Volume 11 - 2006
Editor: Giovanni Torello

 

Outubro de 2006 - Vol.11 - Nº 10

História da Psiquiatria

História das Classificações Psiquiátricas no Brasil (I)

Walmor J. Piccinini

“Em qualquer área do conhecimento, classificação significa um processo de ordenação de determinados objetos ou fenômenos, em categorias ou classes, a partir de alguns critérios estabelecidos. Deve ficar claro que existem diferentes tipos de diagnóstico que dizem respeito a diferentes aspectos dos fenômenos envolvidos e, conseqüentemente, diferentes graus de complexidade e diferentes níveis de organização da informação. As classificações em psiquiatria podem, por isso, basear-se na etiologia, descrição clínica dos quadros, evolução, ou qualquer outro parâmetro, não havendo nenhuma classificação que atenda a todas as necessidades. Na verdade, todo diagnóstico e toda classificação comportam grandes perdas de informação, razão pela qual é tão importante saber diagnosticar quanto conhecer as limitações existentes em cada tipo de diagnóstico.”

(Márcio Costa de Oliveira-Prefácio “O Diagnóstico Psiquiátrico” Luiz Salvador de Miranda-Sá Jr., 1993. Ed. Cultura Médica,RJ.).

As classificações não são definitivas, foram surgindo e se modificando, à medida que novos conhecimentos foram sendo assimilados pela psiquiatria. Existem contestações e ataques o mais variados contra a psiquiatria, alguns contra a própria existência da mesma. Seus adversários são múltiplos e aguerridos, alguns até se intitulam psiquiatras, o que é no mínimo surpreendente. Não encaramos a psiquiatria como uma cidadela que deve ser defendida a todo custo, as críticas honestas são bem vindas. Esse fustigamento, esses ataques devem servir para reflexão, questionamento e aprimoramento da prática psiquiátrica.

Na Associação Brasileira de Psiquiatria existe um departamento de Diagnóstico e Classificação Em Psiquiatria que estabeleceu como objetivo contribuir para: “o aprimoramento da prática diagnóstica em nosso meio, a utilização crítica dos conceitos, instrumentos e sistemas diagnósticos e classificatórios e, ainda, a promoção de amplo debate, filosófica e historicamente informado, acerca das questões nosológica, nosográficas e psicopatológicas que definem o campo da psiquiatria”. Seu titular é o Professor Cláudio Banzatto da Unicamp. O Departamento está realizando uma pesquisa para saber: O que os psiquiatras brasileiros esperam das Classificações Diagnósticas? O resultado será utilizado no desenvolvimento da CID-11 e DSM-V. (http://www.abpbrasil.org.br/departamentos/coordenadores/coordenador/noticias/?not=111&dep=63 ).

“Uma classificação é uma maneira de ver o mundo”. “É uma reificação de uma posição ideológica, de um certo padrão de teoria e conhecimento”.(Sartorius,N.).

Borges nos dá uma visão bem humorada das classificações:

none'>"Os animais dividem-se em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães soltos, h) incluídos nesta lista, i) que se agitam como loucos j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, l) etc., m) que acabam de partir o jarrão, n) que de longe parecem moscas". Jorge Luís Borges, "O idioma analítico de John Wilkins", Prosa completa, vol. 3, pág.111. (cit. Olga Pombo - Da classificação dos seres à classificação dos saberes).

Nesse artigo estamos nos propondo a um exame da psiquiatria brasileira ou da psiquiatria no Brasil a partir de suas classificações. Ela começou pela França, mudou-se para a Alemanha, passeou pela Europa e radicou-se nos Estados Unidos.

Uma das mais antigas classificações diagnósticas no Brasil foi apresentada por Tácito Medeiros em sua dissertação de mestrado em 1997. Trata-se da descrição dos quadros de doença mental, descritos pelo Dr. Domingos José Cunha, médico da Santa Casa de S.João Del Rei em Minas Gerais (1817).

Alienação Mental

Muito pouco cizo

Abuso de cachaça  

Bebedeira

Doido furioso

Desordenado do juízo

Vida debochada

Melancolia  Histérica

Melancolia Hipocondríaca

Delirante

Epilepsia conseqüente à embriaguez

Monomania

Alienado por quebra da cabeça e idiotismo completo.

Esses diagnósticos, traduzidos para a linguagem dois nossos dias, mostram um sentido de sabedoria popular que perdura até nossos dias, resumindo:

Psicose (alienação mental, desordenado do juizo, doido furioso, delirante, monomania)

Síndrome Cerebral Orgânico ( alienado por quebra da cabeça (demência pós-traumatismo); Deficiência mental ( idiotismo completo); epilepsia.

Quadros maníacos ( Muito pouco cizo, vida debochada).

Depressão: Melancolia (histérica, hipocondríaca)

Alcoolismo ( abuso da cachaça, bebedeira, epilepsia consequente à embriaguez).

