Sérgio Telles
Quando perdemos um ente querido, impõe-se um trabalho de luto. Nesse processo, é necessário reconhecer a depressão que a perda provoca e ir aos poucos transferindo para outras pessoas os sentimentos antes investidos naquele que se foi, ao mesmo tempo em que se guarda na memória suas lembranças, ficando assim sua imagem preservada do completo olvido. O trabalho de luto então se encerra e o sujeito retoma sua vida habitual. Mas nem sempre é assim. O processo de luto pode estancar se o sujeito não consegue elaborar a perda. É quando se instala a melancolia. Na maioria das vezes isso ocorre pelo relacionamento ambivalente que se mantinha com o morto. Amado e odiado intensamente, sua morte foi secretamente desejada, gerando culpas inconscientes. Dessa forma, a ligação com o morto não arrefece e ele continua presente, vagando como um fantasma pelos corredores da mente, desencadeando a depressão.
Ao analisar o processo de luto e seu fracasso gerador da melancolia, Freud tinha em mente os estados clínicos individuais. Mas logo se apercebeu que tais mecanismos tinham implicações mais amplas, ligadas à própria constituição do sujeito.
O que se elabora com o trabalho de luto não se restringe à morte de um ente querido. Pode-se referir a perda de bens materiais ou imateriais, como crenças a respeito de si mesmo ou do mundo, fantasias e ilusões.
A melancolia é um sintoma que aparece não apenas no plano individual. Sociedades inteiras sofrem grandes perdas com guerras, catástrofes naturais, crises econômicas. Poucas vezes tais perdas são plenamente reconhecidas e elaboradas, possibilitando o trabalho de luto. Quase sempre são reprimidas ou negadas, suprimidas, levando a posições melancólicas, como mostram Roudinesco e Derrida (“De que amanhã”, Zahar, 2010).
Derrida fala em “melancolia geopolítica”, “melancolia como política”, “política da melancolia”, ao se referir à impossibilidade de a sociedade fazer o luto por determinadas perdas, o que acarreta graves consequências sociais. Ao discutirem a repercussão no meio intelectual francês provocada pela derrocada do modelo soviético de comunismo, evocam a figura de Louis Althusser, cuja vida entrelaça a melancolia pessoal e social. Filósofo muito respeitado e querido, Althusser sofreu de melancolia por longo tempo e, apesar dos inúmeros tratamentos realizados, no final da vida terminou por assassinar sua mulher num surto psicótico. Sua tragédia pessoal poderia, dizem eles, ser vista como uma metáfora do desespero dos comunistas, e da esquerda de modo geral, com a falência de um ideal longamente acalentado. Impossibilitados de lidar com tamanha perda, muitos reagiram de forma maníaca, negando a realidade e se aferrando a um projeto definitivamente falhado. Derrida pensa que o sentimento de perda atualmente se estende para a própria política tal como exercida até recentemente e agora forçada a enfrentar as profundas alterações trazidas pelas novas tecnologias, que questionam os estados e suas soberanias através da economia globalizada e da velocidade da circulação da informação.
Roudinesco aborda a “melancolia da revolução” em seu livro sobre Théroine de Mericourt e em “Genealogias”. Discorre sobre a melancolia que se abateu sobre os primeiros participantes da Revolução Francesa ao se instalar o Terror e se perderem os ideais que a animara, sendo Théroine de Mericourt, essa protofeminista que passou seus últimos 23 anos internada como louca na Salpêtrière, um bom exemplo desses impasses. Onda melancólica semelhante se abate, como já foi dito, sobre a intelectualidade francesa com a queda do comunismo soviético, levando a suicídios e enlouquecimentos, assim como sobre os discípulos de Lacan, impossibilitados de fazer o luto pelo combalido mestre, desenvolvendo como resposta atitudes extremadas e dogmatismo radical próprios de seitas religiosas.
As observações de Roudinesco e Derrida não se aplicam apenas aos intelectuais franceses da época de Althusser e mais recentemente. Penso que parte da esquerda ainda se vê diante de quadro semelhante, pois não são muitos os que elaboraram o luto pela perda do sonho da revolução e se desprenderam de modelos políticos que se mostraram inviáveis, procurando pensar novas formas de lutar contra a injustiça social que persiste e precisa ser enfrentada. Não estaríamos vivendo algo semelhante atualmente no Brasil?
