Volume 7 - 2002 Editor: Giovanni Torello |
Julho de 2002 - Vol.7 - Nº 7 História da Psiquiatria Juliano Moreira 1873 - 1933 Um brasileiro extraordinário Um fato histórico pouco divulgado foi à visita de Albert Einstein ao Brasil em 1926. Há controvérsias, pode ter sido em 1925. O fato é que o ilustre cientista esteve hospedado no Hotel Glória do Rio de Janeiro e no dia sete de maio falou para o mundo científico brasileiro na sede da Academia Brasileira de Ciências. Sua conferência foi apresentada em francês e o assunto era extremamente atual na época: Resultados obtidos na Alemanha nos Estudos sobre a Natureza da Luz, comparando a teoria ondulatória e a dos quantas. (Esta conferência foi publicada no Vol.1 número 1 pág.1:3 da Revista da Academia Brasileira de Ciências). Einstein surpreendeu-se ao encontrar na presidência dos trabalhos um senhor de olhos grandes e penetrantes, pele escura, e franzino. Era Juliano Moreira, presidente da ABC e reconhecido pela inteligência brasileira não só como um grande médico, mas "como um sábio, no mais amplo e rigoroso significado dessa expressão." Seu currículo na Academia
foi o seguinte: Na Sociedade Brasileira de Neurologia, Psychiatria e Medicina Legal ele recebeu o título de Presidente Perpétuo. Que estranho fascínio esse homem exercia nos colegas e nas pessoas que o cercavam. Foi admirado e venerado por seus pares e, como veremos, reconhecido mundialmente. Segundo seu discípulo Afrânio Peixoto, de quem extraímos muitas das informações, Juliano era múltiplo. Foi médico, tropicalista, dermatólogo, sifilógrafo, alienista, psicólogo, naturalista e historiador da Medicina. Sob qualquer ângulo que examinamos a história de Juliano Moreira, ela é extraordinária. Quem poderia imaginar tão brilhante carreira para um menino negro nascido e 6 de janeiro de 1873, na cidade de Salvador, Bahia, no Bairro da Sé. Criado pela mãe, foi reconhecido mais tarde pelo pai. Começou a estudar no Colégio D. Pedro II e depois no Liceu Provincial. Entrou cedo para a Faculdade de Medicina (1886) e formou-se com 18 anos, em vésperas de completar 19, em 1991. Durante o curso e sempre através de concursos, foi interno da Cadeira de Moléstias Cutâneas e Preparador de Anatomia Médico-Cirúrgica. Sua tese de doutoramento foi sobre Etiologia da Sífilis Maligna Precoce. (Segundo Afrânio, essa Tese mereceu honrosas referências do sifilógrafo Buret e do neurólogo Raymond). Na Bahia de Juliano registramos as seguintes posições: Hospital de Santa Isabel da Faculdade de Medicina da Bahia: Interno da Clínica Dermatológica e Sifilográfica (1890). Assistente da Cadeira de Clínica Psiquiátrica e Doenças Nervosas (1893-?). Preparador da Cadeira de Anatomia Médico-Cirúrgica (1894-?). Lente substituto, da 12ª Seção de Clínica Psiquiátrica (1896-?). Médico Adjunto do Hospital
Santa Isabel. Para o concurso de Lente da Faculdade de Medicina (Clínica Psiquiátrica e Doenças Nervosas) apresentou a Tese: Discinesias Arsenicais). Seu concurso foi uma luta árdua, contra a inveja, o preconceito, as picuinhas acadêmicas que já existiam naquela época. O Prof. Tilemont Fontes não facilitava vida para Juliano. Sobre ele assim se expressou Afrânio Peixoto; "O titular da Cadeira, então, esse, manso, sorria, não dava aula, tinha fama de inteligente, por que não produzia nada, mas alunos virgens e delicados, convinham que lhes resumia suficientemente a especialidade. De uma reportagem do Correio da Bahia-Repórter, de 30 de julho de 2001, extrai o seguinte trecho: Ainda era cedo, os portões da Faculdade de Medicina da Bahia nem tinham sido abertos, mas já havia um movimento intenso de estudantes no Terreiro de Jesus. É que eles ardiam em curiosidade para conhecer o resultado do concurso para professor que, finalmente, seria divulgado. Os estudantes tinham acompanhado tudo de perto, lotando o salão nobre em cada uma das fases: prova prática, de didática e defesa de tese. O objetivo era evitar "marmelada", afinal, eles sabiam que não seria fácil para o jovem médico negro Juliano Moreira vencer um concurso numa instituição com