Junho de 2021 – Vol. 26 – Nº 06
Sérgio Telles
É verdade que o mal-estar é estrutural, decorre da necessidade de reprimir as pulsões sexuais e agressivas, para que seja possível nossa convivência em comunidade, como Freud dissecou em sua grande obra “O mal-estar na cultura”. É um tema vasto e inesgotável. O que pretendo na palestra de hoje é refletir sobre o papel que o negacionismo exerce no mal-estar tal como ele se nos apresenta hoje.
O negacionismo como fenômeno sociopolítico consiste no não reconhecimento de evidências, conhecimentos, teorias, leis e fatos estabelecidos e reconhecidos pelo consenso. Ele se organiza especialmente em relação a dados provenientes da ciência ou da história.
Na ciência, o negacionismo mais conhecido e arraigado é o que diz respeito à teoria da evolução das espécies de Darwin. Há outros negacionismos mais recentes, como a negação das evidências da mudança climática em função do aquecimento global; a negação da eficácia da manipulação genética da produção agrícola; a negação da importância do uso das estatinas, das vacinas. Até algum tempo atrás, havia o negacionismo de que o HIV era responsável pela AIDS e atualmente temos a negação da gravidade do Covid 19. Há um negacionismo mais radical que se expressa no terraplanismo – onde são negadas realidades básicas cientificas referentes ao universo.
No campo da história, temos a negação de episódios cruciais e devidamente comprovados como o Shoah ou holocausto dos judeus; o genocídio armênio realizado pelo estado turco na primeira década do século passado e, mais recente, o massacre de Srebrenica, nos Balcãs, quando sérvios cristãos mataram 8 mil homens muçulmanos e violaram cerca de 25 mil mulheres muçulmanas. Esse episódio deu origem ao filme “Quo Vadis, Aida”, indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro (2021). Sobre o genocídio armênio, o presidente Biden o mencionou diretamente recentemente, quebrando a negação mantida pela comunidade internacional.
Muitas forças sustentam o negacionismo. A primeira e mais evidente são os interesses políticos, econômicos, financeiros, que procuram negar tudo aquilo que de alguma forma os coloque em risco.
Por exemplo, no campo do conhecimento científico, a referida negação do HIV como causador da AIDS foi mantida por Thabo Mbeki político sul-africano (presidente da África do Sul de 1999 a 2008) para não ser responsabilizado pela morte de mais de 300 mil cidadãos de seu país, algo muito semelhante à negação da gravidade da covid 19 feita por Trump e Bolsonaro. A negação do aquecimento global é promovida pela recusa em controlar a emissão de CO2 gerado pela queima de combustível fóssil, pelo boicote à economia sustentável e ao movimento verde.
O negacionismo pode ser imposto pelo poder estatal (como nos totalitarismos) contrariando o desejo da sociedade, ou a própria sociedade promove espontaneamente o negacionismo em defesa de padrões religiosos e socioculturais arraigados que ficam abalados com os avanços da ciência e dos costumes. Por exemplo – a comprovação da evolução das espécies, a modificação genética da agricultura, a mudança climática, viagens espaciais, vacinas, medicações, mostram a ação do homem fazendo intervenções e modificações na natureza, o que para os mais fundamentalistas pareceria uma insuportável intromissão em sua dimensão “sagrada”, num desrespeito aos desígnios divinos.
O poder estatal faz um uso político disso, apoiando ou não tais movimentos espontâneos da sociedade, a partir de seus próprios interesses. Pode então haver um conluio entre o poder e a sociedade no negacionismo. Ao invés de manter sua função de promover o conhecimento científico e guiar a sociedade em busca da verdade, o poder se alia com a parte mais retrograda e preconceituosa, conservadora e reacionária da sociedade contra o que coloca em xeque uma visão de mundo estabelecida que não pode ser questionada.
Esse conluio do poder com parte da sociedade ocorre agora entre nós em relação à covid 19. Os interesses políticos que sustentam o negacionismo de Bolsonaro se aliam ao negacionismo de parte da sociedade, que não tolera a percepção da vulnerabilidade, fragilidade e ameaça de morte que o vírus lhe impõe.
