Volume 13 - 2008 Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini |
Dezembro de 2008 - Vol.13 - Nº 12 Farmacoterapia COLUNA DE FARMACOTERAPIA J.Romildo Bueno
Aceitar a honrosa incumbência de responsabilidade por uma coluna de PSICOFARMACOTERAPIA em pleno mês de dezembro pode parecer - e o é – uma temeridade. Afinal, além do minguado décimo terceiro salário, o mês coincide com os balanços de realizações anuais, pagamento de contas devidas, compra de presentes, comparecimento a varias festinhas, escrever relatórios e, por que não, planejar as atividades para quando se trocar a paisagem do colorido calendário. Por outro lado, existe uma vantagem, favorece a declaração de princípios que norteará a existência ou o naufrágio de empreitada. Comecemos pelo começo: o prumo da coluna será a discussão franca e aberta do que ocorre no âmbito da pesquisa nesse setor com foco especial no tópico método. E por quê? Sem método, um constructo científico inexiste... o método, freqüentemente confundido com metodologia – e que é o ‘estudo do método’ – define quais as variáveis de uma dada hipótese serão analisadas e sob quais regras. Tomemos um estudo multicêntrico, base inconteste para o fornecimento de “provas” que justifiquem a adoção de um padrão terapêutico, que se quer baseado em “evidências”, que em verdade são as tais provas... A definição da hipótese é centralizada, elaborada pelo “centro coordenador da pesquisa” ou, em segunda e, não menos importante ocorrência pelo “patrocinador da dita cuja”. Isso é, os “centros colaboradores” nem sabem exatamente o que está sendo ‘pesquisado’ já que não participam da elaboração de hipótese primária ou de secundárias, se necessárias... No passo seguinte, ‘confiabilidade entre avaliadores’, o famigerado “ inter rater reliability”, os pesquisadores envolvidos são reunidos para um curso intensivo de treinamento na utilização dos instrumentos empregados na pesquisa: classificação diagnóstica, escalas, tabelas, exames complementares, critérios de inclusão ou de exclusão. Esses cursos são feitos pelo patrocinador da pesquisa sob supervisão das agências reguladoras ou diretamente ministrados por essas. O objetivo é afinar o faro dos professores-doutores: QUANDO SE VÊ UMA PÊRA, NÃO SE DEVE MARCAR NESPERA... A partir daí, PRESUME-SE que todos os envolvidos não mais cometerão erros na avaliação de sintomas subjetivos ou de sinais evidentes (EEG, mapeamento cerebral, ressonância magnética, SPET funcional, ECG, sangue, função hepática, função tireoidiana e os outros exames comuns...). Ponto de honra: quaisquer intercorrências havidas durante o tratamento, presumivelmente devidas ou não, ao regime terapêutico serão imediatamente comunicadas ao “coordenador”. Isso poderá causar a ‘quebra do protocolo’: abrir-se a seqüência de números aleatórios que determina se o ‘pesquisado’ está recebendo placebo, substância ativa pesquisada ou medicamento comparador de efeitos clínicos estabelecidos. A partir daí tudo se passa como se a totalidade da pesquisa fosse realizada por um ÚNICO pesquisador... Reúnem-se alguns estudos multicêntricos que se enquadram nas exigências do Instituto Chrocrane, por exemplo, e obtêm-se “evidências” novinhas em folha, prontas para utilização... Acreditamos - quando se é responsável por uma coluna justifica-se o plural majestático - que um mínimo de MÉTODO pode ser usado em lugar de um máximo de METODOLOGIA... “... Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deva seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha... .... Mas não propondo este escrito senão como uma história ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual entre alguns exemplos que se podem imitar, se encontrarão talvez também muitos outros que se terá de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me serão gratos por minha franqueza...” (Descartes, R. – Discurso do Método, col. ‘Os pensadores’, 3ª Ed., Abril Cultural, São Paulo, 1983, pp 7-30) Se duvido, penso... Penso, logo existo... Para afastar o “gênio maligno” que pode nos induzir ao erro, Descartes invocou a res divina – a alma – que comanda a res extensa – a mente – e, com isso, criou-se a necessidade do conceito como intermediação entre a coisa e o eu pensante... Não pretendemos que esta coluna seja o deus maligno das pesquisas em psicofármacoterapia: estará aberta tanto para colegas que nela quiserem publicar seus resultados preliminares quanto aos que desejarem debater, criticar ou corrigir. Claro está que, enquanto editor, convidaremos colegas e amigos para que aqui se expressem.
Breve notícia sobre o emprego de inibidores seletivos de recaptura de serotonina e/ou de noradrenalina nos transtornos de ansiedade.
