MÃE AIDÉTICA BEBÊ HIV NEGATIVO
Construindo Pontes com a Neurociência
Iole da Cunha[1]
OBJETIVO
Contribuir para a construção de uma nova síntese teórica das inter-relações entre o biológico e o psicossocial no cenário de uma situação clínica de alto risco.
A partir da experiência empírica de convivência com bebês prematuros e a termo, doentes ou sadios, seus cuidadores e famílias, fez-se a análise documental das fontes primárias com seleção bibliográfica de artigos e livros pertinentes, com ênfase no psiquismo especial da gestação, nas habilidades inatas do recém-nascido desde 22-23 semanas de idade gestacional até três anos, nas suas necessidades epigenéticas específicas, no papel das emoções no crescimento do cérebro em desenvolvimento e no seguimento de prematuros e recém-nascidos doentes egressos das Unidades de Tratamento Intensivo Neonatal (UTIN) tradicionais, além de teses médicas, de evolução filo e ontogenética, de etologia, psicologia, psiquiatria, biologia, filosofia e disciplinas que se ocupam de sistemas complexos como o do cérebro, sua mente e nas modificações da mãe ou cuidador, enquanto circunstância formadora da subjetividade do bebê em relacionamento com seu entorno.
A literatura médica, tem sido pródiga em artigos e trabalhos que priorizam o estudo do psiquismo da gestante, do recém-nascido e das modificações subjetivas que ocorrem no processo de interação. Mas pouco tem sido escrito sobre a sintonia mente-corpo, na prática pediátrica. Pela análise de um caso clínico, acompanhado do nascimento até vinte e três anos de vida do bebê, nascido de parto normal em um banco de praça, de uma gestante em fase terminal de SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Imunológica Adquirida), encaminhado à UTIN do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, Porto Alegre, tenta-se construir um modelo teórico de interação cérebro – mente – comportamento para entender o percurso do desenvolvimento do bebê.
Construindo pontes interdisciplinares, principalmente com a neurociência, a autora dirigiu “novos olhares” para saber quem é o individuo bebê. Como ocorreu a mudança de tabula rasa para sujeito com habilidades e necessidades específicas; o desenvolvimento a partir de sua própria perspectiva, “de dentro para fora”; a gestação enquanto crise existencial com necessidades de suporte social; e quem cuida, como sujeito a ser cuidado.
As memórias da percepção internalizada, de emoções de afetos positivos, permitem ao bebê a capacidade de auto-regulação afetiva, organização dos ritmos comportamentais e aquisição das literacias, necessárias para a formação da individualidade. As emoções da vivência de afetos positivos geram sentimentos e proto-representações internas que podem ser resgatadas mesmo quando as circunstâncias de vida parecem incompatíveis com qualquer esperança de saúde mental futura. Na programação epigenética, a experiência interativa apropriada, por exemplo, de um bebê com seu cuidador, (o “outro”, seu mundo ou circunstância) é aquela que determina homeostasia (homeostase ou homodinâmica), ou seja um estado físico e psicológico isento de tensões, de tal modo que haja um equilíbrio do organismo em relação a suas várias funções e a composição química dos seus fluidos e tecidos, com manutenção da frequência ventricular, da tensão arterial, da temperatura, da glicemia e dos neurotransmissores que regulam os comportamentos e harmonia entre brotamento sináptico e poda ou seja, entre crescimento e inibição do tecido neural. Os circuitos neurais registram memórias mnemônicas (imprints) das experiências interativas de emoções, e desenvolvem no bebê o sentimento de estar-com-em- segurança ao mesmo tempo que modificam a identidade do cuidador tornando-o competente, empático e contingente .
Com esta visão alguns aspectos desta situação clínica são analisados: 1) a relação mãe-bebê não nascido, 2) a importância do apoio social ou mamaização (capacitação) do cuidador que substituirá a genitora nos cuidados primários e, 3) como as proto-representações de afetos positivos são internalizadas e resgatadas em futuras situações de desamparo e distúrbios comportamentais, permitindo a necessária regulação afetiva com reforço da autoestima para a recuperação do equilíbrio: o presente rememorado[2].
Para os profissionais do período pré, peri e pós natal do desenvolvimento, os aspectos analisados, aprofundam os conhecimentos sobre quem é o indivíduo bebê gerando mudanças de cuidados, que se estendem às competências maternas e familiares, necessárias para a prevenção dos distúrbios do desenvolvimento, ao mesmo tempo que se busca uma revalorização da biologia e um aprofundamento dos processos interdisciplinares que constituem a base de um novo paradigma científico.
