Novembro de 2022 – Vol. 27 – Nº 11

Quirino Cordeiro – Psiquiatra; Secretário Nacional de Cuidados

e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania;

Ex-Coordenador- Geral de Saúde Mental, Álcool e

Outras Drogas do Ministério da Saúde;
Rafael Bernardon Ribeiro – Psiquiatra;

Coordenador-Geral de Saúde Mental, Álcool e

Outras Drogas do Ministério da Saúde.

 

Desde 2017, com auxílio e apoio de diversos atores da sociedade civil, estamos empenhados em modificar, em aprimorar e fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e levar aos brasileiros, especialmente à maioria que depende do SUS, uma assistência digna, efetiva e de qualidade.
Herdamos as consequências de mais de 30 anos de Políticas públicas de Saúde Mental e de Drogas ideológicas, anticientíficas, negacionistas, carreadas por grupo sem a humildade de avaliar a sua condução e corrigir seus rumos. Sobram indicadores tenebrosos: demora no diagnóstico e no início do tratamento;

  1. caos nas emergências e no atendimento às crises;
  2. falta de leitos para pacientes com quadros agudos;
  3. presídios como novos manicômios, abarrotados de doentes mentais (pelo menos 5% da população prisional é de doentes mentais graves, sem contar os dependentes químicos);
  4. ruas das cidades tomadas por dependentes químicos e doentes mentais abandonados à própria sorte;
  5. recordes de afastamento do trabalho por transtornos mentais e dependência química no INSS;
  6. taxas crescentes de suicídio no país nos últimos 20 anos. Aliás, no Brasil, o suicídio aumentou tanto em números absolutos como relativos, na contramão do resto do mundo desenvolvido e com sistemas universais de saúde. É triste e devastador constatar o aumento mais significativo dos suicídios em jovens, crianças e adolescentes, pessoas que não encontravam tratamento em uma rede assistencial que vinha se organizando de maneira absolutamente ideológica e dissociada de modelos de cuidado efetivos em sistemas universais de saúde pelo mundo, como do Canadá e do Reino Unido, e consequentemente dissociada das reais necessidades dos pacientes e de seus familiares.

 