A utilização de antidepressivos em condições clínicas onde predominam sintomas ansiosos é quase contemporânea ao seu lançamento. Já em meados da década de 50 do século passado, inibidores da mono amino-oxidase de reconhecida eficácia antidepressiva eram utilizados para tratamento de ansiedade em diversas situações, e particularmente em uma delas, denominada por Lopez-Ibor de timopatia ansiosa cuja descrição clínica, sem surpresa alguma, sobrepõe-se ao que mais tarde foi descrito como “ataque de pânico”. Com a aparição da imipramina e da amitryptilina a tendência foi mantida: doses menores dessas substâncias foram empregadas com sucesso para o tratamento de quadros ansiosos. Já na década de 60, Klein propunha que “depressões neuróticas” respondiam favoravelmente à imipramina, rompendo-se com o conceito que tais condições clínicas – depressões neuróticas – só poderiam ser tratadas com psicoterapia psicanalítica. O movimento inverso também ocorreu: o meprobamato, apesar de sua curta utilização clínica foi proposto para tratamento de depressões ansiosas. Essa tendência foi reforçada com a aparição dos benodiazepínicos que além de extremamente bem tolerados possuem menor potencial para desenvolver dependência medicamentosa. Alguns estudos foram feitos visando demonstrar um ‘efeito antidepressivo’ com a utilização de benzodiazepínicos. Associações medicamentosas diversas surgiram por essa época, combinando doses baixas de inibidores de mono amino-oxidase e de tricíclicos com benzodiazepínicos, com neurolépticos (antipsicóticos) e uma combinação de benzodiazepínicos com sulpiride; essas associações medicamentosas visavam o mesmo alvo: as depressões ansiosas ou as chamadas ‘depressões neuróticas’. Com o andar da carruagem, Garattini e Valzelli estudando uma nova molécula - trazodone – propuseram que fosse classificada como o primeiro liotímico. Liotímico é um conceito que une efeito antidepressivo e ansiolítico em uma única molécula. O resto da história é bem conhecido: o trazodone iniciou sua ‘carreira clínica’ como ansiolítico, em doses que variavam entre 25 e 75mg/dia e a continuou como antidepressivo em doses variáveis entre 200 e 600 mg/dia. Um seu derivado - o nefazodone - foi comercializado com antidepressivo e gozou de alguma reputação até sua retirada o mercado. Uma enfermidade mental sempre considerada um desafio terapêutico nessas priscas eras: a neurose obsessivo-compulsiva! Esse diagnóstico lançou por terra reputações tanto de ‘profissionais psi’ como de ‘abordagens terapêuticas’ Foi tratado com inibidores de MAO, tricíclicos, neurolépticos fenotiazínicos, tioxantênicos, ansiolíticos e com a associação desses todos, seja em duplas ou trios ou ainda os combinando com psicoterapias freudianas, kleinianas, culturalistas, ‘behaviouristas’, umbandistas, quimbandistas etc A tal ‘neurose obsessivo-compulsiva’ chegou a ser considerada como a porta de entrada para a esquizofrenia, mas resistia às mais variadas e extravagantes tentativas de tratamento. Melhores resultados foram obtidos quando essa neurose foi tratada com doses elevadas de monocloroimipramina - clomipramina – que, mais tarde revelou-se tratamento de escolha para pânico e fobias que, quase por acaso, também respondiam aos benzodiazepínicos, principalmente ao alprazolam, recém lançado
Como se nota, a ausência de especificidade é como uma ‘marca registrada’ dos psicotrópicos no atacado e no varejo... As novas classificações - ateóricas - mudaram o rumo da psiquiatria, a precisão diagnóstica cedeu passo para as co-morbidades... e, com isso, criaram-se novos hábitos terapêuticos: não é politicamente correto tratar-se um transtorno de ansiedade, como o transtorno obsessivo-compulsivo ou o transtorno misto de ansiedade e depressão com substâncias, medicamentos que sejam desprovidos de atividade ansiolítica! Teve início a era pirandelliana de um medicamento a procura de sua(s) (e não seis...) doença(s)... Na primeira década do novo milênio, o fenômeno se repete: os melhores e mais eficazes tratamento para a ansiedade são... os antidepressivos inibidores seletivos de recaptura de serotonina e os inibidores “duais” que inibem a recaptura de serotonina e de nor-adrenalina! As co-morbidades justificam tudo... Como ocorreu tal fenômeno? Nos estertores do mais curto dos séculos, o vigésimo, Ban e cols. publicaram interessante trabalho: um estudo internacional sobre o julgamento de expertos a respeito do uso terapêutico de benzodiazepínicos e outras substâncias psicoterapêuticas e discutindo as tendências e recomendações para a psicofarmacoterapia dos transtornos ansiosos. No período de 1992 a 1997 os autores detectaram uma acentuada queda na prescrição de benzodiazepínicos e um exponencial aumento no uso de antidepressivos inibidores de recaptura de serotonina no tratamento dos transtornos de ansiedade. Estudos mais