Algo semelhante ocorre com os crimes de guerra, os genocídios, o colaboracionismo. São acontecimentos que suscitam uma vergonha insuportável, evocam fatos que tanto o estado quanto a sociedade preferem esquecer do que ter de lembrar e fazer o trabalho de luto e reparação que se impõe.
Há, pois, por um lado, uma íntima ligação entre negacionismo e interesses de variados grupos e setores da sociedade, que ativa e conscientemente negam fatos que lhe sejam desagradáveis ou comprometedores, para tanto fazendo uso sistemático da mentira, de fake news, de teorias conspiratórias. Por outro lado, há um negacionismo espontâneo da sociedade, baseado em sistemas de crenças, hábitos e costumes – como a religião, os preconceitos, os nacionalismos, as ideologias etc. Essa dimensão do negacionismo com os sistemas de crença mostra claramente uma raiz inconsciente.
Os sistemas de crenças – dos quais o mais importante é o religioso – são introjetados junto com as figuras paternas no processo de constituição do sujeito. Diz Freud: “Os pormenores da relação entre o ego e o superego tornam-se inteligíveis quando são remontados à atitude da criança para com os pais. Esta influência parental, naturalmente, inclui em sua operação não somente a personalidade dos próprios pais, mas também a família, as tradições raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como a exigências do milieu social imediato que representam” (p.171 – esboço de psicanálise – – vol. 23,1975).
A dimensão irracional das crenças leva a radicalismos exacerbados, pois qualquer crítica ou abalo que sofram é sentido pelo crente como uma ameaça à sua própria identidade. Assim pode ser entendido a violência com que é defendido o negacionismo, pois ele expressa aspectos do sistema de crenças.
O negacionismo imposto de fora ocorre no nível da consciência, é um ato de força de um estado autoritário, que cria uma “verdade oficial” desacreditada por todos, mas à qual todos se submetem por medo de retaliações. Esse negacionismo se funde indissoluvelmente com a mentira, com a criação de narrativas falsas, de fraudes explicitas nos relatos e dados do estado. É o negacionismo da realidade descrita por Orwell em “1984”, que toma como modelo o stalinismo, ou as considerações de Koyré e Hanna Arendt sobre o nazismo.
Arendt acredita que na modernidade teria havido uma mutação na história da mentira, pois ela se tornou “completa e definitiva” no campo político, tendo chegado a um extremo que transforma a própria história em mentira absoluta:
Diz ela: “A possibilidade da mentira completa e definitiva, que era desconhecida em épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos fatos. (…) A tradicional mentira política, tão proeminente na história da diplomacia e dos negócios de estado, costumava dizer respeito a verdadeiros segredos – dados que nunca haviam sido expostos ao público – ou intenções (futuras) (…) ao contrário, as mentiras políticas modernas lidam eficientemente com coisas que definitivamente não são segredos e sim conhecidas praticamente por todos. Isso é óbvio no caso em que se reescreve a história contemporânea na frente daqueles que a testemunharam”. [1] Arendt, Hanna – “Entre o passado e o futuro” – capítulo “Verdade e política” – Editora Perspectiva – São Paulo – 7º. Edição, 352p.
Na mesma linha, diz Koyre -: “Nunca houve tanta mentira como em nossos dias. Nunca a mentira foi tão desavergonhada, tão sistemática, tão ininterrupta”. [1] Koyre, Alexander, “The Political Function of the Modern Lie” – Contemporary Jewish Record – Vol. VIII, 1945, The American Jewish Committee – New York, NY, disponivel na rede em: https://nasepblog.files.wordpress.com/2012/08/koyre-the-political-function-of-the-modern-lie-1945.pdf
Embora levado a extremos antes nunca atingidos nos totalitarismos do século XX, como dizem Derrida, Arendt e Koyre, a mentira é, desde sempre, um instrumento habitual do poder. Exemplo corriqueiro disso são os chamados “segredos de estado”, as manobras da diplomacia que, por definição, são resguardados do olhar do grande público. São abundantes os exemplos nos quais os estados ludibriaram e ludibriam sistematicamente seus cidadãos no manejo da informação sobre seus negócios e interesses.
