Volume 11 - 2006 Editor: Giovanni Torello |
Novembro de 2006 - Vol.11 - Nº 11 Psicanálise em debate O
GESTO ESPONTÂNEO - D.W. WINNICOTT Sérgio
Telles Pediatra
com grande experiência, D.W. Winnicott (1896-1971) constatou a importância decisiva dos
fatores emocionais e psíquicos nas crianças que atendia em sua clínica, o que o
fez voltar-se para a psicanálise. Analisou-se com James Strachey
e, posteriormente, com Joan Riviere; tornou-se um grande
analista; produziu uma contribuição teórica original (conceitos como
"objeto transicional", "mãe suficientemente
boa", por exemplo) e ocupou por uma vez a presidência da Sociedade Britânica
de Psicanálise. "O Gesto Espontâneo" traz 126 cartas selecionadas por Robert Redman, um psicanalista de Los Angeles, que é também o autor da elucidativa nota introdutória onde são fornecidos elementos da vida e obra de Winnicott. Um livro de cartas selecionadas (Rodman nos diz que há 825 cartas) imediatamente levanta o problema dos critérios de tal seleção, o que, para um analista, resulta sempre suspeito, por saber que a omissão de dados importantes, ou seja - a repressão -, pode ser raciona1izada e justificada das mais variadas maneiras. Fica, assim, a curiosidade sobre as não publicadas. Além do mais, o próprio Winnicott imaginava que tais cartas um dia seriam publicadas, dado serem cópias retidas e arquivadas por ele mesmo. Se isso evidencia a percepção (correta) de Winnicott sobre sua própria estatura e a importância de suas opiniões, por outro lado, tira-lhes o frescor e a espontaneidade, dado estar ele escrevendo não para o destinatário explícito, mas visando, em última instância, a posteridade, o que implica sempre numa certa pose. Mesmo assim pode-se ver um Winnicott extremamente atuante e participante, opinando sobre os eventos científicos da Sociedade Britânica de Psicanálise, criticando honestamente os trabalhos que julgava merecedores de reparos, escrevendo com freqüência e veemência para jornais dando sua opinião sobre os mais variados assuntos. As cartas abordam, temas como a política de socialização da medicina na Inglaterra, os efeitos psicológicos na criança decorrentes da aferição da temperatura pelo reto (habitual na Inglaterra), as implicações da fabricação de bonecas com o sexo bem definido, as causas da criminalidade e de como a sociedade reage a ela, a luta contra a psiquiatria organicista, o uso de serviço social em psiquiatria e psicanálise, o problema da análise leiga, as creches, o parto realizado na própria residência da parturiente, a maneira de encarar as enquetes jornalísticas, o autismo, o curandeirismo, a mastectomia. As cartas mais importantes giram em torno de sua luta para ter um lugar reconhecido como autor de idéias originais na Sociedade Britânica, colhido que foi pela luta que naquele momento ali acontecia. Em
1926, Melanie Klein, vinda de Berlim, chega em
Londres, onde se estabelece definitivamente. Desenvolve teorias sobre a análise
de crianças e, posteriormente, sobre o psiquismo em geral, teorias que entram
em choque direto com as de Anna Freud e, consequentemente, com as do próprio
Freud. Em 1933, Melita Schmideberg
(filha de Melanie Klein) juntamente com Edward Glover (seu analista) desfere ataques virulentos contra Melanie Klein. Em 1938, Freud chega a Londres, fugindo dos
nazistas, exacerbando as diferenças teóricas já existentes. O choque entre kleinianos e freudianos atinge intensidade máxima nos inícios
dos anos 40. A única forma de ultrapassar o problema foi a formação, dentro da Sociedade Britânica de Psicanálise, de dois grupos - o grupo A (kleinianos) e o grupo B (freudiano), com diferentes programas de formação. Fora da polarização, configurou-se o chamado "Middle Group" (Grupo do Meio). Winnicott fazia parte deste grupo, apesar de ter-se analisado com Joan Riviere e ter feito supervisão durante 6 anos com Melanie Klein. Inicialmente tinha bom contato com ela e Melanie Klein chegou a encaminhar-lhe o próprio filho para análise. Winnicott gradativamente se
afasta de determinadas posições do kleinismo radical,
reprovando-lhe o proselitismo incessante dentro da Sociedade, a intolerância, o
messianismo. A
importância dos fatores externos (ambiente, pai, mãe, família, etc.), a balança
entre eles e os fatores internos (pulsões, “instintos" inatos) na
estruturação do psiquismo continua sendo, a meu ver, um problema teórico
fundamental Como diz
Rodman: “Klein havia levado a ênfase de Freud [nos fatores
internos, pulsionais] a níveis irracionais,
virtualmente excluindo a importância causativa da realidade externa na vida
mental... O papel da realidade externa foi colocado em questão pela descoberta
de Freud de que os relatos de ataques sexuais na infância geralmente eram
resultado antes de fantasias edipianas que de eventos reais. Isso abriu o mundo
da fantasia ao estudo cuidadoso e lançou Freud ao grande trabalho de demonstrar
que os ímpetos pulsionais e a neurose infantil de uma
pessoa colorem e dão forma ao curso da vida. Esse ponto de vista, que poderia
ser considerado como a espinha dorsal da teoria e da terapia psicanalítica
, foi desafiado repetidas vezes. Klein provavelmente representa sua apoteose.