fama de racista, frente a uma banca examinadora majoritariamente escravocrata. A libertação dos escravos, com a assinatura da Lei Áurea,tinha acontecido há apenas oito anos. Foi por isso que, naquela manhã de maio de 1896, quando finalmente entraram no prédio, os futuros médicos mal puderam acreditar no resultado afixado no mural: ao todo, Juliano tinha recebido 15 notas dez. A vaga era dele.Aquele foi um dia memorável para todos os estudantes, que comemoraram até altas horas a vitória do mérito sobre o preconceito. Juliano era famoso e querido desde os tempos de estudante, por sua modéstia e genialidade: tinha concluído o curso de medicina com apenas 18 anos de idade, com uma tese que tornou-se conhecida internacionalmente. Agora, com apenas 23 anos, tinha conseguido superar concorrentes poderosos e se tornava o mais novo professor da faculdade. Mas, para esse rapaz - filho de uma doméstica e de um funcionário da prefeitura, que só assumiu o filho quando ficou viúvo - a Bahia foi só o começo: não demorou muito para ele ganhar o mundo e tornar-se o mais importante psiquiatra brasileiro. Ana Maria Oda e Paulo Dalagalarrondo em seu excelente artigo sobre Juliano citam: Em seu discurso de posse, ao ser aprovado no concurso para professor da Faculdade de Medicina da Bahia, em maio de 1896, Moreira descreveu de forma tão elegante quanto contundente o que parece ser sua experiência pessoal com relação ao marcante preconceito de cor na sociedade brasileira de então. Endereçando-se "(...) a quem se arreceie de que a pigmentação seja nuvem capaz de marear o brilho desta faculdade (...)", disse: "Subir sem outro bordão que não seja a abnegação ao trabalho, eis o que há de mais escabroso. (...) Em dias de mais luz e hombridade o embaçamento externo deixará de vir à linha de conta. Ver-se-á, então que só o vício, a subserviência e a ignorância são que tisnam a pasta humana quando a ela se misturam (...). A incúria e o desmazelo que petrificam (...) dão àquela massa humana aquele outro negror (...)" Segundo Afrânio Peixoto, ainda na Bahia, Juliano deixou marcas do seu talento e produtividade. Vou apenas transcrever o que Afrânio escreveu em conferência de homenagem a Juliano Moreira: Com Pacheco Mendes, Nina Rodrigues, Alfredo Britto e outros, fundou a Sociedade de Medicina e Cirurgia e a de Medicina Legal da Bahia. Naquela Associação foi que, pela primeira vez no Brasil, em 1895, descreveram a existência, entre nós, do Botão endêmico, afirmativa plenamente confirmada alguns anos depois, com a descoberta do gérmen do mal. Freqüentou na Europa os cursos de doença mentais dos Profs. Jolly, Hitzig, Flechsig, Kraft-Ebing, etc.; os de clínica médica de Leyden e Nothnagel, etc.; os de anatomia patológica de Virchow; fez no Dermatologium, do Prof. Unna, estudos Anatomopatológicos muito completos sobre o Ainhum; ouviu as lições de Raymond, Dejerine, Gille de la Tourette, Brissaud, Garnier, Maurice Fournier, Magnan, etc., na França. Visitou as principais clínicas psiquiátricas e manicômios da Alemanha, Inglaterra, Escócia, Bélgica, Holanda, Itália, França, Áustria, Suíça, etc.. Foi quem primeiro descreveu entre nós a Hydroa vacciniforme (casos publicados em 1895 no British Journal of Dermatology). Dele são os primeiros exames microscópicos feitos entre nós de casos de micetoma, observados na Bahia, na clínica do prof. Pacheco Mendes, assim como do caso de Goundum, descrito por este professor. Por ele foi efetuado, no laboratório do Dermatologium, do grande dermatologista alemão, prof. Unna, o estudo anatomopatológico mais completo, até hoje existente, do Ainhum, sendo sua monografia, publicada em alemão, um dos trabalhos feitos por brasileiro mais citado no estrangeiro (Scheube, Mansor, Mense, Jeanselme, Le Dantec, etc.). Foi o introdutor no Brasil da clinoterapia, como método de tratamento das doenças mentais. Foi quem primeiro efetuou, na clínica neurológica e psiquiátrica da Bahia, de que foi assistente e, depois, professor substituto, a punção lombar com fins de diagnóstico, em casos de tabes dorsalis, demência