Assim, quando se fala que vivemos hoje numa era de mentiras e fake news é verdade, mas é necessário lembrar que sempre foi assim. Isso levanta importantes questões sobre a ligação intrínseca entre mentira e política, levantadas por Arendt e por Derrida, para cujos textos remeto os interessados, dado que não será possível abordá-los aqui no momento. Mas não se pode negar que há hoje, sim, em relação ao que sempre aconteceu – é a intensidade e o alcance da propagação da mentira em função da tecnologia, da internet, das redes sociais.
Vemos então que o negacionismo bolsonarista em torno da covid 19 é apenas mais um lamentável episódio de uma longa história. Deve sim provocar nossa indignação e luta para combatê-lo, mas não deveria nos surpreender. Como dizem os autores citados acima, a mentira é desde sempre uma prática do poder, contra a qual a cidadania deveria estar pronta para detectar e combater.
A psicanálise tem muito a dizer sobre a forma como o poder é exercido e como usa da mentira para atingir seus objetivos, abusando da passividade e credulidade dos cidadãos.
O clássico “Psicologia das massas e análise do Eu” (1921) e seu desdobramento feito por Erich Fromm em “O Medo à liberdade” mostram como persiste no inconsciente de todos os seres humanos a nostalgia por pais poderosos e protetores, a relutância em assumir a própria autonomia o que faz com que se renuncie a ela com facilidade na primeira oportunidade que surja, o desejo de voltar a ocupar o lugar infantil e acrítico da criança frente ao adulto.
Freud descreve duas básicas posições frente ao pai. A primeira, que está descrita em “Totem e Tabu”, é a da sublevação bem-sucedida, quando os filhos matam o pai da horda primitiva, muito embora esse triunfo seja mitigado, senão anulado, num momento segundo pela internalização do poder paterno sob a forma da lei. A segunda é a que mostra “Psicologia das massas e análise do Eu”, que é a abdicação da autonomia e a submissão voluntária e prazerosa ao líder das massas, representante do pai. A meu ver, há ainda uma terceira posição, que é a identificação direta com o pai da horda primitiva, o pai onipotente não castrado. Seria essa a identificação dos líderes que não hesitam em tomar o poder e exercê-lo de forma autocrática sem nenhum constrangimento. Dos três modelos, o mais frequente e que nos ocupa agora é o segundo, o da submissão voluntaria à figura do pai.
O exercício do poder passa por outras instâncias da realidade social que transcendem a dimensão psicológica, mas os fatos mostram a força do inconsciente na forma irracional com que as massas tratam seus líderes, evidenciando a persistência dos desejos infantis de proteção e amor por parte de um pai poderoso.
De forma intuitiva ou não, os políticos reconhecem essa dimensão inconsciente, que usam na propaganda e na forma como são manipulados fatos e imagens relacionados à sua pessoa.
É importante lembrar que o poder do estado não necessita ser totalitário para impor negacionismos e mentiras para a população. As possibilidades de manipulação das massas são imensas. Em “O Medo à liberdade” e “A sociedade do espetáculo”, Erich Fromm e Guy Debord mostram com riqueza de detalhes que mesmo nas democracias ocidentais há um eficaz controle da mente das populações através dos meios de comunicação, da propaganda, da publicidade, que impõem padrões de comportamento e hábitos de consumo no cidadão, ao mesmo tempo em que criam nele a ilusão de uma “liberdade”. Essa situação se agravou de modo exponencial com a internet e as redes sociais. Elas possibilitam um controle social ainda mais radical, algo que necessita uma regulamentação e que será certamente uma bandeira (já o é) de movimentos cívicos do futuro.
Ainda em “O Medo à liberdade”, Erich Fromm mostra que a própria estrutura capitalista da sociedade não dá muitas alternativas ao cidadão. Ou fica ele como uma criança submetida ao pai forte a quem prazerosamente cede seu próprio poder, ou se molda aos padrões culturais que lhe foram incutidos através dos meios de comunicação de massa, criando um falso self alienado e conformista.