Ao virtualmente excluir a realidade externa de um papel formativo no desenvolvimento,
sua teoria transmite a impressão de que a técnica por ela gerada irá beneficiar
o paciente através de insights
que "mexam" com ele. Winnicott, firmemente enraizado na tradição psicanalítica,
mas também um observador prático de crianças e pais aflitos, podia introduzir
a realidade externa como influência sem sacrificar o significado da vida de fantasia
da criança no processo. Seu senso de realidade, talvez até mesmo seu senso de
justiça, exigiam isso dele". (p. XIX-XX). Em
muitas cartas Winnicott aborda esse tema, de
fundamental importância teórico-clínica: "A 'mãe
boa' e a 'mãe ma' do jargão kleiniano são objetos
internos e nada têm a ver com mulheres reais" (
p.34). "Meu problema, quando começo a falar com Melanie
a respeito de sua formulação sobre a primeira infância, é que me sinto falando sobre
cores com um daltônico. Ela simplesmente diz que não se esqueceu da mãe e da
parte que a mãe desempenha, embora, na verdade, eu ache que ela não dá indício
nenhum de ter compreendido a parte que a mãe desempenha bem no início" (p.
84)". Não quer Winnicott que sua postura seja considerada como um abandono da importância do interno, do pulsional e diz: “Estremeço ante o perigo de que meu trabalho seja tomado como uma tentativa de fazer a balança da argumentação pender para o lado ambiental, embora eu realmente seja da opinião de que a psicanálise tem agora condições de dar importância plena aos fatores externos, tanto bons como maus, e, especificamente, à parte desempenhada pela mãe no estágio bem inicial, quando o bebê ainda não separou o “eu” do “não eu” (p.122). Winnicott teve de lutar muito, inclusive contra a própria
ex-analista, para manter seus pontos de vista e poder desenvolver suas teorias.
Em suas cartas vemos muito bem como a política
institucional pode interferir diretamente no trabalho científico desta mesma instituição. Diz
ele: "Cara Dra.Riviere:
Após o ensaio da Sra. Klein, a senhora e ela falaram comigo e, num contexto de
amizade, deram-me a entender que ambas estão absolutamente seguras de que não
há nenhuma contribuição positiva que eu possa dar à interessante tentativa que Melanie está empreendendo o tempo todo para formular a
psicologia dos estágios mais precoces. A senhora concordará que ambas sugeriram
que o problema é que sou incapaz de reconhecer que Melanie
diz exatamente as coisas que estou pedindo que diga. Em outras palavras, há um
bloqueio Vê-se
a que grau de atuações a política institucional pode levar, fazendo Joan Riviere, respeitada psicanalista, assumir uma atitude anti-ética, sob todos os aspecto
indefensável, que foi a de usar seu poder advindo da transferência e de seu
conhecimento do inconsciente de um ex-paciente, para castrá-lo, impedindo-o de desenvolver
uma teoria contrária à que ela própria defendia, taxando-a come sintomática, uma
manifestação patológica, fruto de uma inibição ou bloqueio. Por
imposição política, Winnicott também foi impedido de
ensinar por um longo período: "Durante um bom tempo, como você sabe, não
fui convidado para ensinar psicanálise, porque nem a Srta. Freud nem a Sra.
Klein queriam me usar ou permitir que seus alunos viessem até mim em busca de ensino
regular, mesmo em análise infantil. Eu, portanto, senti falta, num momento
crítico de minha vida, do estímulo que teria feito com que eu elaborasse uma série
de aulas claramente voltadas para o ensino da técnica. Mais tarde, quando me
tornei aceitável e fui convidado a dar algumas aulas, eu já havia tido algumas
idéias originais e estas naturalmente me vinham à mente quando eu planejava
falar aos estudantes. Isso explica até certo ponto o modo como as coisas são.
Não estou reclamando, apenas acho que essas questões de história às vezes são
interessantes". (p. 156). Claro
que Winnicott está se queixando, apesar da sua negação
(coisa que faz inúmeras vezes em suas cartas) e, a meu ver, as questões de
história são sempre muito interessantes. A questão da
história do movimento psicanalítico, das sociedades de psicanálise são
circundadas por um campo minado de transferências, idealizações e identificações,
que levam a uma quase intransponível resistência, onde imperam a repressão, o
pacto de silêncio, a negação, a luta pelo poder, jogo de interesses nem sempre
muito cristalinos. Assim,
o livro de cartas de Winnicott, apesar de expurgado (das
825 apenas 126 vêm a lume) é muito salutar. É sempre saudável a desidealização, o ver santidades como Hanna
Segall sendo desancada em sua pretensão e arrogância (p. 23) ou Bion
sendo ironizado pelo uso excessivo dos clichês kleinianos
(p. 81), ou ainda a maneira com Winnicott fustiga a
formação dos grupelhos e igrejinhas, no caso as kleinianas
(p. 63, 19). Ao
responder a um torturado correspondente americano, que lhe
fala da angústia insuportável da qual padece, Winnicott
diz: “Pode ser que se e senhor estiver ‘inteiro’ lá, mais cedo ou mais tarde
essa angústia que vai além do que pode tolerar se apodere do senhor, e o senhor
não consiga mantê-la o suficiente para olhá-la e examinar seu conteúdo. Se
conseguisse fazê-lo, perceberia que ela contém – na raiz – a fonte mais profunda
de sua própria energia psíquica, de modo que, quando o senhor tem de encobrí-la (ou quando ocorre que ela seja encoberta) o senhor,
por assim dizer, perde sua raiz principal".(p 159). Winnicott sintetiza aí, com rara felicidade, a função e o
trabalho do analista. Decifra-me ou te devoro, diz a esfinge-angústia para o analisando. O analista é aquele que ajuda o analisando a entender
que não deve fugir da angústia e sim enfrentá-la, tolerá-la, olhá-la nos olhos
e decifrá-la. Em assim fazendo, o analisando integra a seu psiquismo importantes
forças até então paralisadas e inoperantes, provocando com isso seu
enriquecimento e crescimento internos.
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