Resenha do livro de Sérgio Telles, O Psicanalista vai ao cinema, volume 3 – São Paulo, Zagodoni Editora, 2016, 137 p.
Lisette Weissmann[1]
No livro “O Psicanalista vai ao cinema, volume 3”, Sérgio Telles nos apresenta uma magnifica visão da contemporaneidade a partir do cinema, na qual dá testemunho de sua posição como psicanalista antenado com o mundo atual.
Telles mostra como a parceria entre cinema e psicanálise permite ao leitor a ampliação de seu conhecimento e compreensão a respeito dos interesses, desejos e sofrimentos do sujeito no século XXI. A psicanálise possibilita uma captação mais abrangente, dado que sem suas interpretações e explicações ficaria difícil, senão impossível, decifrar os enigmas do sujeito contemporâneo mostrados no cinema. Sem ela, o cinema se ateria a imagens que dão fé de nosso tempo e nossos costumes.
Antes de começar a leitura, chama a atenção o formato e a edição do livro, que convidam o leitor a brincar, a desconstruir o esperado na hora de ter um livro em mãos. O formato tenta apresentar o que o livro em si aprecia: um outro olhar, uma mirada que sai dos esquemas exclusivos dos críticos de cinema e do trabalho clínico do psicanalista, para fazer com que um conhecimento potencie o outro. Sair do conhecido e esperado é um grande desafio, tanto para o editor do livro como para o autor. Eles se permitem ir além, sair do enquadre convencional, para pensar e tentar alinhavar conhecimentos dispares. Assim, o leitor se prepara para achar conhecimentos híbridos entre várias ciências, que tecem uma trama que permite, ao mesmo tempo, uma leitura profissional e leiga de cada uma das disciplinas referidas. No texto se conjugam cinema, arte, psicanálise, história, mitologia e critica contemporânea, conhecimentos que conversam entre si, tentando se nutrir com o que cada um pode aportar.
O livro de Telles pode ser lido sob duas óticas especificas. Por um lado, como um enfoque sobre o cinema atual à luz da interpretação psicanalítica, que disseca o enredo de cada filme; por outro — para aquele leitor que não viu os filmes— a leitura ilumina aspectos da contemporaneidade, ajudando-o a compreendê-la. Telles conta a trama dos filmes como se estivesse falando de lendas urbanas, aquilo que pode nos atravessar no dia-a-dia do século XXI. Assim, ficamos imbuídos na narrativa do filme, que nos dá fé sobre aquilo difícil de entender no mundo contemporâneo e nas mudanças que precisam ser assimiladas para que possamos interagir com elas. Essa dupla possibilidade de leitura do texto possibilita que o leitor tire proveito do livro, mesmo que não tenha assistido a todas as películas analisadas.
Os inúmeros filmes citados mostram o lugar que o cinema ocupa na cultura atual. São obras de arte que expressam nas encenações ali mostradas uma “tradução” ou “leitura” do mundo atual realizada por cada diretor. Sobre essa “tradução” ou “leitura” recai a interpretação psicanalítica de Telles. Essa superposição de “traduções”, “leituras” e interpretações do mundo atual cria várias linhas de pensamento para o leitor, que se sente livre para escolher a que melhor lhe aprouver.
Alguns dos textos incluídos no livro são resenhas escritas para jornais ou palestras realizadas em encontros públicos sobre cinema e psicanálise. Por fazer parte da mídia, o autor precisa utilizar uma linguagem que permita ser compreendida por todos, apesar de estar descrevendo realidades complexas a serem decifradas. Isso outorga ao livro um valor inestimável, já que sai tanto das salas de cinema quanto dos consultórios clínicos dos psicanalistas, para se transformar em um espaço compartilhado de acesso para todos os públicos.
No texto, uma importante discussão é elaborada em torno ao conceito de Psicanálise Aplicada. Partindo dos textos de Freud, do olhar de desdém de alguns psicanalistas atuais que não a consideram como parte da psicanálise, Telles aponta os benefícios que a Psicanalise Aplicada traz à cultura e ao social. Sigmund Freud também utilizou essa vertente da Psicanálise para ler e interpretar textos literários, mitológicos, obras de arte e para considerar situações sociais como a guerra e outras conjunturas peculiares que atravessaram a época em que viveu. Desse modo, o livro relança essa vertente da Psicanálise, por vezes esquecida ou relegada a segundo plano. Esta situação agrega valor ao texto.
A escolha dos filmes interpretados não é casual. Procura levar em conta filmes atuais que aludam ao sujeito moderno, ao mesmo tempo em que relatam histórias de vida. O conteúdo dos mesmos percorre temas como o amor, o ódio, a velhice, a morte, a sexualidade heterossexual, homossexual, transexual, incestuosa, descrevendo “as várias sexualidades”, a luta entre os sexos, a doença e a saúde, os vínculos familiares, o lugar paterno, a loucura e a normalidade, patologias como a melancolia, a neuroses obsessiva, etc.