Essa configuração facilita o aparecimento de líderes populistas e autoritários, que supomos ter uma identificação com o pai da horda primitiva.
O líder populista autoritário habitualmente é conservador, mostra-se machista, simplista, anti-intelectualista, apregoa o uso da força e da violência como forma de solucionar os problemas. Com essas características, encarna facilmente no imaginário popular aquele desejado pai forte e onipotente da infância.
É verdade que todo líder, por estar numa posição de mando e poder, independentemente de sua vontade termina por ocupar o lugar de pai. Entretanto, enquanto o líder democrático não procura explorar esse imaginário, evitando a idealização e o culto à personalidade, o líder populista autoritária busca deliberada e empenhadamente encarnar esse imaginário, como Stalin, o “grande pai dos povos”. Getúlio Vargas era mostrado pela propaganda como “o pai dos pobres”.
O surgimento deste tipo de líder, como Trump e Balsonaro, Erdogan, Victor Orban (Hungria), Matteo Salvini (Itália) seria um outro aspecto do mal-estar que vivemos hoje.
Vemos então como negacionismo, sistemas de crenças, processos identificatórios na constituição do sujeito, fixações na imagem paterna idealizada, estão interligados.
Estamos, pois, vivendo um momento em que a “psicologia das massas” nos dá exemplos diários de sua dinâmica e funcionamento. As fantasias inconscientes emergem no negacionismo de realidades ameaçadoras, que exacerbam o desejo de proteção de um pai forte e poderoso, na criação de fake news e teorias conspiratórias.
O que a psicanálise pode fazer em relação a essa condição social é promover o pensamento crítico, procurando analisar e desconstruir essa aliança regressiva e letal entre líder paternalista e cidadãos que se comportam como filhos submissos e dispostos a negarem a realidade e a se sacrificarem por um pai idealizado – tarefa nada fácil.
Até o momento examinamos o negacionismo como fenômeno de social, condicionado pelo mundo externo. Veremos agora um outro tipo de negacionismo, aquele que provém de fatores internos, e que faz com que nos afastemos de tudo aquilo que provoca desprazer e dor.
Em 1938, em “Esboço de Psicanálise” Freud contrapõe dois tipos de defesa que caracterizariam a neurose e a perversão (e a psicose). Na primeira – a neurose – o ego repele, reprime, uma exigência pulsional do mundo interno. Na segunda – a perversão (e a psicose) – o ego recusa, denega, um fragmento do mundo externo real.
A questão da negação é tratada por Freud nos conceitos negação (Verneinung), recusa ou denegação (Verleugnung) e rejeição (Verwerfung). Todas elas se referem a diferentes graus de não reconhecimento da castração, desde que para Freud, a recusa ou denegação (Verleugnung) da castração é o protótipo das recusas da realidade (p. 564 – verbete recusa)
Na neurose, o sujeito não nega (Verneinung) a angústia de castração, ele a reprime (Verdrung). Na perversão, ela não é reprimida e sim recusada ou denegada (Verleugnung). Na psicose acontece algo mais radical, ela é rejeitada (Verwerfung), ela sequer é registrada psiquicamente e termina por retornar do exterior, sob a forma de alucinação.
Especificando o dito acima, a negação (Verneinung) tem dois sentidos – o sentido lógico (configurando a contradição, a refutação de uma afirmação) e o sentido de não aceitação de algo, de recusa, não aceitação, o renegar, o denegar, o desmentir. A negação é um índice de confirmação de algo proveniente do inconsciente, o elemento inconsciente sempre entra na consciência antecedido pela negação. (Por exemplo, alguém diz “eu não odeio fulano”, o “não” ao mesmo tempo permite e nega que o ódio apareça na consciência).
Por sua vez, a recusa (da realidade) (Verleugnung) é um mecanismo de defesa que consiste na recusa pelo individuo de reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante, essencialmente a da ausência do pênis na mulher – algo próprio do fetichismo e psicose. A noção de recusa é correlata com a de clivagem ou cisão do ego. Na recusa, não há um conflito entre ego e id, o ego se divide, uma parte aceita a percepção traumática e a outra – incidindo sobre a realidade externa – recusa tal percepção.
