Outubro de 2020 – Vol. 25 – Nº 10

 

Este comentário crítico de Janer Cristaldo foi publicado no seu livro Kalocaína que pode ser lido online em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/kalocaina.html.

Para os interessados em conhecer a obra deste jornalista e escritor gaúcho sugerimos visitar seu site https://cristaldo.blogspot.com/.

O editor

 

 

Janer Cristaldo

 

Desde há muito – estamos pensando na Grécia antiga – os pensadores procuraram fixar literariamente uma organização ideal da sociedade, um modelo de Estado, ou pelo menos um projeto de transformação dessa sociedade. De um lado temos as utopias, desde a República, de Platão, até a Utopia, de Thomas Morus, ou a Cidade do Sol, de Campanella. Por outro lado, temos projetos de transformação social, cujos exemplos mais recentes encontramos em Os Sete Loucos, de Roberto Arlt, e Casa de Campo, de José Donoso. Mas em meio a projetos de Estado e projetos de transformação do Estado, floresceu um gênero sombrio, que se convencionou chamar de distopias. É a utopia às avessas, o mundo real projetado não para um futuro desejável, e sim para um futuro abominável e – o que é pior – cada vez mais próximo e inevitável.

O precursor deste gênero terá sido certamente Thomas Hobbes, com Leviatã, passando por Swift, com As Viagens de Gulliver, a mais sarcástica catilinária até hoje já escrita contra o gênero humano e, fato curioso, universalmente adaptada para o consumo infantil. Após Swift, as distopias se multiplicam e, entre as muitas deste século, temos Nós (1924), de Eugène Zamiatine, Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, Kalocaína (1940), de Karin Boye, O Zero e o Infinito (1946), de Arthur Koestler, 1984 (1948), de George Orwell, sem falar no atualíssimo A Saga do Grande Computador (1966), de Olof Johanesson, pseudônimo literário de Hannes Alfvén, prêmio Nobel de Física em 1970, que inaugura a entrada do computador nesta literatura de antecipação, com todas as suas consequências para o futuro da sociedade humana.

Interessam-nos no momento os romances de Zamiatine, Boye e Orwell. Pois se usualmente se vê em Nós, de Zamiatine, as influências que farão Orwell escrever 1984, uma série de elementos comuns a 1984 e Kalocaína nos fazem pensar que, ou Orwell não ignorava a obra de Karin Boye, ou Boye não ignorava a ficção de Zamiatine.

Bernard Crick, na biografia George Orwell, a life, não faz referências à escritora sueca. Mas informes nos dizem estar esta biografia superada, pois por um erro de classificação só agora foram descobertas nos arquivos da BBC mais de 250 cartas, adaptações radiofônicas de autores como Ignazio Silone, H. G. Wells, Anatole France e outros, além de 62 scripts para rádio sobre a Segunda Guerra Mundial. Segundo as primeiras pesquisas, uma fábula de Silone parece ter inspirado a Revolução dos Bichos, enquanto outros escritos já prenunciam 1984. Bernard Crick declarou desconhecer todo este material (cerca de 250 mil palavras), e as pesquisas futuras nos levarão, certamente, ao veio nórdico da obra maior de Orwell.

Por outro lado, a biógrafa por excelência de Karin Boye, Margit Abenius, jamais cita Zamiatine em Drabbad av renhet, mas este título já nos sugere qualquer coisa, como veremos adiante. Enfim, se neste clássico latino-americano, o Martín Fierro, encontramos os vestígios de uma antiga saga nórdica, os Eddas, nada nos surpreenderia ver na obra de Orwell – homem atento a seu tempo – influências de uma contemporânea sua, que vivia o mesmo engajamento ideológico (Boye lutou pelo socialismo através do movimento Clarté, como também Orwell, na Espanha, nas brigadas do POUM) e sofria as mesmas preocupações, já que tanto Kalocaína como 1984 são denúncias veementes dos totalitarismos emergentes na época.

Que é 1984?