O cinema é apresentado como arte, com “amplas possibilidades na dimensão visual” (p. 46), como forma de veicular e transmitir às vezes o intransmissível. Telles nos diz:
“(…) vivemos situações cuja importância ou magnitude transcende nossa capacidade de lhes dar a expressão que merecem. Não só nossas palavras nos parecem insuficientes para representar o que sentimos como nos consideramos tão impactados com determinadas experiências que necessitamos da mediação de um terceiro, que, com sua fala, nos proporciona um necessário distanciamento do acontecido para fazermos dele uma avaliação adequada. É nessas circunstâncias que pedimos socorro aos escritores, aos compositores: é quando nos voltamos para a literatura, a poesia, as canções”. (p. 46)
O autor se refere ao filme “As canções”, de Eduardo Coutinho, mas acho que esse trecho cita o cinema em si, como um todo que tenta se expressar através de imagens, sons, cores e tramas. Freud já dizia que os artistas conseguem expressar de modo mais apurado aquilo que a teoria e a ciência tentam explicitar, mas ficam sempre com um olhar inacabado. Aqui a obra cinematográfica é entendida como uma obra de arte que precisa ser decifrada para captar o simbolismo que carrega.
Sérgio Telles nos transporta à forma com que Sigmund Freud concebia a arte e tentava dar conta dela. Lembra-nos que Freud atribuía ao artista um acesso mais fácil a seu próprio inconsciente, desde que em sua constituição psíquica, a repressão é menos eficaz e é grande a capacidade de sublimar, o que possibilita a criação. O artista consegue assim nos apresentar em suas obras de arte tudo aquilo que o homem comum oculta por estar sob repressão. Daí a diferença entre o neurótico comum, que cria sintomas e o artista, que produz arte. O artista possui então uma grande capacidade de simbolizar e representar seus conteúdos inconscientes. Por sua vez, o público, ao apreciar a obra de arte, estabelece um diálogo de inconsciente a inconsciente com o artista. Parece assim que o artista proporciona ao público o prazer de expressar aspectos de seu inconsciente sem a censura da repressão, ao que se adiciona o prazer estético, próprio da arte. O artista empresta seu inconsciente ao neurótico comum, que aprecia a obra de arte sem se dar conta que esse diálogo inconsciente é o que lhe permite captar e usufruir daquilo que foi produzido pelo artista.
O psicanalista uruguaio Héctor Garbarino tem estudado o momento da criação nos artistas, questionando também o funcionamento da estrutura psíquica no ato da invenção. Descreve o momento da criação como aquele no qual o psiquismo precisa de um reordenamento de suas instâncias, o que provoca um desequilíbrio que logo procura uma nova estabilidade diferente da que existia anteriormente. Garbarino mostra o artista como um sujeito que consegue transcender a condição das pessoas comuns, presas às regras estabelecidas. Define o “criar, tanto na arte como na ciência, como transcender a pessoa individual, liberar o indivíduo das limitações que impõe o espaço-tempo do eu da realidade cotidiana”[2]. Indica como o criador em sua economia psíquica apresenta uma modificação da direção e meta de sua libido narcísica, pelo que o espaço, antes fechado, do eu, se transforma em um espaço aberto, e por esse espaço é que o criador acha o caminho possível para inventar sua obra de arte.
Em seu livro, Telles mostra como cada filme se apresenta ao público como um enigma a ser descoberto, com uma quota de novidade que gera prazer e admiração no espectador. Também nos adverte sobre o perigo de assistir ao cinema com preconceitos em relação ao diretor ou atores que participam do mesmo. Esses preconceitos impedem um olhar aberto e abrangente que permita interpretar livremente o filme a assistir. Telles sugere que o leitor se coloque como uma tabula rasa na hora de ir ao cinema, permitindo-se surpreender e desfrutar do efeito que o cinema produz. O autor abre as portas de seu pensar psicanalítico para o leitor, que assim pode apreciar e compartilhar suas interpretações.
A leitura do livro nos fornece um aprendizado de como assistir um filme. Telles nos alerta sobre o fato que “uma grande obra de arte não se entrega de imediato”. Pontua como o filme fica “marinando na mente e aos poucos vai liberando conteúdos fundamentais que antes não havíamos atentado, fazendo com que a impressão inicial se modifique e sua real dimensão finalmente apareça” (p 94). Desse modo só em um segundo momento podemos acessar a grandeza de um bom filme. Descreve um tempo de decantação necessário para que o espectador possa degustar e digerir o filme, um período para traduzir os conteúdos enviados diretamente do inconsciente do artista na sua obra de arte. Desse modo, o texto de Telles facilita o encontro do espectador com a obra de arte.