paralítica, sífilis cerebral e meningites várias. De sua conferência na Sociedade de Medicina e Cirurgia da Bahia, subordinada ao título "A necessidade dos laboratórios nos serviços hospitalares" e depois publicada na "Gazeta Médica" e transcrita em várias outras revistas, resultou a criação de tais serviços em várias clínicas e em vários hospitais. A Faculdade de Medicina da Bahia criou, depois disso, seu excelente Instituto de Clínicas, que é um conjunto de laboratórios propostos a auxiliar os diagnósticos nas diversas clínicas da Faculdade. Uma das características de Juliano Moreira era a de aglutinador e fundador de Entidades Médicas. Na Bahia foi um dos fundadores da Sociedade de Medicina e Cirurgia e da Sociedade de Medicina Legal da Bahia. A vida na Bahia não estava fácil para Juliano, se por um lado era querido pelos alunos e admirado pelos colegas, por outro se sentia preso às amarras de um sistema hierárquico discriminador. Foi então que surgiu o convite do Ministro José Seabra para mudar-se para o Rio de Janeiro e assumir o Hospício Nacional de Alienados. Com o apoio do Presidente Rodrigues Alves obtido através do Ministro Seabra teve condições de apoiar Teixeira Brandão, agora deputado federal, a aprovar a Lei de assistência aos alienados em 1903. Essa lei era baseada na lei francesa de 1838. Entre outras medidas, proibia a colocação dos doentes mentais em prisões e determinava humanização dos tratamentos. Sua atuação no Hospício Nacional de alienados, além da melhora das condições físicas, retirada de grades, abolição de coletes e camisa de força, novos métodos de tratamento, consistiu em atrair vários jovens profissionais que mais tarde se tornaram figuras marcantes na profissão. Entraram para o corpo clínico Miguel Pereira, Antônio Austregésilo, Álvaro Ramos, Leitão da Cunha, G. Chardinal e Humberto Gotuzzo Como fizera na Bahia, criou um Laboratório e começou a fazer punções lombares diagnósticas. Dali proveio também o maior contingente clínico para a realização dos primeiros estudos feitos entre nós sobre a reação de Wassermann, donde o excelente trabalho do Dr. Arthur Moses, efetuado no Instituto Oswaldo Cruz. Quase ao mesmo tempo, aliás, instalou-se no Hospital Nacional a Seção do Laboratório, propostos às pesquisas da referida reação. Em 1905 fundou os "Archivos Brasileiros de Psychiatria", "Neurologia e Medicina Legal". Juliano já havia sido Diretor dos Anais da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Bahia e colaborador na Gazeta Médica da Bahia, do Brazil Médico e na Revista Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. Junto com Austregésilo, Ulysses Vianna, Henrique Roxo, Esposel e outros, fundou os "Archivos de Neuriatria", antes disso já havia fundado os Archivos Brasileiros de Medicina. Ele estava sempre estimulando e participando na difusão de idéias e nas pesquisas brasileiras nessa importante área da Medicina. É de Juliano a iniciativa de construir no Engenho de Dentro uma colônia para mulheres e foi ele que adquiriu o terreno de Jacarepaguá onde foi construída a Colônia que leva seu nome. Sua participação em entidades era marcante, foi fundador da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal e em 1917 entrou para a Academia Brasileira de Ciências na vaga de Oswaldo Cruz. Em 1928, foi convidado pelas Universidades de Tóquio, Kioto, Sendai, Hokaido, Fuknoka, Osaka, etc. no Japão, para fazer conferências sobre assuntos de sua especialidade. Em julho, seguiu ele para aquele país, para dar cumprimento à incumbência. Ali, foi recebido com especial deferência pelos médicos japoneses. As Sociedades Japonesas de Neurologia e Psiquiatria elegeram-no membro Honorário. Antes de partir, fez ainda na Universidade Feminina de Tóquio e no anfiteatro do grande diário "Nishi-Nishi" e na Rádio Sociedade, conferências de despedidas sobre o Brasil e os brasileiros e impressões sobre o Japão. O Imperador conferiu-lhe a Ordem do Tesouro Sagrado. Depois de cerca de quatro meses de permanência naquele país, visitou as cidades de maior importância no extremo