Maio de 2022 – Vol. 27 – Nº 5
Psychiatry on-line Brasil registra a perda de um amigo e colaborador. Nada melhor para homenageá-lo do que reeditar um dos seus trabalhos etnopsiquiátricos sobre a depressão do brasileiro. O Editor
Maio de 2000 – Vol.5 – Nº 5
Raízes Depressivas do Brasil
Muito se tem escrito sobre a depressão individual. O fenômeno abordado como patologia da pessoa. Fala-se: “Ele ficou depressivo. Fulano está com uma depressão.” E, toda uma terapêutica é construída a partir dessa hipótese diagnóstica.
Pode-se dizer o mesmo em relação a uma dada sociedade? Existiriam países tristes? O Brasil é um país de humor para baixo, onde nada dá certo? De onde nasce esse imenso sentimento de frustração e fracasso?
Não apenas uma dimensão clínica, nascida da observação criteriosa do terapeuta, como igualmente, uma perspectiva cultural, inerente a um determinado povo.
A construção do transtorno depressivo, do ponto de vista pessoal, pode nascer de um episódio. Um luto mal resolvido. Um trabalho não totalmente integralizado de perda. Em termos populares designa-se de tristeza, saudade, banzo, lundum e fossa.
O trabalho de Lia Luft – O Lado Fatal (1) – é um magnífico exemplo, de uma tristeza (depressão?) curtida, quando chora a partida de Hélio Peregrino, seu amado amante:
” Não digam que isso passa,
Não digam que a vida continua,
que o tempo ajuda,
que afinal tenho filhos e amigos
e um trabalho a fazer.
Não me consolem dizendo que ele morreu cedo
mas morreu bem (quem não quereria uma morte como essa?)
Não digam que tenho livros a escrever
e viagens a realizar.
Não digam nada.
Vejo bem que o sol continua nascendo
nesta cidade de Porto Alegre
onde vim lamber minha ferida escancarada.
Mas não me consolem:
da minha dor sei eu.”
Doutra parte, analisar a “depressão” cultural leva o estudioso a buscar as circunstâncias históricas que construiriam/constituiriam o acentuado comportamento triste de um povo. No Brasil, será que o barulho estridente da festa, o sorriso gratuito e o ufanismo triunfante não esconderiam uma tristeza atávica? Parece existir uma tristeza construída pela morte dos índios e pelo banzo dos negros arrancados de suas referências geográficas, históricas e culturais.
RETRATO DO BRASIL
Duas obras tentam compreender a alma brasileira nessa vertente depressiva. Primeiro, o livro de Paulo Prado: “Retrato do Brasil, ensaio sobre a tristeza brasileira”. (2)
Prado foi uma figura decisiva na vida intelectual brasileira na década de 20. O livro, tendo sido publicado em 1928, foi considerada a obra mais polêmica da época. Antecipava-se à Revolução de 1930 e a Segunda Guerra Mundial.
Nesse livro ele tenta traçar o perfil do caráter nacional. Procura explicar as origens remotas do atraso econômico e cultural da nação e dos vícios crônicos dos regimes políticos, através da formação étnico-cultural da nacionalidade.
Na verdade, ele procurava contradizer o sentimento ufanista (Porque me ufano de meu país – Afonso Celso) ou mesmo dos versos candentes dos parnasianos:
“Criança, não verás país algum como este. Ama com fé e orgulho a terra em que nascestes.” Lampejos do grande Olavo Bilac, patrono das Forças Armadas.
Nessa obra singular, Paulo Prado mostra a verdadeira face do Brasil, então, (como agora!) mergulhado no atraso, na pobreza, na incompetência, no peculato e na cobiça. Alguns trechos que ilustram:
“A história do Brasil é o desenvolvimento desordenado dessas obsessões subjugando o espírito e o corpo de suas vítimas. Para o erotismo exagerado contribuíram como cúmplices – já dissemos – três fatores: o clima, a terra, a mulher indígena ou a escrava africana. Na terra virgem tudo incitava ao culto do vício sexual… Desses excessos de vida sensual ficaram traços indeléveis no caráter brasileiro. Os fenômenos de esgotamento não se limitam às funções sensoriais e vegetativas; estendem-se até o domínio da inteligência e dos sentimentos. Produzem no organismo perturbações somáticas e psíquicas, acompanhadas de uma profunda fadiga, que facilmente toma aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio.” (pp.90)
“A melancolia dos abusos venéreos e a melancolia dos que vivem na ideia fixa do enriquecimento – no absorto sem finalidade dessas paixões insaciáveis – são vincos fundos na nossa psique racial, paixões que não conhecem exceções no limitado viver instintivo do homem, mas aqui se desenvolveram de uma origem patogênica provocada sem dúvida pela ausência de sentimentos afetivos de ordem superior… Do enfraquecimento da energia física, da ausência ou diminuição da atividade mental, um dos resultados característicos nos homens e nas coletividades é, sem dúvida, o desenvolvimento da propensão melancólica.” (pp.92)
Curioso que, muitas décadas depois, na fase dos anos de chumbo da Ditadura Militar – período Garrastazu Médici – quando imperou a tortura, a violência, Araguaia etc. foi uma época igualmente permeada por um processo de grande euforia nacional: Brasil, ame-o ou deixe-o, a Transamazônica. E, sobretudo, a conquista do Tricampeonato Mundial de Futebol, no México, alçada a feitos gloriosos de um povo… Taça que depois foi roubada, desmanchada e vendida em barras de ouro. A euforia pretendia abafar os gritos roucos, tristes ais, lançados das masmorras…
Paulo Prado faz uma referência ao jaburu, sendo o animal que melhor representaria o nosso humor, citação extraída de uma carta de Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo: “O jaburu… a ave que para mim simboliza a nossa Terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela “austera e vil tristeza.”
