Fevereiro de 2020 – Vol. 25 – Nº 2
Sérgio Telles
Como epígrafe de seu livro “A idade de ouro do Brasil”, João Silvério Trevisan escreve: “Ao Espírito do Tempo, que paira sobranceiro e tudo registra, para compor a narrativa da História”.
As muitas maiúsculas da frase e sua grandiloquência me remeteram de imediato para “O vermelho e o negro”, de Stendhal e “Guerra e Paz”, de Tolstoi. Neles, como se sabe, os dois gênios literários capturaram o Vento da História e o Espírito do Tempo encarnados na figura extraordinária de Napoleão Bonaparte, que demoliu uma concepção de mundo centrado no absolutismo justificado pela vontade divina, abalando assim uma estrutura sociopolítica que se mantinha de há muito e marcando de forma indelével seus contemporâneos e a posteridade.
A gravidade solene da epígrafe me fez pensar que Trevisan, mirando-se naqueles exemplos, também se dispunha a criar um amplo painel mostrando a sociedade e suas antinomias, o mundo no qual nos debatemos, acossados pelas adversidades trazidas pela realidade externa e por nossos demônios interiores. Mas, percebendo que seria desmedido comparar qualquer escritor com aqueles gigantes, ajustei melhor minha perspectiva.
Trevisan situa a ação de seu livro no ano de 2009, quando Lula estava no momento mais otimista de seu governo, o ingresso do Brasil nos BRIC e a descoberta do pré-sal alimentavam grandes esperanças. Numa mansão no interior de São Paulo, reúnem-se alguns homens poderosos visando criar um partido político – o “Partido Nacional Liberal”. Nesse encontro, é esperado com ansiedade um misterioso personagem que poderia vir a exercer a liderança do grupo. Trata-se de um capitão do exército, cuja descrição parece algo familiar ao leitor, e que, ao chegar, assusta e decepciona a todos com sua grosseria e radicalismo. O capitão é visto como a encarnação do mal e, apesar da frustração que causa no grupo, provoca uma forte impressão, transformando-o de forma definitiva: “Sem se dar conta, esses políticos não seriam mais os mesmos. A partir daquele instante em que o braço punitivo se levantou, rasga-se a cortina de um drama medíocre para entrar em cena o desvario da história. O espírito do tempo, com sua lógica grávida de enigmas, determina a supressão da máscara, para que o mal se revele nu. Uma vez cancelada a máscara, a mansão das rosáceas toma o rumo de uma narrativa errática, à procura de um sentido indecifrável. A cena se abre para a necessidade de novos profetas. Ou profetisas, como se verá” (p. 66).
Declaração tão altissonante poderia fazer pensar que o tal capitão ocuparia um lugar de relevo nas tramoias em torno da corrupta luta pelo poder. Mas não é o que acontece. Após a breve e intensa apresentação, ele desaparece e entram em cena os travestis que o anfitrião havia contratado para relaxar e animar seus convidados após seus exaustivos trabalhos. E a calamidade temida desencadeada pelo contato com o maligno capitão logo se concretiza no mortal embate entre os políticos e a trupe de travestis.
Comandados pela “majestática” Vera Bee, os travestis entram em desacordo com o dono da casa e a situação sai fora de controle. No grande impasse que se instala, Vera Bee mostra que além das preocupações com roupas, caras e bocas e com o show que iriam fazer, tem ideias próprias sobre política. Numa identificação delirante com Carlota Joaquina, ela escreve um blog na internet com o pseudônimo de “Carlota II, a Sábia”, onde expõe um desconjuntado e ingênuo projeto de redenção nacional. O blog se intitula “A idade de ouro do Brasil”, em homenagem ao jornal homônimo publicado em Salvador entre 1811 e 1823, algo possibilitado com a chegada da corte portuguesa, desde que até então inexistia a imprensa nessas plagas tropicais.
Tal como Cazuza, que numa canção se perguntava “que país é esse”, expressando sua indignação com a incessante esbórnia, irresponsabilidade e inconsequência que caracterizam de longa data a atuação de nossos homens públicos, Trevisan (que cita a canção no livro) procura fazer algo semelhante, ao ficcionalizar esse momento de desmascaramento e desidealização que o país vive em relação a seus líderes.
Mas, deliberadamente ou não, e sem se deixar inibir pelo politicamente correto, Trevisan se atém a um registro caricatural e kitsch, fazendo com que aquilo que poderia ser uma ópera trágica assuma ares de ópera bufa, uma pornochanchada com todos seus tiques e ademanes.
(*) Publicado no caderno EU&FS do jornal Valor Econômico, em 24/01/2020