recentes evidenciam que houve um aumento de três vezes na prescrição dos novos antidepressivos sem que tenha havido aumento no número de diagnósticos de quadros depressivos! Um dos argumentos utilizados para justificar esse nível de prescrição de novos antidepressivos vincula-se ao temor de os benzodiazepínicos desenvolverem quadros de farmacodependência. Entretanto, diversos estudos publicados no século passado situam tal risco ou na categoria de ‘negligenciável’ ou variando entre 5 e 14% r em tratamentos prolongados, superiores a nove meses, não muito diferente do quadro de abstinência observado quando da suspensão de tratamento com os novos antidepressivos (e que muita gente chama de “síndrome de descontinuação”, um anglicismo agressivamente dispensável; afinal abstinência só pode ser usado quando se fala de sexo ou de religião?...). Ou será essa tendência devida à atração pela novidade? Sem dúvida que em muitas ocasiões, o novo é confundido com o melhor, mas apenas esse apelo não justifica tamanho incremento de prescrições fora da indicação principal (off label) dessas moléculas inibidoras de recaptura de serotonina e/ou de noradrenalina. Ou terá sido a propaganda? Ou a indução subliminar? (marketing e merchandising, respectivamente... às vezes sinto que não serei entendido se não verter meus termos para o inglês... delírios persecutórios de velho ranheta...). Admitir tal efeito é confissão de ingênua ignorância sobre o mínimo que se conhece a respeito dos mecanismos de ação de tais substâncias: em plena era de circuitos neurais integrados, de neuroplasticidade, de neurogênese, de farmacogenômica é inadmissível acreditar-se que ao alterar a recaptura de dado neuromodulador não se estará modificando a relação entre todos, não se modificará o equilíbrio existente entre suas funções (e que podem ser vistas até na SPET...). Aliás, demonstrada foi, desde os tempos dos tricíclicos, que à inibição inicial de recaptura de serotonina, o cérebro se adéqua e passa a inibir também a recaptura de noradrenalina que, por sua vez influenciará a utilização fisiológica de dopamina e que o excesso sináptico de serotonina vai influenciar diretamente a função inibidora do GABA que por sua vez... DE UMA VEZ POR TODAS, JÁ DEIXAMOS PARA TRÁS A ERA DAS SINAPSES! Queremos crer, esforçamo-nos para acreditar que marketing e merchandising não sejam as causas ou nem mesmo tenham contribuído para que tal mudança nos padrões de prescrição - de benzodiazepínicos para os novos antidepressivos - no tratamento dos transtornos de ansiedade. Enfim, que foi que aconteceu? Até prova contrária, nem um composto químico é mais eficaz que os benzodiazepínicos no tratamento da ansiedade aguda. Por outro lado, os benzodiazepínicos são excepcionalmente bem tolerados, não são letais quando utilizados isoladamente e nem causam maior incidência de ‘síndrome de descontinuação’. Não foi publicada até o momento, ao que saibamos, nem uma recomendação, algoritmo, consenso, guide-line que mencione um estudo comparativo direto, duplo cego (head to head) entre os modernos antidepressivos e os benzodiazepínicos no tratamento da ansiedade, e que tenha demonstrado serem os primeiros superiores aos benzodiazepínicos. Para justificar o acima dito, recorre-se à Declaração de Helsinki: “...the benefits, risks, burdens and effectiveness of a new method should be tested against those of the best current prophylactic, diagnostic and therapeutic methods…” E com isso, voltamos ao MÉTODO...
Aguardem a continuação do mistério no próximo número...
REFERÊNCIAS
Bueno, J.R.; Fernandes, M.F. & Teixeira, A.R. – An experimental evaluation of the anti-anxiety effects of some antidepressants – J.bras.Psiq. 20:, 179-191, 1971 Bueno, J,R.; Caldeira,M.V.; Rocha, A.V. & Mundim, F.D. – Anti-anxiety effects of trazodone (a double-blind comparison with diazepam and placebo – Rev. Bras. Med. 33: 73-77,1976 Bueno, J.R. – Long-term treatment with anxyolictic drugs:Possibilities of Pharmacodependence – in Benzodiazepines – Today and Tomorrow – Priest, R.G.; Vianna Filho, U.; Amreim, R. & Skreta, M. –Eds. MTP Press Ltd., London, 1980, pp 209-211 Bruce, S.E.; Vasile, R.G.; Goisman, R.M.; Salzman, C et allii – Are the benzodiazepines still the medications of choice for patients with panic disorder with or without agoraphobia? – Am.J.Psychiat. 160(8): 1432-1438, 2003 Carlson, R.V.; Boyd, K.M. & Webb, D.J. – The revision of the declaration of Helsinki, past, present and future – Brit.J.Clin. Pharmacol. 57(6):695-713, 2004 Uhlenhut, E.H.; Balter, M.B.; Ban, T.A. &Yang,K. – International study of expert judgement on therapeutic use of benzodiazepine and other psychotherapeutic medications VI –Trends and recommendations for the pharmacotherapy of anxiety disorders, 1992/97 – Depres.Anxiety 9(3): 107-116, 1999
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