Telles nos diz que “o artista sabe na própria carne que o ato de criar, que lhe é inerente, é um gesto amoroso decorrente de Eros e se opõe frontalmente à destruição imposta por Tânatos.” (p.94). Recebemos assim a generosidade e o amor que cada artista se propõe a nos brindar, como ato de doação em cada filme apresentado ao público. Ato que freia e exclui a destruição e morte inerentes ao humano, selando assim cada filme como gesto de esperança para a humanidade toda.
A partir da interpretação do filme “A Secretária” (2002), de Steven Sheinberg, abre-se a discussão sobre sexualidade nos tempos atuais. Telles nos propõe um espaço necessário de aceitação da alteridade implícita nas diferentes opções realizadas pelos sujeitos contemporâneos. Frente à variedade de escolhas sexuais, aponta ao leitor um lugar de respeito, a partir do qual não se opte por patologizar nem normatizar formas da diversidade sexual como a homossexualidade e a transexualidade.
Os filmes que trazem à tona questões sobre a patologia e a normalidade referidas à forma de encarar a sexualidade permitem ao autor abrir uma discussão sobre a teoria psicanalítica. Partindo da categorização que se faz da sexualidade a partir do complexo de Édipo como concepção falologocêntrica, pergunta-se se não é necessário discuti-la, questioná-la, desconstrui-la. Derrida aparece aqui para auxiliar na pergunta acerca do uso do complexo de castração e do Édipo como únicos parâmetros que permitem estabelecer a “normalidade” e o acesso ao processo secundário e à realidade. Os aspectos falologocêntricos da teoria psicanalítica poderiam reforçar preconceitos contra os sintomas cuja manifestação se dão no campo da sexualidade. A necessidade de pensar sobre esse tópico implica derrubar resistências tanto da sociedade com a psicanálise, quanto da psicanálise com ela própria. Essa discussão importante e fundamental aparece como norteador para pensar a teoria psicanalítica habilitando uma leitura mais abrangente dos tempos atuais.
O elo condutor de “O psicanalista vai ao cinema, vol. 3” é a possibilidade de juntar o cinema com a psicanálise, na procura de que as duas conversem entre si e se nutram mutuamente. Assim, Telles traz a visão freudiana que assinala que a obra de arte permite revelar não só a realidade psíquica de quem a compõe, como proporciona uma maior compreensão de como opera o psiquismo. Essa é a razão pela qual a psicanálise tem muito a aprender dos artistas e suas obras, ao mesmo tempo em que pode colaborar para deixar mais claros os significados e mensagens que a arte tenta transmitir ao homem comum.
Entendemos que os diretores transformam em filmes obras literárias, dando para estas interpretações que podem ser muito pessoais. Quando o psicanalista interpreta no consultório, ele tenta captar o que é apresentado para então procurar novos significados, elaborando interpretações e construções analíticas que permitam abrir novos sentidos para o paciente. O artista, com sua extrema capacidade de acessar seu próprio inconsciente e unir essa habilidade com a criatividade e inventividade, dá forma a seus sofrimentos e cavilações pessoais, plasmando-as numa obra de arte, com o que proporciona alivio a si mesmo e ilumina a seu público. Podemos lançar uma hipótese na qual tantos diretores de cinema, psicanalistas e artistas trabalham com as dores humanas, interpretam suas formas e criam sentidos que, ao serem transmitidos aos que sofrem, lhes proporcionam alivio. Como metáfora, poderíamos dizer que formam uma trança que une diferentes atores humanos na tradução e significação da dor de viver.
Termino essa resenha citando a Ruben Dario que em seu poema O Fatal, nos diz[3]
“Ditoso o vegetal, que é apenas sensitivo,
Ou a pedra dura, esta ainda mais, porque não sente,
Porque não há dor maior, que a dor de ser vivo,
Nem mais fundo pesar que a vida consciente…”
(*) Publicado na revista “Percurso”, no. 58 – junho 2017
[1] Psicóloga, especialista em Psicanalise de casal e família AUPCV (Uruguai), mestre em Psicologia Clínica, PUCSP, doutora em Psicologia Social, USP, membro do departamento de Psicanalise do Sedes Sapientiae.
[2] H. Garbarino, La teoria del ser en la clínica. Montevideo: Roca Viva, 1993 P 152).
[3] Dario R. http://poesiacontraaguerra.blogspot.com.br/2009/06/o-fatal.html acesso 05/02/2017 (tradução da autora)