oriente, seguindo então para a Europa, a fim de efetuar, em Hamburgo e Berlim conferências para que fora convidado. As Sociedades de Neurologia e Psiquiatria de Berlim, e Hamburgo elegeram-no seu membro Honorário. Assim como a Sociedade Médica de Munique e a Cruz Vermelha Alemã, a Universidade de Hamburgo conferiu-lhe a Medalha de Ouro, que é a maior honra que lhe é dado conferir a um professor estrangeiro. Juliano Moreira foi o primeiro psiquiatra brasileiro a receber reconhecimento internacional e não é exagero dizer que nenhum outro depois dele conseguiu alcançar sua proeminência e aceitação internacional. Segundo Oda e Dalgalarrondo: Seu espírito aberto e inquieto não ignorou a psicanálise; tendo domínio do alemão, conhecia as obras de Freud e tinha uma avaliação crítica delas. Numa resenha em que elogiou o livro de Franco da Rocha, "O pansexualismo na doutrina de Freud" (1920), referiu que a Sociedade Brasileira de Neurologia vinha promovendo palestras de divulgação da psicanálise e comentou, com sua ironia peculiar, que esta era pouco conhecida no país porque "No Brasil, em geral os colegas, em obediência à lei do menor esforço, aguardam que as idéias e as doutrinas passem primeiro pelo filtro francês para que nos dignemos a olhá-las contra a luz (...)". Seu trabalho clínico e de administrador foi digno, construtivo e inovador. Sua capacidade de despertar interesse, aglutinar novos talentos ao seu redor foi excepcional. Sua preocupação em divulgar novos conhecimentos, fundar revistas, estimular as já existentes, sua participação em entidades de classe e na Academia Brasileira de Ciências foi inigualável. Sua participação em congressos Internacionais mostrava seu interesse em aprender e difundir, participar e divulgar. Sua casa era um centro de atividades e de reuniões de alunos e colegas. Sua esposa Augusta ajudava a receber em longos saraus científicos. Numa sessão da Academia em homenagem a Juliano Moreira assim falou o Sr. Miguel Osório. "Todas as vezes que no Brasil um grupo de homens de ciência se formava para criar uma associação... o nome de Juliano Moreira era imediatamente lembrado como um elemento indispensável". "Ele trazia para o seio das associações esses encantadores predicados de calma e tranqüilidade, de benevolência e tolerância, de modéstia, e de discrição, de amor ao trabalho e moderação, que tornavam inconfundível sua maneira de ser". Juliano padeceu de longa enfermidade que foi, aos poucos minando sua resistência e que acabou resultando na sua morte em 1933 na cidade de Correias. Juliano Moreira tinha os dons naturais da inteligência e bondade, senão que não teve prevenções. Não foi nacionalista, nem teve freguesia intelectual. Ouviu os sons de todos os sinos. Aqui, Silva Lima tropicalista. Ali, Nina Rodrigues, médico legista. Estendeu as mãos a Teixeira Brandão e a Franco da Rocha. Propagou Kraepelin, sem esquecer Pierre Marie, nem Tolouse, Clouston e Morselli. Leu a todos, aprendeu de todos, a todos no seu tanto consagrou, com a citação, a aplicação, a correção. Freud, novidade de hoje, há trinta anos era estudado por ele na Bahia. Essa universalidade de espírito dispôs à razão para a tolerância do conhecimento, como a benignidade do coração para a tolerância das relações sociais. "Sage et savant". Sábio. Juliano Moreira, grande homem de ação e de Ciência, dispensa louvor dos adjetivos. Basta-lhe a fé de ofício de sua vida, nobremente preenchida. Basta-lhe a escola que criou e manteve, os discípulos que suscitou e promoveu. Basta o bem que fez. Estamos presentes quase todos, e depomos. Segundo a palavra sagrada, será a árvore julgada pelos frutos. Os destas o foram bem, a tolerância, a razão e essa flor sem fruto, mas que embalsama a ironia, que ajuda sorrindo no seu encanto a suportar a vida. Juliano Moreira, médico da razão doente, foi mestre da razão sadia, grande mestre da razão, o grande Juliano Moreira! Bibliografia de Juliano Moreira registrados no Índice bibliográfico Brasileiro de Psiquiatria de minha autoria:
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