Essa dimensão social da melancolia foi bem estudada por Torok e Abraham. Esses autores analisaram as vivências traumáticas e vergonhosas que implicam perdas narcísicas ligadas à identidade e à autoimagem, e que, quando negadas e não elaboradas, são transmitidas às gerações posteriores através do não-dito, de buracos simbólicos no discurso, retornando como fantasmas, espectros, assombrações. Ao contrário da melancolia, quando o que foi perdido (pessoa, ideia, crença, autoimagem) pertence à história pessoal do sujeito, nos casos descritos por Torok e Abraham as vivências traumáticas e vergonhosas não pertencem à história individual do sujeito e sim à de seu grupo familiar, étnico ou cultural. São segredos e sofrimentos de um Outro, não do próprio sujeito.
Mais recentemente, o conceito de melancolia política adquire novo impacto com o aprofundamento dos estudos pós-coloniais, como afirma Stephen Frosh. Os povos colonizados tiveram suas raízes culturais extirpadas pelo colonizador, que lhes ofereceram a “civilização” em troca; os povos submetidos não elaboraram os valores perdidos e muito da vergonha sofrida com a humilhação que os colonizadores lhes impingiram também foi suprimido e transmitido para as novas gerações através do não-dito. Os colonizadores, por sua vez, não fizeram um efetivo mea-culpa, não assumem as violências cometidas e as medidas reparatórias realizadas se mostram insuficientes. Em parte, as ondas migratórias que os países europeus recebem de suas antigas colônias são evidência disso: na Inglaterra, hindus e paquistaneses; em Portugal, nativos de Angola; na França os árabes do magreb. A atitude extremamente ambivalente dos antigos colonizadores em relação aos imigrantes reflete a culpa e a negação, a impossibilidade de fazer o luto pela imagem idealizada que tinham de si mesmos (viam-se como emissários da “civilização) e reconhecer os abusos e crimes efetivamente realizados (a exploração extrativista predatória e destrutiva do meio e da cultura nativas). Manifestação desse fenômeno aparece no movimento “Restitution”, que cresce na Europa, exigindo a devolução dos bens culturais que enchem os museus europeus e que são considerados como saqueados por seus países de origem.
Um outro fator que reforça a presença da melancolia na política decorre do fato de vermos os políticos como figuras paternas fortes, a quem devemos obediência e gratidão. Não queremos fazer o luto pelo desejo infantil de manter a dependência de pais protetores, consequentemente não podemos assumir nossa plena autonomia adulta, que nos faria ver os políticos de forma bem diferente, exigindo eles a accountability, a prestação de contas pelo poder que lhes outorgamos, sem nos entregar à sedução de demagogos e populistas que deliberadamente manipulam nossos anseios mais regressivos.
Talvez a forma como hoje a tecnologia possibilita a circulação da informação ajude a diminuir esse antigo problema, ao facilitar uma salutar desidealização dos políticos, os antigos “grandes homens” que guiavam a sociedade. Tais figuras estão agora muito mais expostas, percebermos mais claramente seu despreparo, sua ignorância, sua irresponsabilidade, sua corrupção. Perdemos sim os pais maravilhosos que gostaríamos que fossem e somos forçados a enfrentar a realidade de que devemos vigiar atentamente aqueles a quem delegamos o poder e que nos devem explicações. Não somos mais criancinhas que devem obedecer aos adultos que tudo sabem. Realizando o luto pela infância perdida, saímos da melancolia e assumido nossa responsabilidade e integridade de cidadãos atuantes.
Luto e melancolia não são estados psíquicos normais. Mas estamos permanentemente enfrentando perdas de diferentes magnitudes que a vida não cessa de nos impingir. Assim, estamos sempre fazendo lutos bem ou malsucedidos, ou seja, superando ou sucumbindo a momentos melancólicos. Somos continuamente assombrados pelos fantasmas das pessoas que passaram por nossa vida e das ilusões que um dia abrigamos. Eles se foram, mas mesmo assim continuam presentes a nos atormentar, testemunhado quão certo estava Faulkner ao dizer – o passado não está morto, ele sequer passou.
(*) Publicado no jornal Valor Econômico – EU&FIM DE SEMANA – 18/01/2019