Finalmente, a rejeição (Verwerfung -) mecanismo específico da psicose – segundo Lacan, é a rejeição de um significante fundamental (o falo enquanto significante do complexo de castração) para fora do sistema simbólico do indivíduo. Essa retração do mundo externo se dá basicamente pelo desinvestimento, desinteresse, retração narcísica da libido, retração do interesse não libidinal. A rejeição é a não simbolização de algo que deveria ter sido simbolizado – no caso, a castração -, há então uma “abolição simbólica”.
Interessante especular, diz Laplanche-Pontalis, sobre o que Freud chama de ‘realidade’ da castração ou a “percepção” desta. Se é a falta de pênis na mulher o que é recusado, não se pode falar propriamente em percepção, pois o que ocorre é uma ausência não reconhecida como tal em função de um sistema de crenças – as teorias sexuais infantis. Se for a própria castração o que é o recusado, a recusa não incidiria na percepção e sim no sistema de crença. Ou seja, a recusa incidiria não numa percepção intolerável e sim num “fato básico da realidade humana”. Para enfatizar essa observação, aqueles autores lembram que Freud sempre insistiu que a angústia de castração incide tanto na observação da diferença dos sexos, como na ameaça de castração feita pelo pai.
Assim, podemos pensar que todo negacionismo vivido no social remeteria individualmente a esses mecanismos de negação, recusa e rejeição da castração.
A partir dessas elaborações teóricas, vemos como o negacionismo é uma grave patologia, um mecanismo próximo da psicose, enlouquecedor e onipotente pois não aceita a realidade e suas imposições.
A castração como realidade insuportável a ser negada deve ser compreendida dentro da importância central desse conceito no corpo teórico psicanalítico. Não deve ser entendida apenas como marca da diferença sexual, mas simbolicamente como a perda da onipotência narcísica infantil, do falo enquanto representante da completude narcísica, a percepção do desamparo.
Poder-se ia então pensar, em última instância, que no negacionismo o efetivamente intolerável é a percepção da vulnerabilidade, da fragilidade, da carência, da necessidade do outro. Talvez por isso mesmo o que se apresenta com solução para isso seriam os apelos à onipotência e arrogância narcísica, a fantasia de completude fálica, o que a nível social se configuraria como a adoração de um “mito”, um pai idealizado, não castrado, onisciente, ao qual se presta submissão total.
Essa então seria outra figura de nosso mal-estar ligado ao negacionismo – o surgimento de líderes populistas, autoritários, onipotentes, aos quais parte significativa da população – regredida e fragilizada – se submete de forma acrítica.
Em Laplanche e Pontalis os conceitos de negação, recusa e rejeição não são modificados com a postulação da pulsão de morte, em 1920. O mais próximo disso é a afirmação de Freud de que a negação ou recusa da realidade implica um desinvestimento libidinal dela (realidade), investimento que é redirecionado para outros objetos ou representações.
Levando em conta que além da manifestação mais evidente da pulsão de morte, que é a destrutividade voltada para o exterior ou para o interior, ela também age permanentemente desligando, desinvestindo, procurando eliminar as ligações empreendidas pelas pulsões de vida, entendemos que a negação, a recusa e a rejeição implicam também a ação da pulsão de morte. Assim na recusa não há apenas o desinvestimento da libido, mas também e principalmente o desligamento próprio da pulsão de morte.
Green, que desenvolveu o conceito de negativo, segue por essa linha. Diz que Freud a partir de 1920 trata a negação como expressão da pulsão de morte e a equaciona com destrutividade.
Para Green, o negativo não é apenas o lado reverso do positivo ou defesa para ocultá-lo. É algo como aquilo que em psiquiatria é chamado de “negativismo”. Em outras palavras, o negativo aparece menos como a dissimulação do reprimido e mais como a expressão radical da pulsão de morte – a destrutividade – que é negada, rejeitada e ativamente condenada.