Estamos em uma sociedade que, em 1948, Orwell situará nestes dias que estamos vivendo. O mundo está dividido em três grandes superpotências — como hoje — em guerra permanente: a Eurásia, que situamos nas atuais Rússia e Europa; a Lestásia, coincidindo com a China e o Japão; e a Oceania, incluindo a Grã-Bretanha, as três Américas e Austrália. Há ainda um vago território em disputa, que inclui o Oriente Médio, a África e o Afeganistão.

A ação do romance transcorre em Londres, capital da Oceania. O personagem central é Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, cuja função é criar e divulgar inverdades. Winston relaciona-se com Júlia, “rebelde da cintura para baixo”, o que, entre outras coisas, o levará à perdição, pois neste Estado não se admite relações mais sólidas entre um cidadão e outro do que as relações entre o cidadão e o Estado. Temos ainda Goldstein, de hipotética existência, membro de uma oposição subterrânea denominada Fraternidade.

Temos o Grande Irmão, de abstrata existência, tão abstrata que sequer talvez exista, ou pelo menos tenha deixado há muito de existir, mas que exige de todos amor e submissão. E temos outro elemento importante, o tecnocrata O’Brien, o mantenedor da Ordem, definida como eterna e imutável. Toda transformação, toda revolução, é impensável no universo orwelliano. A relação entre dominante e dominado será possível através da dor. Ouçamos O’Brien, enquanto tortura Winston:

” — O verdadeiro poder, o poder pelo qual temos de lutar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas sobre os homens. Como é que um homem afirma seu poder sobre outro, Winston?

“Winston refletiu.

” — Fazendo-o sofrer.

” — Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza de que ele obedece a tua vontade e não a dele? O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando?”

Às antigas civilizações fundadas no amor ou na Justiça, O’Brien contrapõe um mundo de medo, traição e tormento, onde o progresso será no sentido de maior dor.

” — Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As crianças serão tiradas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. (…), mas sempre… não te esqueças, Winston… sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se tornando mais sutil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da vitória, a sensação do pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa sempre numa bota pisando um rosto humano — para sempre”.

Para manter ad aeternum este poder, os tecnocratas de Oceania utilizam instrumentos simples e eficazes, ao alcance de qualquer ditador contemporâneo:

— a vigilância permanente, através de um aparelho emissor-receptor de TV, o olho onipresente do Grande Irmão. Permanentemente ligada, transmite o tempo todo propaganda estatal, enquanto ao mesmo tempo vigia o espectador involuntário.

— a destruição do passado, mediante o recurso elementar de controlar o registro da História, rescrever documentos e jornais, eliminar qualquer possibilidade de memória.

— a criação de um novo vocabulário, a Novilíngua, ou melhor, a redução sistemática do acervo vocabular então existente. O discurso se reduz a slogans, o que permite dizer: guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. As palavras se transformam em siglas, não temos mais socialismo inglês, mas Ingsoc. A palavra é substituída por módulos. Em vez de mau, temos inbom. Uma pessoa que desapareceu não é uma pessoa que desapareceu, é uma impessoa. Nunca existiu.

— a aniquilação imediata, através de uma eficiente polícia política, de toda e qualquer oposição ao sistema.

Objetivo final desta filosofia: a eliminação total daquilo que se convencionou chamar um ser humano.

” — Se és homem, Winston, és o último homem. Tua raça está extinta. Nós somos os herdeiros. Entendes que estás sozinho? Estás fora da história, tu és não existente”.

O último homem. 1984, inicialmente, tinha como título The Last Man in Europe. Como veremos adiante, também em Kalocaína temos uma vontade expressa de aniquilamento do assim chamado ser humano. E Winston, ao final do processo a que O’Brien o submete, acaba por crer finalmente que dois mais dois são cinco – ou quatro, ou seis, enfim, o que o Estado determinar – e trai sua própria amante. Submetido ao medo fundamental, a sala 101, acaba por pedir a O’Brien que ponha Linda em seu lugar, com o rosto colado à jaula do rato faminto. E passa a amar o Grande Irmão. A última expressão de individualidade é aniquilada no mundo irrespirável criado por Orwell.

