Julho de 2021 – Vol. 26 – Nº 07

Sérgio Telles

O livro “O Corpo interminável”, de Claudia Lage, realiza a difícil proeza de escrever sobre um tema como a tortura de presos políticos nos anos da Ditadura, que provoca fortes reações, transcendendo o tom de denúncia documental e alçando o plano da literatura. E o faz sem trair a gravidade e o horror dos acontecimentos relatados, sem os diluir numa vazia preocupação formal.

O fio condutor é a busca dos rastros da mãe que não conheceu, uma guerrilheira desaparecida, por parte do postulante a escritor Daniel. Nesta busca, reconstrói sua história através de livros, jornais, cartas, encontros e com a própria escrita que, de forma tateante, tenta exercer registrando a experiência vivida nessa empreitada.

Daniel sente a falta da mãe não só por sua ausência física, como pelo silêncio impassivo do avô que o criou e nunca falou da filha para o neto, além de ter eliminado todas as lembranças que poderia ter dela, como fotos, objetos, etc. Restou apenas as “Aventuras de Alice no país da maravilhas”, o livro de Lewis Carroll, que remete a sua infância e à leitura recorrente que teria continuado a fazer, atestada pelas muitas anotações nas margens e partes sublinhadas. Por ser a única recordação palpável da mãe, Daniel se apega com fervor ao livro, tentando descobrir nas entrelinhas o que poderia ali está escondido sobre sua mãe, entender por que teria lido tantas vezes e feito tantas observações.

Daniel tem um longo enfrentamento com a distância e frieza do avô. Com a ajuda de Milena, que encontra durante sua busca e se torna sua companheira, Daniel enfrenta as sucessivas descobertas, as situações traumáticas encobertas pela repressão ou negação. Se a família de Daniel sofreu diretamente a violência  da repressão, algo semelhante ocorreu com a família de Milena em grau mais indireto e dissimulado, mas igualmente desagregador. Dessa forma, Claudia Lage mostra a dimensão humana da violência política, destruindo vidas e produzindo traumas que se transferem para as gerações posteriores.

O rico trabalho literário se mostra nos recursos narrativos e de linguagem, assim como na densidade psicológica dos personagens. O enredo se organiza em tempos diversos e narrativas que se alternam em diferentes estilos. Ao ritmo febril e coloquial da fala da mulher acuada num aparelho, aguardando a chegada de mantimentos para sobreviver ou de outra, foragida, que luta contra o medo da loucura exacerbado pelo isolamento forçado, contrapõe-se ao tom reflexivo e melancólico, a linguagem mais formal do filho que pretende ser escritor.

O corpo é uma insistente presença no livro, a começar pelo título. O corpo humano é o peso que nos prende ao mundo e que nos avisa permanentemente da finitude, da fragilidade, da vulnerabilidade. O corpo vive, o corpo sofre, o corpo goza, o corpo serve como refúgio da angústia que flutua nos pensamentos. É o corpo que desaparece sem deixar vestígios. É no corpo que a tortura é exercida, como Claudia Sales escreve em páginas memoráveis.

No livro, o corpo é especialmente o corpo da mulher: “Dizem que dentro do corpo é escuro, todo seu funcionamento se passa dentro da escuridão, esse corpo que dá a luz”.Corpo que engravida e amamenta, corpo exposto à violência dos homens

Ao mesmo tempo que expõe o drama pessoal e político da repressão nos anos 70, Claudia Sales mostra a importância da escrita, das bibliotecas, dos livros como repositório da história, da cultura, do saber. Daniel está sempre cercado de livros. A recorrência do livro de Carroll não se deve apenas por ser um valioso objeto da mãe morta, talvez represente a autorreferência da literatura consigo mesmo, o infindável mundo da escrita, “da procura da palavra certa”. Ao mesmo tempo, não deixa de ser interessante que Alice, com seu corpo ileso que se expande e encolhe ao sabor das circunstâncias, pode representar a fuga da densa materialidade do sofrido corpo real. Seu corpo fantasmático que se faz e refaz sem perder as características próprias é o oposto do corpo destruído pela tortura.

O livro é de grande pungência, o recorte de um momento histórico que não pode ser esquecido ou negado. Evoca o luto pelos mortos e pelo desmoronamento do sonho de produzir mudanças sociais através da ação revolucionária.

Claudia Lage foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2010, com seu livro “Labirinto da Palavra” recebeu o Prêmio de Literatura de Brasília e foi finalista do Prêmio Portugal Telecom (2014).

 

 

(Publicado no jornal Valor Econômico em 13/03/2021)

Similar Posts