Termina o livro falando de guerra e revolução, ou de “confiança no futuro que não pode ser pior do que o passado.” Esse autor e esta obra precisam ainda ser muito discutidos.
IRACEMA
A segunda obra é de um cearense, José de Alencar, que escreveu o extraordinário romance Iracema (3), que inaugura o romance nacional, com cores bem brasileiras. Nacionalista e triste. Segundo Afrânio Peixoto e João Ribeiro, Iracema é América. São as mesmas letras, com sílabas invertidas. É Alencar quem explica a importância que pretende dar ao romance, sugerindo que cabe aos escritos não-ficcionais a construção da nacionalidade pelo romance. Isto é, Iracema institui-se, conforme sugere Ângela Gutiérrez, “como texto de fundação, ao propor as origens da pátria, através da fusão do pai estrangeiro e da mãe nativa, com a geração do novo ser, Moacir, o primeiro cearense.”
O romance conta, portanto, uma história de amor. O homem, Soares Moreno, como conquistador, arrebata o coração de Iracema, índia nativa nascida, “lá, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte…”
Deste amor, eivado de paixão, nasce uma criança. Primeiro filho fruto dessa miscigenação que se inaugurava. Chegada a hora da partida de Soares Moreno, ficou decidido que ele deveria levar a criança. Em suas terras ele seria mais bem educado e teria uma melhor formação. Iracema tem o coração dilacerado. O menino passa a se chamar Moacir, que em Guarani significa, o filho da saudade.
Iracema, todos os dias vem olhar o mar. Esperando o retorno do amado. Alencar termina o romance contando que Iracema, não suportando a dor, morre de saudade.
Machado de Assis escreveu, na época, um artigo alusivo a Iracema, onde aponta a mais bela cena e diálogo do romance. “A selvagem cearense aparece aos olhos de Martim, adornada de flores de maniva, trava da mão dele e diz-lhe:
“-Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu filho.
“-Filho, dizes tu? exclamou o cristão em júbilo. “Ajoelhou ali, e cingindo-a com os braços, beijou o ventre fecundo da esposa.”
Machado de Assis comenta: “Vê-se a beleza desse movimento, no meio da natureza viva, diante de uma filha da floresta. (…) Que melhor adoração queria a maternidade feliz, do que aquele beijo casto e eloquente? Mas tudo passa: Martim sente-se tomado de nostalgia: lembram-lhe os seus e a pátria; a selvagem do Ceará, como a selvagem de Luisiana, começa então a sentir a sua perdida felicidade. Nada mais tocante do que essa longa saudade, chorando no ermo, pela filha de Araquém, mãe desgraçada, esposa infeliz que viu um dia partir o esposo, e só chegou a vê-lo de novo quando a morte já voltava para ela os seus olhos lânguidos e tristes.”
Estaria marcado, ali, o nosso destino?
OUTRAS MULHERES, MESMAS IMAGENS
A função materna – inaugural – está prenhe de perdas e dores da fêmea. A reprodução, a criação, o parto e a partida… A condição feminina dilacerada. Seria um anúncio da dor feita tristeza?
Não por acaso, desfilam estas mulheres extraordinárias na pena de nossos escritores. É Capitu, com duas grossas lágrimas, a chorar a morte de Escobar, sob o olhar suspeito do marido, Betinho (4) … Em Maíra a morte, o parto. Parido de dois. Filhos do índio que nem se fez padre? (5) É Diadorim, valente como guerreiro homem. Belo como fêmea, a mulher morta…. (6) Ou mesmo os versos pungentes de Chico Buarque: “o pedaço amputado de mim, dessa parte amputada de mim…”
Isso para não entrarmos no estudo da participação negra na etnia brasileira. Como não falar do eterno retorno, onde existem centenas, milhares de relatos, exaustivos, de mortes pela saudade. Pela tristeza. Pela depressão….
A TERAPIA DA RECONCILIAÇÃO
Do ponto de vista etnopsiquiátrico parece evidente que há duas negociações a realizar.
Primeira, como foi feita a transação que permitiu a ocupação das terras dos índios? E, como realizar essa conciliação se nós próprios somos estes índios?
Segunda, o que foi feito com os corpos dos negros mortos? Onde estão estes corpos? Em que cemitério foram enterrados? Por que foram dilacerados, esquartejados? E, que espaço se guarda para eles em nossa vida “onde teu seio tem mais amores”…
Atormentam estes fantasmas tristes de um parto interrompido. Essa tristeza étnica parece beirar uma psicose. Ou ela não é nada. Vivemos uma profunda crise de adolescência. Crise na construção de uma identidade, onde, ou incorporamos todos estes dados e situações e perfis, ou morremos todos como experiência de um povo novo, como insistia Darcy Ribeiro.
Há um réquiem e um parto em curso.
Bibliografia
- LUFT, Lya, O LADO FATAL, Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1988;
- PRADO, Paulo, RETRATO DO BRASIL, Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira, 2a. edição, Brasília, Ibrasa, 1981;
- ALENCAR, José de – IRACEMA, Apresentação Ângela Gutiérrez, Col. Os Clássicos, Ed. ABC, Fortaleza,1999;
- ASSIS, Machado de – DOM CASMURRO, Col. Os Clássicos, Ed. ABC, Fortaleza, 1999;
- RIBEIRO, Darcy – MAÍRA, 7a. ed., Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1984;
- ROSA, João Guimarães – GRANDE SERTÃO:VEREDAS, 20a. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.