Em Kalocaína, da escritora sueca Karin Boye, vivemos em uma sociedade indefinida no espaço e no tempo. Nós a intuímos no século XX – o avião e o metrô já existem e os personagens falam de uma Grande Guerra – mas Karin Boye não a situa geograficamente. Existe o Estado Mundial e as cidades não têm nome: temos assim as Cidades Químicas, as Cidades dos Calçados, as Cidades Têxteis, cada uma atendendo por um número. Além do Estado Mundial – o mundo teria sido dividido em dois depois da Grande Guerra – há “os outros seres do outro lado da fronteira”, o Estado vizinho, com o qual o Estado Mundial vive em guerra permanente.

Nesta sociedade sem classes, cujos habitantes são cidadãos e soldados ao mesmo tempo, o Estado oferece a cada um, recruta ou general, apartamentos estandardizados (um quarto para solteiros, dois para famílias) e uma alimentação padrão distribuída pelas cozinhas centrais de cada prédio. Como vestes, o cidadão-soldado dispõe de três uniformes: um para o trabalho, outro para o serviço policial-militar e um terceiro para o tempo de lazer. Pobres não existem, nem ricos, consequentemente. Olhos e ouvidos eletrônicos da polícia vigiam o interior de cada apartamento, mesmo à noite, através de raios infravermelhos, em uma antecipação ao olho do Grande Irmão, na obra de Orwell.

Mais ainda: as domésticas são trocadas semanalmente e têm o dever de enviar à polícia, após a prestação de serviços a uma família, um relatório sobre a mesma. Solicitações para visitas devem ser encaminhadas aos porteiros de edifícios, que por sua vez as encaminham à polícia. Concedida a permissão, o porteiro controlará a identidade e o horário de entrada e saída do visitante. No metrô e nas ruas, cartazes advertem:

NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO!
QUEM ESTÁ A TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO!

Nesta atmosfera já asfixiante, Leo Kall, cientista da Cidade Química nº 4, descobre a droga sonhada por todos os profissionais de informação: a kalocaína. Com apenas uma dose, sem tortura alguma, todo indivíduo que tenha ideias associais confessa alegremente e sem reservas sua culpa. Leo Kall — que acredita no Estado Mundial e em seus princípios — tem consciência da importância de sua descoberta:

” — Daqui em diante, criminoso algum negará a verdade. Agora nem mesmo nossos mais profundos pensamentos são nossos, como pensávamos, sem razão. Sim, sem razão. Dos pensamentos e sentimentos nascem palavras e ações. Como poderiam ser os pensamentos e sentimentos coisas privadas? O cidadão-soldado não pertence inteiro ao Estado? A quem pertenceriam então suas ideias e sentimentos, senão ao Estado? Até então, eram as únicas coisas que não podiam ser controladas – mas agora este meio foi encontrado”.

Quando alguém objeta ter sido devassado o último refúgio da vida privada, Leo responde alegremente:

” — Mas isso não tem importância alguma. A coletividade está pronta para conquistar a última região onde as tendências associais poderiam esconder-se. Vejo agora simplesmente a grande comunidade aproximar-se de sua culminância”.

Leo Kall recebe autorização para experimentar sua droga em membros do Serviço de Cobaias. No transcurso dos interrogatórios, acaba descobrindo uma seita misteriosa, sem nome nem chefes. Uma mulher, submetida à kalocaína, fala vagamente em “nosso objetivo”.

” — O objetivo de vocês? — perguntei. Mas quem são vocês?

” — Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Nós apenas existimos.

” — Existem como? Como se chamam nós, se não têm nome nem organização? Quantos são vocês?

” — Muitos, muitos. Mas eu não conheço muitos. Já vi muitos, mas nem sei como se chamam. E por que precisaríamos sabê-lo? Sabemos que somos nós“.