INTRODUÇÃO
Os pediatras neonatologistas, aprendem a lidar com a doença de seres tão imaturos como os recém-nascidos pré-termo de extremo baixo peso ou recém-nascidos a termo doentes, os quais provavelmente não sobreviveriam sem a tecnologia sofisticada, precisa, difícil e agressiva, aplicada nas UTIN. Entretanto, pouco é ensinado, sobre os processos mentais, as percepções e o pensamento incipiente destes pequenos indivíduos. E também pouco, sobre o fato da natureza tê-los dotado com habilidades e necessidades específicas, que devem ser satisfeitas pelos cuidadores, a fim de promover o crescimento adequado de seus cérebros em desenvolvimento[i]. Os cuidados em neonatologia, cada vez mais são orientados no sentido de buscar a saúde global dos futuros sobreviventes egressos das UTIN[ii].
E neste sentido, o caso clínico analisado neste artigo de revisão, pretende sugerir um modelo de interação cérebro-mente, para entender como as memórias internalizadas de afetos positivos, em situação de alto risco relacional de uma mãe com seu bebê, foram rememoradas durante toda a vida da criança, salvando-a literalmente de uma provável derrocada psíquica. Os neonatologistas e demais profissionais presentes na gestação e no período neonatal, são os primeiros a terem a oportunidade de observar o bebê com seu cuidador: a mãe, o ambiente da UTIN ou outro que se ocupe de cuidar e constituir a circunstância do bebê. Segundo o filósofo Ortega y Gasset “eu sou eu e minha circunstância” e ao nascer uma criança, talvez não se possam modificar as percepções registradas pela circunstância intrauterina, mas certamente o conhecimento das atividades ligadas à sua vida mental, poderá ser uma ferramenta poderosa, na identificação precoce e profilaxia de possíveis distúrbios do vinculo com a promoção de cuidados contingentes. Para tanto, os profissionais devem constituir-se em leitores de mentes para entender a linguagem pré-verbal do bebê e decifradores de metáforas para entender a linguagem materna[iii][iv].
OLHOS AZUIS: uma história
Numa fria noite de julho, Rogério é trazido a UTIN, bem aconchegado no capote do policial de ronda, que o aparou ao nascer. Com 3.300 gramas e 51 centímetros, saudável e uma expressão sedutora no olhar, cativa imediatamente os profissionais que o receberam. A mãe, Elisa, “menina de rua” portadora do vírus HIV, entra em coma e morre quando Rogério, assim nomeado pelos muitos pais e mães da UTIN, tem 18 dias. Já em condições de alta nesta época, sua avó Matilde é localizada e trazida, a contragosto, para conhecer o neto. A equipe utiliza-se de estratégias de mamização para convencê-la a maternar seu neto. È necessário ajuda-a a se deixar seduzir por Rogério.
– “Veja Matilde, como ele é competente e um vencedor, pois é HIV negativo. Veja como ele prefere teus olhos azuis. Ele está perguntando se vais cuidar dele, se pode dormir tranquilo, pois vais velar por ele?” E ela, embora ainda não seduzida, com alguma relutância, concorda em levá-lo a seus cuidados.
Na primeira revisão, Rogério tem um mês e a avó, verbaliza que está bastante contrariada e acusa a equipe de tê-la constrangido a cuidar de Rogério. Mas, observando-a, sente-se que rejeição e acolhimento estão em equilíbrio. Seus olhos azuis, antes, metálicos e frios, têm novo brilho quando encontram os de Rogério, que sorri e balbucia sempre que encontra os dela.
Na segunda revisão, Rogério tem três meses, é uma criança calma, participativa, com ritmos.
“Ele é meu parceiro. Nunca me senti assim tão amada. Aprendi a cantar a canção de ninar que nunca cantaram para mim, conto a ele minha vida, meus pecados, como eu sou boa e como eu sou má. E ele me entende. Aprendo com ele a recuperar a criança que não fui. Sabe, estou até escrevendo um diário. Ele vai saber que a família dele, que agora sou só eu, com todas as mazelas, foi a melhor família do mundo, pois foi a que o gerou. E Elisa, drogada e aidética, foi a melhor mãe, porque não deixou que ele se contaminasse com sua infelicidade. Estou aprendendo a ser a mãe que não fui para Elisa”. Rogério fixa os olhos azuis da avó, concordando e logo os olhos azuis da pediatra, parecendo identificar uma semelhança entre os dois cuidadores, avó e pediatra, sorri e adormece…
Rogério tem três anos e faz sua terceira visita ao pediatra. É um menino sadio e afetuoso. A pediatra pergunta se ele a reconhece: “Eu sei tia, que tu e a vovó têm olhos iguais. A vó canta para mim o dorme tranquilo que tu ensinou para ela. Tu contou histórias pra ela que ela conta pra mim e eu gosto muito…”.
