Fernando Portela Câmara, MD, PhD
Diretor científico do Instituto Stokastos
A mente continua sendo ainda o último reduto do vitalismo porque não houve ainda uma explicação simples, satisfatória e mecanicista sobre a natureza da percepção consciente. Nas últimas décadas, porém, uma enxurrada de novas descobertas da neurociência produziu evidências que levaram a hipóteses testáveis. Cientistas começaram a atacar o problema com base na busca de correlatos neurais, particularmente quando Koch e Crick (2003) sugeriram que a região cerebral conhecida como claustro integraria informações entre diferentes partes do cérebro, como o maestro de uma sinfonia, e atuando como uma espécie de interruptor da consciência, pois, quando essa região era estimulada eletricamente, o paciente ficava instantaneamente inconsciente.
A consciência não se distribui por todo o cérebro. Por exemplo, o cerebelo, que contem quase 70% dos neurônios do encéfalo e é responsável pela coordenação da atividade motora, não influi no estado da consciência (indivíduos com lesões cerebelares graves – ou mesmo sem cerebelo – não perdem a consciência). Por outro lado, o córtex cerebral e o tálamo têm direta relação ela, mas não temos conhecimento suficiente para dizer se a consciência está presente ou não em pacientes que não conseguem se comunicar ou expressar reação, ou se alguns animais ou até sofisticados computadores a tem em algum grau. Não há como intervir no cérebro para extrair dali um extrato de consciência. Temos, contudo, atualmente, duas teorias científicas que abordam o problema: a teoria do espaço de trabalho global (Baars, 1983; 1997) e a teoria da informação integrada (Tononi, 2008; Tononi et al., 2016).
A teoria do espaço de trabalho global é baseada em um conceito da inteligência artificial chamado de “quadro negro”, um espaço em que um dado “chama” bancos de memórias que diferentes programas de computador podem acessar, ou seja, um espaço em que possível lembrar experiência passadas inconscientes. Qualquer coisa, como o rosto de uma pessoa ou uma cena da infância pode ser reproduzida na lousa do cérebro a partir de informações enviadas de outras áreas (inconscientes) do cérebro e processadas interativamente nessa região. De acordo com Baars, a integração e convergência de informações mnêmicas no cérebro inconsciente para o foco da atenção seletiva formaria o ato consciente.
Nesse modelo, o processamento pré-consciente tem lugar em locais no cérebro, como por exemplo, o córtex visual, auditivo, etc., e somente quando essas áreas se integram no ato consciente tornar-se-ia possível o pensamento e a fala. Essa integração seria realizada pela rede de trabalho global em atividade sincrônica e nos proporcionaria a sensação de “penso, logo existo”. Estudos recentes suportam as previsões de Baars (Robinson, 2009).
Evidências dessa rede confirmaram-se numa série de resultados como, por exemplo, o atraso entre a visualização de um estímulo e a sua tomada de consciência. Em um recente experimento usando ressonância magnética funcional no Bernstein Center for Computational Neuroscience, em Berlim, voluntários tinham de executar uma tarefa simples que consistia em apertar um botão diante de um estímulo visual, enquanto seus EEGs eram monitorados. Verificou-se que o ato consciente ocorria depois de alguns segundos de os registros mostrarem que o cérebro havia tomado a decisão. Este e outros experimentos sugerem que a consciência não é um ato de vontade, mas algo que julga o valor de nossas ações e decide por eles.
Algumas regiões por onde essa rede – denominada de “rede default” (default mode network, DMN) – se estenderia foram identificadas por meio de estudos de imagens. Demonstrou-se que os neurônios dessa rede disparam quando se toma consciência de algo, mas permanecem em um estado inativo se a percepção não chega ao nível consciente, embora tenha sido recebida no córtex sensorial (percepção inconsciente). Esta seria então a base neurológica da teoria do espaço de trabalho global. Entretanto, não temos evidências empíricas de que essa rede também é responsável pela sensação de nós próprios, ou seja, de autoconsciência. A teoria do espaço de trabalho global é uma tentativa de explicar em bases empíricas apenas o ato consciente.
Em contraste com a teoria do espaço de trabalho global, temos a teoria de informação integrada (Tononi, 2008; Tononi et al., 2016; Koch, 2018), que sugere que a experiência consciente resulta de uma grande variedade de informações irredutivelmente integradas. Isto significa, por exemplo, que quando abrimos os olhos ao acordar, não podemos optar por ver tudo em preto e branco ou de cabeça para baixo. Em vez disso, o cérebro processa e integra simultaneamente e em nível inconsciente uma complexa rede de informações sensoriais e cognitivas. É possível medir o grau de integração utilizando técnicas de estimulação magnética cerebral e usar o registro para calcular seu grau de compressibilidade na forma de um arquivo zipado. Isso dá um valor numérico representado por ϕ, que seria uma medida do grau de irredutibilidade da experiência. Se ϕ = 0, o sistema é redutível às suas partes, mas se ϕ > 0, o sistema é mais que a soma de suas partes, ou seja, complexo. Esse modelo sugere que a consciência pode existir em diferentes graus de complexidade nos seres humanos e possivelmente em outros animais.
Esse tema talvez seja um marco importante para uma redefinição mais precisa do que seja neuropsiquiatria, pois é o conhecimento mais promissor para conseguirmos entender a doença mental em suas bases neuroinformacionais (Câmara, 2013).
Referências
Baars BJ. Conscious contents provide the nervous sytem with coherent, global information. In RJ Davison, GE Schwartz e D Shapiro (Eds.) Consciousness & Self-regulation, N. Y.: Plenum Press, 1983.
Baars BJ. In the theatre of consciousness: Global workspace theory, A rigorous scientific theory of consciousness. Journal of Consciousness Studies 1997;4: 292-309
Baars BJ. The conscious access hypothesis: Origins and recent evidence. Trends in Cognitive Science 2002;6: 47-52.
Câmara FP. Psiquiatria como ciência da informação, Rev. Debates em Psiquiatria, 3(2): 38-42, 2013. Disponível em http://www.abp.org.br/download/revista_debates_14_web_.pdf
Crick F, Koch K. A framework for consciousness, Nature Neurosciencia 2003; 6: 119-126.
Koch C. What is conscience? Nature 2018; 557, S8-S12.
Robinson R (2009) Exploring the “Global Workspace” of Consciousness. PLoS Biol 7(3): e1000066.
Tononi G. Consciousness as integrated information: A provisional manifesto, Biol. Bull., 2008;215: 216-242.
Tononi G, Boly M, Massimini M, Koch C. Integrated information theory: from consciousness to its physical substrate. Nat Rev Neurosci. 2016;17: 450-61. doi: 10.1038/nrn.2016.44