Enquanto o positivo deriva de Eros e sua capacidade de ligação, o negativo visa o desligamento, seu objetivo é desfazer, resistir a qualquer ligação.
A internalização do negativo altera economia do psiquismo, fazendo com que o sujeito não seja mais regido pelo princípio do prazer. Ele perde a capacidade de se adaptar, daí a repetição, que não é compulsiva ou automática, mas reveladora de sua rigidez e dificuldade de adaptação. É aqui onde se localizam o masoquismo primário, o sentimento de culpa, a impossibilidade de mudar, a autopunição, o suicídio, os fracassados com o êxito, a procura de fracassos e humilhações, o narcisismo negativo.
Em seu último livro, “Ilusões e Desilusões do Trabalho Psicanalítico”, Green dedica o último capítulo a fenômenos sociopolíticos, onde julga que Freud teve mais facilidade em detectar evidências da pulsão de morte. Entende os escritos de Wassili Grossman e Imre Kertész sobre o stalinismo e o nazismo como mostras da total perversão da verdade, a mentira instituída no estabelecimento de “versões oficiais”, a definitiva negação da realidade. Naqueles regimes, a destrutividade é a forma de exercer o poder, com a eliminação física de milhões de pessoas e a promoção do “assassinato de almas” – que deixa os sobreviventes desumanizados, anulados, esvaziados, desorientados pela brutalidade que lhes foi imposta, pela destruição de valores éticos, morais, culturais básicos. Aqui Green se aproxima das descrições de Hanna Arendt e Koyre citadas acima.
Como espero ter deixado claro, ao negar a realidade, ao impedir a visão crítica, o negacionismo é uma prática que pode ter consequências extremamente destrutivas, como atestam as 430 mil mortes de covid no Brasil. Mais angustiante a situação fica quando se constata que ao invés de o governo reconhecer seus erros e tomar as providências necessárias para repará-los, ele não só insiste em se manter na mesma linha, como, pior ainda, procura destruir as medidas que outras instâncias se viram obrigadas a tomar em função de sua própria omissão. O agravamento da pandemia na realidade faz com que a negação fique mais intensa e profunda, gerando uma tensão social difícil de ceder.
Assim o negacionismo, o populismo, o predomínio da mentira com toda a carga destrutiva que carregam reforçam em muito o mal-estar que vivemos hoje. Mas não devemos nos desesperar. Em “Reflexões para os tempos de guerra e morte” (1915), Freud medita sobre o choque e a decepção causados pela destrutividade exposta na Primeira Guerra Mundial. Atribui tais sentimentos à negação da dimensão destrutiva da natureza do homem, evidente em toda a história através das infinitas guerras e do exercício cruel do poder. O único que podemos fazer é abandonar a negação e enfrentar a realidade, lembrando que não temos apenas pulsões tanáticas, temos também Eros, a única força que pode se contrapor e atenuar a destrutividade e que, até o momento, tem prevalecido em nossa história. Não fosse assim, a humanidade já teria desaparecido há muito tempo.
Referências Bibliográficas e cinematográficas
Freud, S – ““Reflexões para os tempos de guerra e morte”, “Totem e Tabu”, “A psicologia das massas e a análise do eu”, “O mal-estar na civilização”, “Esboço de Psicanálise”
Fromm, Erich – “O medo à liberdade”, “A arte de amar”
L– “A sociedade do espetáculo”
André Green – “The illusions and desillusions of the psychoanalytic work”
Derrida, J. – “Prolegômenos para uma história da mentira”, “Mal de arquivo”
Arendt H. – “Entre o passado e o futuro”
Koyré A. – “The political function of the modern lie”
Laplanche – Pontalis – “Vocabulário de Psicanálise”
Filme citado – “Quo Vadis, ainda”
Orwell, G – “1984”
Wikipedia (english) – verbete “Denialism”
(*) Palestra on line realizada na Associação de Psicologia Psicanalítica (APPSI) de São Paulo, em 22/05/2021 – disponível no YouTube
REUNIÃO CULTURAL – Aspectos do negacionismo no mal-estar de hoje – YouTube