Sérgio Telles
Freud sempre se interessou pelas relações entre arte e psicanálise, tema abordado em muitos de seus escritos. “Fernando Pessoa e Freud – Diálogos inquietantes” se insere nessa linha de estudos psicanalíticos. Nele estão compilados 30 anos de reflexões realizadas por seu autor Nelson da Silva Jr, professor associado do Instituto de Psicologia da USP, doutorado pela Université Denis Diderot Paris VII, onde foi orientado pelo respeitado psicanalista Pierre Fedida.
Quando um livro tem peso e consistência, costuma-se dizer que é uma obra “alentada”, ou seja, que tem alento, ânimo, esforço, coragem, valentia. Seguramente Nelson da Silva Jr. merece tais elogios, pois adentra num terreno difícil que poucos se dispõem a desbravar, que é a desconstrução das bases metafísicas sobre as quais Freud construiu seus conceitos metapsicologicos, e se sai muito bem da empreitada,
O autor escolhe a obra de Fernando Pessoa como via para atingir seus objetivos. Diz-se que a obra de Pessoa é um desafio à filosofia, como em sua defesa do paganismo contra as posições “crísticas” (de cristianismo). Um dos pontos mais interessantes dessa discussão, e que se torna um dos argumentos centrais do livro, diz respeito à dicotomia dos discursos filosóficos encetada por Aristóteles em sua disputa com os sofistas, quando estabeleceu o princípio da não contradição, dividindo os discursos em duas categorias. Os discursos que obedecem tal princípio (os filosóficos e seus derivados como o cientifico) são os verdadeiros e valorizados, e os que não o obedecem (como a sofistica e literatura) são os falsos e depreciados, objeto de desconfiança. A quebra do lacre aristotélico, que distinguia ficção e realidade e que os sofistas (e todos os praticantes dos discursos suspeitos) teimavam em ignorar, tem grandes consequências pois transcende a ordem dos discursos e assume uma conotação ontológica, existencial – o próprio ser fica questionado. Nossas lembranças, nossa identidade, nossa própria existência, seriam apenas ficções? Essa é uma questão central não só para a filosofia, mas também para a psicanálise. O autor mostra detalhadamente os processos psíquicos ocorridos durante a constituição do sujeito pelos quais se estabelece a distinção entre o mundo real e o mundo interno, muito embora eles permaneçam em permanente intercâmbio. Por isso mesmo, a abertura entre a ficção e a realidade seria inerente à psicanálise, condição que o autor chama de “ficcionalidade”.
Freud via a psicanálise como científica e não queria que a confundissem com a literatura, apesar de reconhecer as aproximações entre esses campos. Provocava-lhe incômodo a semelhança de seus casos clínicos com a ficção e os ataques dos inimigos, que diziam ser a psicanálise um “conto de fadas científico” (Havelock Ellis). É compreensível a ambivalência de Freud, pois se na consciência rege o princípio da realidade e sua lógica racional, no inconsciente vige o princípio do prazer, que não obedece ao princípio da não contradição e segue pressupostos semelhantes aos da sofística e da ficção. Silva julga ver o texto de Freud “O inquietante” como uma expressão sintomática do impasse do mestre vienense frente a literatura e a arte.
O livro se divide em quatro partes e nove capítulos que podem ser lidos na ordem escolhida pelo leitor. A primeira parte trata de questões próprias ao sujeito, relacionadas com a espacialidade, a temporalidade e a alteridade. À estabelecida oposição entre interioridade (implícita aos conceitos de subjetividade, identidade e psiquismo) e exterioridade (como lugar do outro), o autor contrapõe a obra de Fernando Pessoa, que, tal como a fita de Moebius, evidencia uma superação dessa dicotomia, pois os heterônimos não seriam figuras internas e sim figuras dramáticas que se localizam “fora”, num espaço ocupado habitualmente pelo outro. Fernando Pessoa enquanto ortônimo teria uma interioridade, enquanto heterônimo está “fora de si”, “outrificado”, transformado no outro.
A segunda parte examina a função da identidade no espaço social. Enquanto Pessoa se desfaz da identidade num ambiente cultural bem estruturado, o sujeito pós-moderno, com suas tatuagens e piercings, tenta organizar uma identidade literal no corpo, num campo social onde tudo o mais vacila. Num outro capítulo, o autor destrincha o equívoco de Thomas Mann ao colocar Freud como representante do romantismo alemão.
Na terceira temos um estudo sobre a perspectiva na pintura e sobre a interpretação e modelos hermenêuticos. Com a perspectiva e especialmente com a anamorfose, que é sua configuração mais radical, o espectador é obrigado a se submeter ao desejo do pintor, que designa o lugar a ser ocupado por aquele que olha a obra, o que é análogo à postulação lacaniana da alienação estrutural no desejo do outro. O sujeito perde a liberdade de ver a obra a partir do ângulo de sua escolha, como faria ao observar uma escultura ou entrar num espaço arquitetônico. Num outro capítulo, o autor retoma a questão da identidade a partir da pergunta “who´s there”, primeira fala de “Hamlet”.
A quarta aborda mais diretamente a já mencionada questão da ficcionalidade em psicanálise.
Tendo a obra de Fernando Pessoa como pano de fundo, o livro de Nelson da Silva Jr. é uma ampla perspectiva da cultura e da posição que nela ocupa a psicanálise, uma densa elaboração teórica da metapsicologia freudiana, abordada de forma profunda e inteligente.
(*) Publicado no caderno EU&Fim de Semana do jornal Valor Econômico em 20/09/2019