Mas nem Leo Kall nem o policial que o assistia nos interrogatórios conseguem extrair algo mais definido da cobaia. Não planejavam revolução alguma, não aspiravam a postos nem ao poder. “Queremos ser… queremos nos tornar… uma outra coisa…” é a resposta mais objetiva que obtém da mulher.

Ao desenrolar o fio da meada, mais confusos se tornam o cientista e o policial. As pessoas que formam a estranha seita não têm chefes, nem hierarquia. Reúnem-se na casa de um deles cumprindo um misterioso ritual. Não discutem coisa alguma e cumprimentam-se apertando as mãos. Um dos membros conta:

” — Inacreditável! Algo necessariamente anti-higiênico e, além disso, tão íntimo que nos dá vergonha. Tocar no corpo de outro, intencionalmente! Eles afirmaram tratar-se de uma antiquíssima saudação que haviam retomado, mas não se precisava utilizá-la, caso não se quisesse, não se era obrigado a nada. No início, eu tinha medo deles. Nada é tão horrível como se sentar e ficar calado. Tem-se um sentimento de que todos penetram a gente. Como se se estivesse nu, ou pior ainda. Espiritualmente nu.

Já os iniciados celebravam um outro rito. Apanha-se uma faca e alguém a entrega ao outro, deita-se numa cama e finge que dorme. Uma mulher faz uma descrição fantástica:

” — Se alguém quer participar, tem lugar para ele também fingir que dorme. Pode-se sentar a cabeça na cama. Ou na mesa ou em qualquer coisa.

” — E qual é o sentido disto?

” — Um sentido simbólico. Através da faca ele se entrega à violência do outro. E, no entanto, nada lhe acontece”.

O cientista pensa estar tratando com uma seita de débeis mentais. Interrogando uma mulher sobre a organização, ouve uma resposta espantosa:

” — Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constroem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constroem utilizando a vocês mesmo como pedras, e ruem por dentro e por fora. Nós nos construímos desde dentro, como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado”.

Após algumas reflexões, Leo Kall passa a considerar extremamente subversiva a seita. Sua defesa da filosofia do Estado Mundial ao chefe de polícia nos lembra o discurso de O’Brien:

” — A filosofia desses loucos é contrária ao Estado. Relações pessoais mais sólidas que a relação com o Estado – é a isso que eles querem conduzir! À primeira vista, seus rituais parecem asneiras. Num segundo momento, se evidenciam como absolutamente repulsivos. São mostras de uma confiança exagerada entre as pessoas, pelo menos entre algumas. E isto já considero perigoso ao Estado. Existissem bases e razões para a confiança entre os homens, jamais o Estado seria erigido. O fundamento sólido e necessário da existência do Estado é a desconfiança mútua e profunda entre os homens. Quem nega este fundamento, nega o Estado”.

Retomemos um trecho do discurso de O’Brien: “Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos”.

Estamos diante da aniquilação sistemática daquilo que se convencionou chamar de humanidade. O’Brien, ao reduzir Winston pela tortura a um farrapo, o faz olhar-se no espelho e o define como o último homem. O que em nada difere dos propósitos do cidadão-soldado Leo Kall:

” — Ser Humano! Um povo místico elaborou conceitos em torno desta palavra! Como se houvesse algum valor em ser humano! Ser Humano! Isto é apenas uma concepção biológica. Eis algo que precisamos abolir tão rápido quanto possível!”

Como em 1984, há um desejo manifesto de aniquilação do ser humano. Muitos são os pontos de encontro entre as duas obras. Neste rápido estudo comparativo, salientaremos apenas os mais evidentes:

— a vigilância contínua dos cidadãos pelo Estado
— a ausência de arte
— a constância dos duplos
— uma fraternidade, clandestina e paralela ao Estado
— a existência de um mundo selvagem, não organizado, e por isso mesmo desejável
— a desconfiança entre os homens como fundamento do Estado

Na obra de Orwell, cada cidadão é vigiado permanentemente pelo olho televisivo do Grande Irmão. Em Kalocaína esta função é desempenhada pela empregada, por olhos e ouvidos eletrônicos e, finalmente, pela própria substância criada por Leo Kall. (Em Nós, as paredes dos edifícios são de vidro, pois afinal cada cidadão nada tem – ou não deve ter – a esconder do Estado). Há um desejo de transparência, por parte dos ideólogos destas sociedades, de uma pureza visceral do ser humano, e não será por acaso que Margit Abenius intitula sua biografia de Karin Boye de Drabbad av renhet.