Os “bastiões das virtudes” e “defensores dos Direitos Humanos”, com slogans como “cuidado em liberdade” e “craco resiste”, radicais da Luta Antimanicomial, dogmáticos e rígidos, recusavam-se a reconhecer os problemas, e insistiam em um modelo assistencial meramente “capscêntrico”. Os CAPS são equipamentos importantes e que devem fazer parte da Rede de tratamento, mas que precisam se somar a outros tantos serviços, como Ambulatórios multiprofissionais de Saúde Mental, serviços para crises e emergências, Hospitais Gerais e Psiquiátricos, Hospitais-Dia, Comunidades Terapêuticas e outros tantos locais de tratamento e cuidado. O modelo “one size fits all” (“um único tamanho serve para tudo”), de apostar todas as fichas nos CAPS, mostrou-se falho e responsável pelo caos na assistência em Saúde Mental que se instalou no país. Sem uma rede plural, integral e integrada, que atenda às necessidades dos pacientes e familiares, e não às dos burocratas militantes, torna-se difícil dar conta de toda a complexidade dos transtornos mentais. Não se muda uma Rede e sua cultura em poucos anos. Também não se moderniza e se capacita essa Rede em curto período. Mas, podemos destacar aqui o que foi feito, nos últimos anos, para mudar essa realidade de iniquidade da Saúde Mental no sistema público brasileiro.
Em dezembro de 2017, foi pactuada pelo Governo Federal com Estados e Municípios a “Nova Política Nacional de Saúde Mental”. Foram incluídos na RAPS os Ambulatórios Multiprofissionais de Saúde Mental (AMENT), os Hospitais-Dia e os Hospitais Psiquiátricos; criamos o CAPS IV, unidade 24h, com plantão médico, para atender regiões de Cracolândia; foram reajustadas as diárias dos Hospitais Psiquiátricos, que estavam congeladas, há uma década, com o objetivo de asfixiar financeiramente esses serviços. Desde 2019, na atual gestão do Governo Federal, o número de serviços da RAPS cresceu 21% e o número de leitos em hospitais gerais, 29%.
A desinstitucionalização seguiu firme, e 40% das Residências Terapêuticas (SRTs) existentes no país hoje foram criadas de 2017 em diante. Porém, não se confunde mais desinstitucionalização com fechamento de leitos, e tampouco de Hospitais Psiquiátricos. Aliás, o trabalho tem sido feito justamente no sentido de trocar leitos de moradores de Hospitais Psiquiátricos por leitos para pacientes agudos. Vale ressaltar que a devastação da assistência hospitalar em Saúde Mental no Brasil foi tão grande, em virtude da irresponsabilidade dos guerreiros em luta que aparelharam as antigas gestões do Governo Federal nessas últimas décadas, que, mesmo criando leitos psiquiátricos de 2017 para cá, o Brasil tem proporcionalmente 10 vezes menos desses leitos, quando comparamos com países da OCDE. Apesar de estarmos na contramão total do resto do mundo, nossos antimanicomiais tupiniquins não continham sua sanha em destruir serviços de saúde e desassistir nossa população. Fechar leitos psiquiátricos no Brasil, na escassez vigente, é literalmente jogar pacientes com transtornos mentais graves, incluindo aqueles com dependência química, na cadeia, na sarjeta e no cemitério.
As Equipes Ambulatoriais de Saúde Mental (AMENTs) começaram a ser implantadas no país, já sendo 224 até o momento, com o objetivo de fortalecer o tratamento em Saúde Mental de base comunitária, tornando-o mais potente e custo-efetivo.
Tal medida é de grande importância, já que, nas últimas décadas, os Ambulatórios de Saúde Mental também foram fechados aos montes no Brasil. Assim, a Luta Antimanicomial e seus representantes na burocracia do Governo Federal não apenas comprometeram a assistência de base hospitalar, mas também a de base comunitária.
A implantação do CAPS IV também segue adiante para que tenhamos ações mais contundentes e resolutivas nas Cracolândia. Aliás, não é possível imaginar, sem má fé ou cegamento ideológico, que pessoas jogadas nas Cracolândia sejam efetivamente ajudadas simplesmente com ofertas de cachimbos mais “cool” (ou coisa parecida), sem ações efetivas para cuidar dos vulneráveis e tirá-los da situação de indigência que floresce nas ruas de nosso país.
Fizemos linhas de cuidados na RAPS baseadas em evidências científicas. Estamos organizando grande serviço de tele psiquiatria e tele terapia no país. Buscamos aprimorar as normativas vigentes. Estamos induzindo o planejamento das redes assistenciais regionais em todo o Brasil.
Cortamos financiamentos de projetos que ligavam o nada a coisa nenhuma, que consumiram milhões de reais do contribuinte brasileiro sem nada entregar de concreto para a sociedade.
