presença no Hospital pode ser entendida como uma retomada da direção do mesmo por um psiquiatra. Desde a saída de Jacinto Godoy, em 1951, da direção daquele macrohospital, o mesmo vinha sendo dirigido por médicos sem especialização em psiquiatria. Dyonélio Machado, com seu perfil político e autoridade moral foi uma maneira de entregar o hospital aos psiquiatras sem parecer derrota política. Há indicativos que ele, ao ler sobre os “gulags” e as atrocidades stalinista, optou pelo silêncio.

Sua estada no Rio de Janeiro para estudar psiquiatria, ou neuropsiquiatria, pode ter sido a época em que aderiu ao Partido comunista. Em 1935, tornou-se Presidente da Aliança Libertadora Nacional, uma frente política de esquerda, dominada pelos comunistas. Seu vice foi um capitão do exército chamado Agildo Barata, isso em julho, no mesmo ano, em novembro, Barata e outros oficiais aderiram a tentativa de golpe comunista conhecida coma a intentona comunista  ‘intento louco’ em 27 de novembro de 1935. As conseqüências da tentativa de golpe, foram a prisão dos líderes da ALN, banimentos dos comunistas e a depuração drástica no Exército Brasileiro que assumiu uma orientação anticomunista radical.  Segundo alguns historiadores, a ação precipitada foi ordenada por Stalin que acumulava derrotas na China em 1927 e na Alemanha em 1923. As conseqüências dessas ações desastradas foram a subida de Hitler ao poder em 1933 e o fortalecimento do governo Vargas. Da mesma maneira que as esquerdas se reuniram na ALN, grupos direitistas, seguidores de Plínio Salgado e do fascismo italiano, eram reunidos sob a bandeira da Aliança Integralista Brasileira. A AIB formou ao lado de Getúlio Vargas contra a tentativa de golpe comunista que serviu de pretexto para o estabelecimento da ditadura de Vargas em 1937. Em 1938 a AIB tentou o seu golpe e foi derrotada. Com a extrema esquerda neutralizada e a extrema direita derrotada e cooptada, Vargas pode dirigir o país sem grandes problemas internos até 1945. O fim da Segunda Guerra Mundial com a vitória das forças democráticas determinou o fim das ditaduras. Vargas entregou o poder a Eurico Gaspar Dutra e retornou nos braços do povo em 1950.

Estou resumindo esse momento da história, pois afetou a vida de Dyonelio Machado e de muitos brasileiros. Dyonelio foi preso, primeiro em Porto Alegre onde esteve por seis meses em quartéis da Brigada Militar. Depois foi para o Rio de Janeiro onde permaneceu mais um ano e meio. Nessa época, Graciliano Ramos, Nise da Silveira e outros membros da ALN estiveram presos. Com o fim da Ditadura, foram feitas eleições, o Partido comunista voltou à legalidade e Dyonélio Machado foi eleito deputado constituinte para a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Era o mais velho da bancada comunista e muito ativo. (Esse período está retratado no Livro de Mauro Gagliettí; Dyonelio Machado e Raul Pilla: Médicos na Política.2007.EdiPUCRS).

A prisão de Dyonélio criou grandes dificuldades para sua esposa Adalgisa que ficou sem condições de sobrevivência em Porto Alegre. Mudou-se para Quaraí onde sobrevivia dando aula, de piano, Nessa época já tinha uma filha, o filho mais moço nasceu alguns anos depois. Em 1937, com o golpe getulista, Dyonélio fugiu para não ser preso, passou algum tempo escondido em Santa Catarina.

A opção pelo comunismo, com repercussões drásticas em sua vida pessoal, não chegou a marcar sua atividade profissional. Não temos referência que a prática psiquiátrica de outros psiquiatras, também comunistas, tenha determinado outras formas de atuação profissional. Existiram alguns que adotaram os princípios pavlovianos. Na Argentina foi diferente. Segundo Hernan Scholten em seu artigo “Psicoestalinismos en la Argentina”, houve uma ruptura entre psiquiatras comunistas e psicanalistas. Do seu artigo extraímos o que interessa ao nosso assunto: En textos de psiquiatras como Jorge Thénon o Gregório Bermann es posible encontrar las primeras referencias al psicoanálisis por parte de figuras de la cultura de izquierda en la Argentina. Por ejemplo, la tesis de medicina de Jorge Thénon abordaba el tema de las neurosis obsesivas, tomando como fuente las categorías freudianas. Ambos autores tuvieron correspondencia con Freud, e incluso Bermann llegó a tener una entrevista con él, en Viena, en la década de 1920. Este acercamiento temprano se corta en la década de 1940, en sintonía con la Unión Soviética, donde el psicoanálisis era condenado por Stalin como una “ciencia burguesa” y una “doctrina norteamericana”. Esta condena repercutió, con retraso, en la cultura de izquierda local, muy claramente en el caso del Partido Comunista, donde tomó la forma de un violento rechazo al psicoanálisis. En los casos de Thénon y Bermann, no sólo abandonaron el psicoanálisis, sino que formularon duras críticas contra Freud.

 

A experiência Brasileira é um tanto peculiar. Temos o grupo de esquerda histórico, ligado ao PCB e a participação na Aliança Libertadora Nacional. Temos nomes como Osório César, Dyonélio Machado, Nise da Silveira (http://www.polbr.med.br/arquivo/wal0304.htm

http://www.polbr.med.br/arquivo/wal0902.htm)

e Ulysses Pernambucano http://www.polbr.med.br/arquivo/wal0201.htm . Os dois últimos, não teriam sido comunistas e sim acusados de.  A esquerda surgida nos anos sessenta que foi reprimida e lutou contra o golpe de 64 é mais ampla.            

Alguns são acusados de comunismo, outros se declaram comunistas e outros foram reprimidos independendo da sua orientação ideológica. Pincei alguns nomes da minha memória e espero que não se sintam ofendidos pela citação assim de forma bem liberal: Frederico Sérgio Moreira da Rocha (Fred para os amigos:  entrevista por Marcio Salgado). Natural do Recife e psiquiatra no Rio de Janeiro. Poeta e Psiquiatra

[Fred recita, emocionado, trecho do poema As galés do opróbrio foram assim? que fez em homenagem ao seu amigo Irineu Ferreira: "No país mulato em terra de coronel/olhar de pobre preto e delicado/ será preciso mil voltas rezadeiras/ na linha de poder esquerda direita volver..."]

Davi Capistrano; Sérgio Arouca (não era psiquiatra, teve grande atuação na Fiocruz); Gabriel Roberto Figueiredo (nascido em 1943); psiquiatra, historiador; Luiz Salvador Miranda de Sá Junior, psiquiatra e professor em Campo Grande, MS. Washington Loyello; Bruno Mendonça Costa, professor e psiquiatra gaúcho e José Otávio de Freitas Junior http://www.polbr.med.br/ano04/fran0304.php . A esse grupo poderíamos acrescentar alguns psicanalistas como: Sérgio Telles, Hélio Pellegrino, Rosa Beatriz Pontes de Miranda Ferreira e Helena Celínia Besserman Vianna; Décio Soares de Souza (1905-1970).


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