O registro de admissões no Weston State Hospital, nos EUA no período de 1864-1889, segundo Moul(1998) apresentava os seguintes diagnósticos:

Insanidade Moral –

Preguiça –

Asma –

Masturbação Crônica –

Crises Epilépticas –

Vícios corruptos –

Descontrole Uterino –

Varíola –

Irritação na espinha –

Luto –

Insolação –

Vida imoral –

Loucura –

fraqueza intelectual –

Sedução e desapontamento.

Diferentemente da simples classificação brasileira, esses diagnósticos refletem uma posição moralista, não no sentido da locura moral de Pinel e sim da aplicação de julgamentos religiosos aos padecimentos humanos.

Para que servem as classificações, que benefícios trazem. Vamos enumerar alguns:

Um vocabulário padrão que permita uma comunicação efetiva

Uma estrutura de comunicação que coloca os fenômenos descritos numa ordem conceitual.

Contexto que permita uma compreensão da causa dos fenômenos.

Contexto para desenvolver expectativas sobre as intervenções e seus efeitos.

 

Sobre bibliografias:

Uchoa, DM., em sua Organização da Psiquiatria no Brasil (São Paulo, Sarvier,1981) tem um capítulo sobre O Problema da Classificação das Doenças Mentais na Psiquiatria Brasileira. Antes dele Leme Lopes fizera contribuição, reconhecida mundialmente sobre o tema.  Em 2003 foi concluída a excelente dissertação de mestrado de Carlos Francisco Almeida de Oliveira, orientada por Paulo Dalgalarrondo. Evolução das Classificações Psiquiátricas no Brasil: um esboço histórico. (pode ser obtida por "download" na Biblioteca da Unicamp). Um trabalho de fôlego e que recomendo, é o Diagnóstico Psiquiátrico do Professor Luiz Salvador de Miranda Sá Júnior. (RJ. Cultrix,1993)

Do Índice Bibliográfico Brasileiro de Psiquiatria que pode ser acessado em  (http://www.biblioserver.com/walpicci ) extraí as seguintes referências:

   1.   Alexandre, Humberto. III - Revisão da classificação das Doenças Mentais. Rev. Brasileira de Psiquiatria. 1970; 4(1): 18-19.

   2.   Alho Filho, J. L.; Coura, Sérgio H., and Seibel, Sérgio Dário. Classificação Internacional de Doenças Mentais - Nona Revisão (CID-9); Apresentação e comentários. Rev.ABP. 1979; 1(2): 38-43.

   3.   Amaral, José Reinaldo do. Recentes mudanças no diagnóstico e classificação em psiquiatria. J.Bras. Psiquiat. 1996; 45(8): 453-459.

   4.   Amaral, Márcio. As Neuroses e os Distúrbios da Personalidade na DSM III. J. Bras. Psiquiat. 1984; 33(2): 120-3.

   5.   Amaral, Márcio. O Que Podemos Esperar do CID-10? J. Bras. Psiquiat. 1990; 39(1): 13-6.

   6.   Amaral, Márcio. Os Critérios Para o Diagnóstico da Esquizofrenia no DSM-III. J. Bras. Psiquiat.  1982; 31(2): 129-31.

   7.   Assumpção Júnior, Francisco Baptista and Carvalho, L. Realidade do diagnóstico em psiquiatria infantil no Brasil.   J. Bras. Psiquiat. 1999; 48(10): 449-452.

   8.   Banzato, Cláudio Eduardo Muller. Diagnóstico Multiaxial em Psiquiatria: revisão da literatura sobre os esquemas multiaxiais DSM e CID. J. Bras. Psiquiat. 2004; 53(1): 27-37.

   9.   Bastos, Othon. I - Sugestões para uma revisão da Classificação Brasileira de Doenças Mentais. Rev. Brasileira de Psiquiatria. 1970; 4(1): 13-14.

10.   Bastos, Othon. O Diagnóstico em Psiquiatria. J. Bras. Psiquiat. 1993; 42(1): 51-3.

11.   Bechelli, Luiz Paulo C. and Ruffino Netto, Antônio. Estudo da concordância de diagnóstico e classificação da esquizofrenia pela CID-9, "Research Diagnostic Criteria" (RDC) e "WHO International System"em ambulatório e enfermaria. Rev.ABP/APAL. 1986; 8 (Supl.):59-70.

12.   Bertolote, José M. and Sartorius, N. "Classificación de las enfermedades mentales: de Bertillon to ICD-10, un siglo de colaboración internacional". Actas Luso-Españolas de Neurologia y Psiquiatria. 1993; 21(1): 39-44.

13.   Botelho, Adauto and Cunha Lopes, Ignácio da. Classificação Psiquiátrica. Arq. Assist. a Psicopatas Do Estado De São Paulo . 1948.
Notes: Relatório Oficial do V Congresso Brasileiro de Psiquiatria

14.   Busnello, Ellis A. D. O futuro da CID.  Rev. Neurobiologia, Recife. 1991; 54(2): 95-112.

15.   Busnello, Ellis A. D. and Gigante, Luciana Petrucci. Confiabilidade diagnóstica da versão para cuidados primários da Classificação Internacional das Doenças (CID10-CP) em Porto Alegre, RS, Brasil.  Relatório do Encontro dos Centros Colaboradores Da OMS No Brasil Para Ensino e Pesquisa Em Saúde Mental. 1997; 1.