A caminhada é árdua, com múltiplas “notas de repúdio” e boicotes nada dissimulados. Porém, nada foi feito sem amparo técnico, mas recebemos duras críticas e oposição dos grupos acima descritos, que estão ávidos por voltar ao poder, com o objetivo de retomarem suas ações, que tanto mal causaram às pessoas com transtornos mentais e dependência química em nosso país, especialmente as mais pobres.
No campo do álcool e drogas, foram instituídas a “Nova Política Nacional sobre Drogas” e a “Nova Lei de Drogas”, baseadas em evidências científicas e nas boas práticas clínicas. Claramente o modelo anterior, que cursou por muitas décadas no país, naufragou. Basta que vejamos as ruas e viadutos onde proliferaram as Cracolândia. Com as novas normativas, o Governo Federal, recentemente, passou a financiar 17.500 vagas em Comunidades Terapêuticas, que trabalham no acolhimento gratuito e na consolidação do tratamento, com vistas à abstinência e plena recuperação das pessoas com dependência química. O Governo Federal financia e fiscaliza essas entidades, pois há regras a serem cumpridas. A expansão das Comunidades Terapêuticas é fruto da tentativa da própria sociedade de cuidar de seus dependentes químicos, que vinham sendo negligenciados pelo Estado, que adotou Políticas públicas omissas, ideológicas e inefetivas nessas últimas três décadas. Então, a partir das mudanças recentes nas Políticas Nacionais de Saúde Mental e Drogas, o Governo Federal passou também a dar apoio e suporte às importantes ações que a sociedade civil já vinha realizando, não apenas com as Comunidades Terapêuticas, mas também com os Grupos de Mútua Ajuda e Apoio Familiar, que eram totalmente marginalizados por antigas gestões do Governo Federal. Temos, na verdade, que aproveitar e ajudar esse importante trabalho da sociedade civil, sem, no entanto, negar a necessidade de fortalecermos outros serviços assistenciais para que a Rede de tratamento e cuidado se torne cada vez mais forte e efetiva. E é isso que temos feito. Precisamos de todos os serviços para ajudarmos nossos pacientes e seus familiares. Sabemos que não há uma única resposta para o tratamento e recuperação da dependência de substâncias psicoativas. O cuidado deve ser centrado no indivíduo, em suas necessidades e particularidades.
Outro importante avanço que tivemos na condução de Políticas públicas efetivas em Saúde Mental e Dependência Química no Brasil foi a criação da inédita “Política Nacional de Prevenção à Automutilação e Suicídio”, em 2019, por meio da publicação de uma Lei Federal que passou a regulamentar o tema. Essa nova e inédita Política pública traz diversos pontos de interseção com as “Novas Políticas Nacionais de Saúde Mental e Drogas”. Como já descrevemos acima, infelizmente, devido a problemas no tratamento dos pacientes com transtornos mentais e dependência química, o Brasil vinha enfrentando crescimentos sucessivos das taxas de suicídio. Assim, a criação de uma Política pública específica para lidar com o tema, juntamente com as outras ações descritas acima, começamos também a avançar para reverter o cenário de aumento do suicídio em nosso meio. Nesse contexto, o Governo Federal criou, em 2020, o Comitê Gestor de Política Nacional de Prevenção da Automutilação e o Suicídio. A partir de então, em diferentes Ministérios, o Governo Federal passou a realizar ações concretas para a prevenção do suicídio no Brasil.
Desde 2017, e principalmente de 2019 para cá, temos trabalhado para a condução das políticas públicas de Saúde Mental e Drogas, com base em evidências científicas e nas boas práticas internacionais, algo inédito no Brasil, focando nas reais necessidades dos pacientes, de seus familiares e de toda a sociedade. Vale ressaltar que somos todos contra manicômios, por óbvio! Não defendemos, em pleno 2022, modelos de cuidados do século passado ou retrasado. Defendemos e trabalhamos pelo tratamento e o cuidado éticos, acolhedores, efetivos e baseados nas melhores evidências científicas.
Este Artigo apresenta todas as mudanças de paradigma que temos trazido para as Políticas públicas de Saúde Mental e Drogas, nos últimos cinco anos, e chama a atenção para o risco concreto de retrocesso, retrocesso real, e não retórico, como a militância antimanicomial tem propagado. O grupo responsável pelo cenário caótico que herdamos pode voltar, com risco de anular todos os avanços que foram realizados recentemente nas Políticas de Saúde Mental e Drogas. Assim, podemos continuar progredindo, avançado e colhendo bons frutos, consolidando Políticas de Estado, ou engatar marcha ré, de olhos vendados, rumo ao abismo do qual estamos lutando para escapar.

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