Por outro lado, se o artista é aquele que — no dizer de Ernesto Sábato — sonha pela comunidade para que esta não enlouqueça, assalta-nos a pergunta: e como seria uma sociedade sem arte? A resposta nos é dada por Boye e Orwell: é o mundo asfixiante de suas obras. O livro que Leo Kall se propõe a escrever é por ele mesmo definido, já nas primeiras linhas, como um caminho em direção ao inútil. Na última página, sua obra traz o parecer da Censura, considerando-a subversiva e condenando-a às gavetas do Arquivo Secreto do Estado Mundial. Em 1984, as manifestações artísticas são controladas pelo Estado, que mantém um corpo de técnicos encarregados de criar uma subliteratura inócua para consumo das proles. Outros técnicos, por sua vez, são encarregados de fazer desaparecer palavras e, com elas, os conceitos que expressavam.

Nos dois romances — como também em Nós — há a ocorrência de duplos. Winston e O’Brien se confundem um com o outro, mesmo divergindo de opiniões, da mesma forma que Leo Kall e Edo Rissen. Estes personagens, ao apresentarem ao interlocutor suas razões para crer ou descrer no Estado, em verdade parecem estar fazendo um esforço tremendo para acreditar nas verdades que professam.

Em ambos os romances — como também no de Zamiatine — suspeita-se da existência de uma sociedade paralela. Em 1984, temos a Fraternidade, que tem em Goldstein seu líder, assim como os “loucos” de Kalocaína têm como inspirador um certo Reor. Já ouvimos o depoimento de um dos membros dessa seita sem nome, quando submetido à droga descoberta por Leo Kall. Ouçamos agora O’Brien falando a Winston:

” — Já ouviste boatos da existência da Fraternidade. Sem dúvida já tens ideia dela. Imaginaste, provavelmente, um vasto mundo clandestino de conspiradores, reunindo-se secretamente em porões, rabiscando mensagens nas paredes, reconhecendo-se por meio de códigos ou gestos especiais. Nada disso existe. Os membros da Fraternidade não têm meio algum de se reconhecer e é impossível a qualquer um conhecer a identidade de mais que outros poucos. O próprio Goldstein, se caísse nas mãos da Polícia do Pensamento, não poderia fornecer uma lista completa dos conspiradores, nem informação que permitisse compilá-la. Não existe essa lista, a Fraternidade não pode ser eliminada porque não é uma organização no sentido comum da palavra. Nada a cimenta, exceto uma ideia, uma ideia indestrutível”.

Em ambos os livros, os personagens veem em sonhos um mundo primevo, intocado pelo homem, verde e selvagem. Em 1984 é a Terra Dourada, onde há regatos com espraiados verdes, peixes nadando nas lagoas, sob os chorões, abanando a cauda. Em Kalocaína há a Cidade Deserta, de hipotética existência, e crer nela é sacrilégio. Vejamos um dos sonhos de Leo Kall:

“Ouvi então sons misteriosos de vozes mais adiante. Lá estava aberta a porta semidestruída de um porão, revestida por trepadeiras verdes em ambos os lados. Não a havia observado antes e, em minha angústia, suava frio ao ver o verde viver sua vida tão próximo a mim. Sobre os degraus rachados e gastos de pedra alguém surgira até a luz e me acenava para entrar. Não lembro mais como cheguei até a porta, talvez tenha pulado animalescamente sobre as pedras perigosas. Seja como for, entrei em uma câmara sem teto, em ruínas, onde penetrava o sol, e grama e flores pairavam sobre minha cabeça. Jamais um aposento com teto e paredes em pedaços me parecera tão seguro refúgio. Do tapete de grama emanava um odor de sol e terra e cálida despreocupação, e as vozes cantavam ainda, embora distantes. A mulher que me acenara antes estava lá e nos abraçamos um ao outro. Eu estava salvo e queria dormir de cansaço e alívio. Tornara-se totalmente desnecessário que continuasse a percorrer a rua. Ela disse: ‘tu ficas comigo’. ‘Sim, deixa que eu fique!’, respondi, sentindo-me livre de todas as preocupações, como uma criança. Quando me inclinei para ver o que me molhava os pés, notei que do chão brotava uma fonte clara, e isto inundou-me de uma indescritível gratidão. ‘Não sabes que daqui emerge a vida?’, disse a mulher. Ao mesmo tempo, eu sabia ser isto um sonho do qual despertaria, e busquei em pensamentos uma forma de guardá-lo — tão furiosamente que o coração começou a pulsar com violência e acordei”.

Desejo de evasão, de fuga da cidade e do mundo estupidamente racional em que se vive. Todo pensamento utópico implica uma repulsa, uma não aceitação das regras sociais vigentes, e criações literárias como estas nos esclarecem, melhor do que filosofias e teorias comportamentais, a proliferação de seitas e comunidades nos dias atuais. Queremos ser – como dizia a cobaia de Leo Kall – uma outra coisa…

E, finalmente, a constatação de ambos os autores de que a desconfiança entre os seres humanos é a base do Estado. Este me parece ser um dos aspectos mais profundos destas duas obras-primas, a proposta mais subversiva e vivificadora de Boye e Orwell. Os poderosos sabem que só podem reinar dividindo, e todo homem sensível sabe que só pode escapar ao poder unindo-se a seus irmãos. As instituições que querem afastar um homem do outro estão aí, são as igrejas e os Estados fundamentados em religiões ou filosofias totalitárias, com suas proibições e dogmas. Felizmente também estão aí os que buscam aproximar os seres humanos, os escritores com suas dúvidas. Escreve Karin Boye:

“Gostaria de acreditar na existência de um abismo verde no ser humano, um mar de seiva intacta, que funde todos os restos mortos em seu colossal reservatório e os purifica e recria eternamente… Mas eu não o vi. O que sei é que pais doentes e professores doentes educam crianças ainda mais doentes, até que a doença se torna norma e a saúde um pesadelo. De seres solitários nascem outros mais solitários ainda, de temerosos outros mais temerosos… Onde poderia um último resquício de saúde ter-se escondido ainda para crescer e perfurar a carapaça? Aqueles pobres homens, que chamamos loucos, brincam com seus símbolos. Algo deve ter existido…”

Todos estes pontos comuns entre os dois romances nos levam a crer, como afirmei no início, uma possível leitura de Kalocaína por Orwell. Que poderia também simplesmente não ter ocorrido, pois os dedos sensíveis de Orwell e Boye estavam apenas captando as chispas de uma tempestade que se aproximava. Margit Abenius nos conta que num debate sobre Kalocaína, Boye disse a Harry Martinson: “Eu tenho medo”. E quando sua mãe comentou que ela havia feito um bom livro, ou algo semelhante, Karin Boye respondeu com uma pergunta:

— Tu achas que fui eu quem o fez?

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Bibliografia:
Abenius, Margit. Drabbad av renhet. Estocolmo, Albert Bonniers Förlag, 1950
Boye, Karin. Kalocaína. Rio, Editora Americana, 1974. Tradução de Janer Cristaldo
Crick, Bernard. George Orwell, une vie. Paris, Balland, 1982. Tradução de Jean Clem
Orwell, George. 1984. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1970. Tradução de Wilson Velloso
Zamiatine, Eugène. Nous Autres. Paris, Gallimard, 1874

 

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