Sérgio Telles

– Resenha do livro de Felipe Charbel, “Janelas Irreais – Um diário de releituras” – Editora Relicário – Rio de Janeiro, 2018

 

Felipe Charbel é doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio e professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nos últimos anos se dedica ao estudo da literatura contemporânea com ênfase em ficção histórica e tem publicado ensaios e textos acadêmicos.

Tais informações, colocadas no final de seu livro “Janelas Irreais – um diário de releituras”, são necessárias para que o leitor entenda suas peculiaridades e a luta do autor para se desfazer da camisa de força da academia e ingressar no mar aberto da criação literária.

Indícios dessa luta se fazem presentes no texto, que muitas vezes não parece brotar naturalmente e sim ser sugado das profundezas para a página do livro através de trabalhosas máquinas teóricas e arquivos atulhados.

Para compor seu livro, Charbel aproveitou três ensaios previamente publicados em “versões preliminares”: “Ensaios”, no qual discorre sobre os livros do escritor chileno/espanhol Roberto Bolaño; “A coisa real”, sobre os livros de Philip Roth e um terceiro, que trata da paternidade ou de como a morte do pai é tratada por alguns autores (Cony, Auster, Roth e outros).

Visando dar uma unidade romanesca ao livro, Charbel enxerta nos ensaios um fio ficcional que, com esforço, atravessa grandes blocos de ensaísmo acadêmico e abundantes citações, até desaguar no quarto capitulo, “O canto da sereia”, onde finalmente toma corpo e corre mais caudaloso. O leitor fica agradecido, pois até então estava intimidado com tamanha demonstração de erudição por parte do autor e, envergonhado de sua própria ignorância, desejava procurar asilo em outro livro, de alguém que simplesmente escrevesse sua história, sem remetê-la a tantas outras.

O fio ficcional que percorre os ensaios literários até desembocar no capitulo 4 poderia ser assim resumido – o narrador, casado, mantem por muitos anos uma correspondência erótico-literária via internet com Hanna, uma mulher também casada. Quando finalmente se encontram pessoalmente, rompem seus casamentos, iniciam um caso e ela o acompanha numa bolsa de estudos em Nova York. Ao regressarem ao Brasil, se separam. Acompanhamos o tortuoso e literário relacionamento dos dois através do diário do narrador e de fragmentos do romance epistolar que mantiveram.

No cipoal de citações de livros e escritores se escondem aqueles que seriam talvez os temas literários mais promissores – o anseio pela literatura, a morte do pai e a perda da primeira mulher.  Mas Charbel como que se esquiva de abordá-los diretamente, se esconde atrás de bimbos literários. Por exemplo, a morte do pai, apesar de perpassar todo o livro, é tratada mais através de citações de vários autores que escreveram sobre o tema, ficando o narrador distante, sem se comprometer, como ele próprio confessa: “a ideia era, a partir deles (os romances relidos), investigar as fissuras que se abriram na minha consciência, resultado de uma desgastante sondagem interior, me obrigando assim, pela leitura e pela escrita, a enfrentar pela primeira vez em sete anos o aniversário da morte de meu pai. Mas por razões que a mim mesmo não ficam inteiramente claras, isso não foi possível. No dia em que eu deveria me ocupar com a memória do meu pai, não pensei nele uma única vez” (p. 83).

Algo semelhante ocorre em relação à primeira mulher, referida apenas como “a inominável”, de quem o narrador nunca fala, nem “mesmo com a analista” (p.164), apesar de temer romper “os grilhões doces e suaves” que o prendem a ela (p. 182). Com isso, inadvertidamente o autor dá uma relevância inesperada a esse obscuro personagem, despertando a curiosidade do leitor. O que teria acontecido de tão terrível entre os dois para que o narrador se sinta incapaz de nomeá-la e tratá-la como um objeto literário?

Ao delegar a outros escritores aquilo que ele mesmo poderia produzir, Charbel corre o risco de deixar seu texto desvitalizado, pois a seiva da vida fica substituída pela tinta de papel. Tem-se um livro interessante, sim, mas é um livro sobre livros, não sobre homens. Aquilo que nele poderia expressar páthos (sofrimento, dó, compaixão, empatia, sangue), fica substituído por logos, excessivamente racionalizado, intelectualizado, livresco, bookish. O próprio narrador parece se dar conta disso ao dizer – “por ter subsistido tantos anos numa dieta intelectual rigorosa, à base de tratados de filosofia e textos teóricos densos, sinto como se minha existência interior fosse um aglomerado de ideias feitas” (p.18), ou ainda “… mas sempre teremos este universo feito só de palavras. Sempre teremos o logos. O que me entristece, me revolta até, é que muitos outros tiveram Paris” (p. 115).

O fardo de erudição literária não facilita a Charbel o exercício de sua capacidade autoral de pensar o novo e falar com voz própria, independente da grandeza do que já foi criado.

O sofrido luto do pai relatado pelo narrador parece refletir o emperrado luto pelos pais literários vivido pelo autor. Charbel precisa se desembaraçar do peso da herança dos grandes escritores para enfrentar o solitário e incerto caminho da criação. Esse sério e cuidado “diário de releituras” dá mostras de ter ele recursos suficientes para tanto. Por que não ousar também ter Paris?

(*) Publicado no suplemento EU&FimdeSemana do jornal “Valor Econômico”, 28/09/2018

 

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