Na sua quarta visita, Rogério está acompanhado por uma tia avó, proveniente de outro estado para cuidar de Matilde, doente e que morre alguns dias após, aos 77 anos. A nova cuidadora, é solteira, não tem filhos e a única da família que pode tomar conta de Rogério. Não esconde sua contrariedade com esta tarefa. Sua atitude com o menino é fria e rejeitável. A consulta satisfaz a um pedido de Matilde, que a incumbiu entregar à pediatra uma carta de agradecimento, com algumas páginas do diário que ela lhe havia sugerido escrever.
Rogério tem 23 anos. Busca sua antiga pediatra, para que atenda o nascimento de seu filho.
Ele reconta sua história a partir da morte da avó. De como se sentiu rejeitado em seu novo lar, foi viver nas ruas aos 12 anos, “viciado em drogas e menino de rua, como minha mãe”. Sua internação numa instituição publica, drogado. Como, ao acordar depois de oito dias em coma, encontrou os olhos azuis da “vovó voluntária” da instituição e nesta experiência de olhar o azul, rememorou o bem-estar de ser embalado por Matilde ao som de, dorme tranquilo meu bem… Lá no céu o prateado luar, sobre o berço já vem, para teu sono velar…Segundo suas palavras, esta lembrança rememorada mudou seu presente e seu futuro. Passou a viver com vovó Mila, inicialmente nos fins-de-semana e logo definitivamente. Lembrou como conseguiu graduar-se na Faculdade de Direito e reencontrou o amor nos belos olhos azuis de sua atual mulher Mara. Mas principalmente relata emocionado, como lembrar dos olhos da avó, ou mesmo a simples visão de um céu azul, resgatavam a sensação de bem-estar que seus cuidados lhe haviam prodigalizado e conferiam sentido à sua então triste vida, ao ponto de modificá-la!
COMENTÁRIOS
Gestação desejada
Elisa engravidou quando estava na fase final da SIDA, já com manifestações neurológicas irreversíveis, tuberculose sistêmica e extrema desnutrição. Intrigou os profissionais que cuidaram de Rogério encaminhado à UTIN, o fato de parecer muito saudável e competente, apesar das grandes chances de ter sido contaminado. Não apresentava sinais clínicos ou laboratoriais da doença e nem testes positivos de infecção pelo HIV. Como poderia tal gestação ter evoluído em condições maternas tão deterioradas? O que teria protegido Rogério de tantos riscos de contaminação trans-placentária? As informações de pessoas amigas de Elisa eram incontestes e não discordantes quanto às mudanças que a gestação lhe havia produzido. No estágio final da doença, já selada com o carimbo da morte, tornou-se uma pessoa extremamente alegre e segundo as palavras de uma amiga “uma cabeça tão cheia de planos como sua barriga”. Conversava continuamente com o bebê não nascido e dizia que ele era a sua eternidade. Pesava trinta e seis quilos quando engravidou e um metro e sessenta e oito centímetros de altura. Sua aparência não deixava dúvida quanto sua extrema debilidade física, mas parecia iluminada pela alegria que emanava do ventre que “abraçava”.
A ciência não abriu as portas para certos temas que ainda repousam nas sombras, mas que ressurgem quais fantasmas de memórias quando se vivenciam situações clínicas que mais parecem ficções. Mas, as ficções permitem ao cientista formular hipóteses, procurá-las e confirmá-las. A depressão materna durante a gestação, bastante estudada, se insere na trajetória do estresse, liberando uma série de hormônios glicocorticoides que são processados pelo córtex límbica-órbito-frontal tanto da mãe como do bebê em seu ventre, gerando sentimentos de medo e morte e problemas de crescimento e desenvolvimento no concepto. No caso em questão, há grande falta de pesquisas sobre a função e o valor da alegria na gestação. Pode-se teorizar que alegria materna determina no feto, a percepção de emoções, de afetos positivos, gerados pelos neurotransmissores endorfínicos que chegam via trans-placentária, resultando em bem estar, homeostasia e sentimentos de-estar-com-em-segurança. E perceber a maravilhosa sensação de que a alegria na gestação o protege dos efeitos danosos de hormônios e outras substâncias secretadas pelo estresse. E é talvez isto que determina o futuro do individuo e sua “cultura” relacional com o mundo… [v]
Cuidados Contingentes – Mamaização
A Neonatologia é uma jovem disciplina, ainda não cinquentenária. Mas nos últimos quinze anos, grandes mudanças ocorreram, porque os agentes de saúde da UTIN, aprenderam a reconhecer no recém-nascido um indivíduo que necessita receber, junto com a excelência tecnológica que o salva fisicamente, cuidados contingentes que asseguram sua saúde mental. E que os familiares, e principalmente a mãe, estão imersos na crise existencial da gestação. E que a mudança de identidade de filha da sua mãe para mãe de seu filho, necessita de apoio social para ocorrer. Continuar a cuidar do bebê, após a alta hospitalar, implica estabelecer com ele um vínculo e criar um “ninho” seguro. A mamaização baseia-se em alguns princípios que hoje a neurociência, com a descoberta dos neurônios-espelho, pode explicar melhor: Enação, pela definição de Lebovici, é uma habilidade que possibilita o médico, perceber no seu próprio corpo, fenômenos que o paciente vivencia de forma confusa; Empatia, tendência para se sentir o que se sentiria, caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa; Empatia metaforizante, em que os cuidadores , captam a comunicação silenciosa que ocorre entre o bebê e seus pais.