16.   Caetano, Dorgival. Classificação em Psiquiatria: uma breve revisão histórica. Rev.ABP. 1982; 13(4): 71-74.

17.   Caetano, Dorgival. O diagnostico em psiquiatria: conceito e histórico. J. Bras. Psiquiat.  1996; 45(10): 585-502.

18.   César, Edgar Pinto. Nosologia Psiquiátrica em Novas Bases. Memórias do Hospital de Juqueri. 1932; 9-19.

19.   Doyle, Iracy. Nosologia Psiquiátrica. Rio de Janeiro. Ed. Estab. Cordeiro de Farias. 1961:1-558.

20.   Gigante, Luciana Petrucci. Diagnóstico Multidimensional pela CID 10 - O Eixo Social.  Doutorado, Tese. CPGCM/UFRGS. 2001:1-75.
Notes: Orientador( es): Ellis Alindo D'Arrigo Busnello

21.   Henriques, Rogério da Silva Paes. A remedicalizaçäo da Psiquiatria: uma reflexão crítica sobre a revolução nosológica do DSM-III. Mestrado, Dissertação. IMS-UERJ. 2003:1-131.

22.   Jorge, Miguel R.  Diagnóstico e Classificação em Psiquiatria. In OP Almeida, RR Laranjeira and L Dratcu (Eds.): Manual de Psiquiatria Clínica, Guanabara-Koogan, Rio De Janeiro. 1996:22-31.

23.   Jorge, Miguel R.d  A nova revisão da Classificação Internacional de Doenças . Correio Bras. Do Campo Freudiano. 1994; 6: 55-58.

24.   Leme Lopes, José. Subsídio á Classificação das Doenças Mentais. Arq. Assist. a Psicopatas Do Estado De São Paulo. 1948; 12-14: 69-78.

25.   Lucena, José. Contribuição à classificação brasileira de doenças mentais. Rev. Neurobiologia, Recife. 1963; 26(1): 10-21.

26.   Martins, Clóvis. Revisão da Classificação Brasileira de Doenças Mentais. Rev. Brasileira de Psiquiatria. 1970; 4(1): 5-11.

27.   Miguel Filho, Eurípedes Constantino. O biológico e o psicológico na origem das doenças mentais: da dicotomia clássica até uma visão unificada.  In MIGUEL-FILHO EC, FRÁGUAS JÚNIOR R, MELLEIRO AM, ASSUMPÇÃO F. Psiquiatria e Psicologia No Hospital Geral: A Clínica das Psicoses. São Paulo, Editora Litografia Mattavelli. 1992:12-18.

28.   Pacheco e Silva, A. C. Subsídio á Classificação das Doenças Mentais. Arq. Assist. a Psicopatas Do Estado De São Paulo. 1948.

29.   Prates de Lima, Newton. Classificação das Doenças Mentais. J.Bras. Psiquiat. 1959; 8(2): 93-134.

30.   Sá Junior, Luiz Salvador de M. Ideologias científicas e o diagnóstico médico-psiquiátrico. J.Bras. Psiquiat. 1994; 43(12): 633-640.

31.   Sá Junior, Luiz Salvador de M. O Diagnóstico Psiquiátrico. Rio de Janeiro, Ed.Cultura Médica. 1993.

32.   Saad, Ana Cristina and Paiva, Rogério Santos. DSM-IV. Propostas para Classificação dos Transtornos Relacionados a uso de Substância: Comparação com DSM-III-R (Primeira Parte). J. Bras. Psiquiat. 1993; 42(4): 209-13.

33.   Silveira, Anibal. A classificação nacional das doenças mentais - sugestões para revisão. Arq. Assist. a Psicopatas Do Estado De São Paulo. 1944; 9(1): 73-106.

34.   Silveira, Anibal. O problema heredológico na Classificação das Doenças Mentais. Arq. Assist. a Psicopatas Do Estado De São Paulo. 1949; 13:79-81.

35.   Sougey, Everton Botelho. Evolução do Diagnóstico Psiquiátrico. Rev. Neurobiologia, Recife. 1988; 51(3): 213-222.

36.   Teixeira Brandão, J. C. Nomenclatura e classificação das moléstias mentais. Anais Fac. Med. Rio de Janeiro. 1917:207-226.

37.   Venâncio, Ana Tereza A. and Carvalhal, Lázara. A classificação psiquiátrica de 1910: ciência e civilização para a sociedade brasileira. In: Jacó-Vilela Et Alii (Orgs), Clio-Psyché Ontem: Fazeres e Dizeres Psi Na História do Brasil. Rio de Janeiro. Relume-Dumará. 2001:151-60.

(Continua)

                                                                                                                                         


TOP