O Presente Rememorado
Premio Nobel em Medicina, o neurocientista Gerald M. Edelman em sua brilhante tese sobre a Teoria da Seleção dos Grupos Neurais, sugere uma explicação para o fato de que algumas experiências, quando repetidas ou mesmo pensadas ou sonhadas, recuperam certas emoções de sentimentos e representações anteriormente vivenciadas. Segundo ele, a experiência continuada de certas vivências, quando têm uma significação especial para quem a percebe, geram um estado físico e mental isento de tensões e com homeostasia. Esta experiência rememorada envia impulsos que selecionam no cérebro, certos grupos ou redes neurais, através da formação das sinapses. A experiência continuada imprime registros (imprints) de memórias, capazes de serem ativados, sempre que algum estímulo recupera o sentimento por ela provocado. [vi]. No início da vida, pelo menos desde 21 semanas de gestação, diferentemente do que se pensava antes da neurociência e da observação atenta dos bebês, o sistema límbico-orbito-frontal direito (ou córtex límbica-órbito-frontal direita), já está maduro para permitir ao bebê não nascido ou prematuro se for o caso, obviamente, o bebê de zero a três anos, a capacidade de categorização perceptual, ou seja, a percepção do sentimento de estar-com-em-segurança ou de estar-com-em-desamparo[vii][viii].
Acompanhar o crescimento de Rogério foi um grande aprendizado de quem somos e porque somos como somos. Permitiu também entender um pouco deste fantástico sintonismo mente-corpo que deverá certamente, modificar os olhares dos profissionais de saúde na relação com seus pacientes. Por outro lado, reforça a importância do conhecimento consiliente, para o diagnóstico precoce e prevenção dos distúrbios do desenvolvimento, ensinando os referidos profissionais, principalmente no período pré e peri-natal, a cuidar de quem cuida[ix]. Ou seja, uma nova função para o Pediatra Neonatologista, qual seja a de promover os cuidados contingentes e as competências maternas e familiares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] Pediatra e Neonatologista, Preceptor de Residência Médica em UTIN do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
[2] O momento presente é feito de memórias, que fizeram sentido no passado e que são resgatadas pela experiência vivenciada do presente.
[i] Schore Allan N., Affect Regulation and the Origin of the Self. The Neurobiology of Emotional Development.
Lawrence Erlbaum Associates, Inc. 1994
[ii] Cunha I., Neurobiologia do Vínculo. Novos Olhares sobre a Gestação e a Criança até os 3 anos. Saúde Perinatal,
Educação e Desenvolvimento do Bebê. Parte IV: O Desenvolvimento da Criança e a Formação da Individualidade.
353-387. L.G.E. Editora Ltda. 2002
3 Cunha, I.; Treinamento Perinatal: conhecimentos básicos para a promoção de uma melhor qualidade de vida.
Capítulo 8, 77-85. Sagra: DC Luzzatto 1991. Porto Alegre
4 Lebovici,S., O bebê, a Mãe e o Psicanalista. Artes Médicas. 1987
5 Odent M., The function of Joy in Pregnancy. Journal of Prenatal and Perinatal Psychology and Health. JOPPPAH
21(4) 307-313(2007)
6 Edelman G.M., Bright Air, Brilliant Fire On the Matter of the Mind.Library of Congress Cataloging-Publication
Data. 1992
7 Stern, D. O mundo interpessoal do bebê – uma visão a partir da psicanálise e da psicologia do desenvolvimento.
Artes Médicas, 1992
8 Cunha, I., A revolução dos bebês. Psicanalítica. A revista da SPRJ. Volume II – número 1 – 2002