Janeiro de 2024 – Vol. 29 – Nº 1

Como o passado pode nos ajudar a prever o futuro?
R. psiquiatr. RS 2007; 29:1


EDITORIAL A CONVITE


Professor BA (Oxford), DPhilSci (Oxford), MA (Cambridge), MD, FRCPsych, FBPsS,
FMedSci. Doutor honoris causa em Medicina (Heidelberg, San Marcos). Professor,
Epistemologia da Psiquiatria, University of Cambridge, Cambridge, Reino Unido.
Consultor em Neuropsiquiatria. Coordenador, Serviços Neuropsiquiátricos


Fico agradecido aos editores da Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul por me
solicitarem a escrever este breve editorial sobre o título acima, o qual supõe que
pretende saber se, em psiquiatria, o conhecimento histórico pode ter capacidade
preditiva. A resposta é complexa e depende, em grande parte, da maneira como
definimos psiquiatria, história e capacidade preditiva.


Por psiquiatria, entendo o conjunto de narrativas desenvolvidas (principalmente por
sociedades ocidentais) para configurar, explicar e lidar com fenômenos
comportamentais, os quais, com base em critérios sociais mais do que
neurobiológicos, foram definidos como “desvios”. Atualmente, tais narrativas são
predominantemente médicas, mas a aliança entre medicina e loucura também é
histórica por natureza e pode muito bem ser dissolvida no futuro. Essa dissolução seria
determinada por fatores sociais, e não por fatores científicos.
História refere–se ao conjunto de narrativas desenvolvidas para capturar e
reconfigurar agrupamentos contemporâneos de idéias, emoções e ações humanas na
medida em que elas ocorrem em determinadas coordenadas espaços–temporais. No
caso da história da psiquiatria, tais coordenadas serão determinadas pelo que é
definida (em certo período) como a relação entre sociedade e loucura.
Capacidade preditiva refere–se ao poder de especificar no presente os formatos e
interações comportamentais que ocorrerão no futuro. Previsões são mais difíceis
(porém mais significativas) em modelos historiográficos lineares do que em
não–lineares. Por exemplo, de uma perspectiva viconiana (circular), a repetição de
certas maneiras de ver as coisas pode ser prevista com facilidade, mas essa ação terá
pouco significado.
A história da psiquiatria pode ser concebida como uma disciplina autônoma ou
utilitária. De acordo com a primeira, seu objetivo é entender e explicar como e porque
a linguagem, construção e tratamento da “doença mental” se desenvolveram através
dos séculos. De acordo com a segunda, a história da psiquiatria é simplesmente uma
“fonte de erros”, um “tesouro sem dono”, “um adorno cosmético” ou um
“instrumento preditivo” (ou todos juntos). Embora essas duas perspectivas sejam
muitas vezes confundidas, elas precisam ser diferenciadas, uma vez que a história não
tem e nem se deve esperar que tenha qualquer obrigação utilitária.
O fato de que (no sentido braudeliano) a história da psiquiatria parece exibir processos
de longa, média e curta duração pode, em algumas ocasiões, induzir em todos nós
uma ilusão oracular, ou seja, o sentimento profundo de que podemos “ver” padrões e
repetições na evolução da psiquiatria, e que estes podem nos permitir prever o futuro.
Por exemplo, é tentador imaginar que períodos de biologismo psiquiátrico à outrance
sejam seguidos de rebeliões hermenêuticas (como no caso da neuropsiquiatria do final
do século XIX e do freudianismo do início do século XX). Isso nos levaria a prever que a

tendência atual de “naturalizar” todos os fenômenos psiquiátricos seria seguida de um
período governado por uma abordagem semântica à doença mental mais balanceada.
As pressuposições escondidas que inspiram esse “pensamento desejante” (wishful
thinking) devem ser explicitadas. A principal delas é que a psiquiatria é um ramo
autônomo da ciência aplicada que evolui de acordo com suas leis internas de lógica e
com sua própria pesquisa e evidência científica. Esta visão é, certamente, sem sentido.
A psiquiatria é uma disciplina parasitária cujo caminho sinuoso não é determinado por
leis evolucionárias internas, mas pelos caprichos do mercado, isto é, por fatores
econômicos, sociais e políticos. Mesmo sua aliança atual com a medicina poderia
cessar rapidamente se o mercado descobrisse que há maneiras mais baratas e
vendáveis de tratar a loucura.
É certo que a natureza econômica dessa decisão nunca será explicitada, pois logo
filósofos e historiadores da corte se mobilizarão para tramar narrativas justificatórias
que farão com que a decisão pareça ser tomada com base em ideais supremos e
evidências duramente adquiridas. Um bom exemplo é a atual ameaça à “continuidade
de assistência”, um dos princípios sagrados em torno do qual a psiquiatria britânica se
organizou desde 1948 (ou seja, o desejo de que o mesmo psiquiatra cuide de um
paciente e de sua família). Por ser menos dispendioso ter psiquiatras tratando
somente pacientes hospitalizados ou ambulatoriais, alguns Consórcios Britânicos de
Saúde Mental decidiram agora abolir o princípio da continuidade. Isso foi encoberto
por uma narrativa justificatória, a saber: é melhor para um paciente ser atendido por
vários psiquiatras, já que isso reduz a probabilidade de erro diagnóstico!
É evidente que isso não faz sentido, pois a psiquiatria tem um número limitado de
“doenças”, um número limitado de “tratamentos” e é uma disciplina “segura”, no
sentido de que é difícil cometer “erros” diagnósticos, os quais raramente podem pôr
em risco a vida do paciente (como pode ocorrer em outras especialidades médicas).
Seja como for, muito mais importante do que o perigo teórico de “erro diagnóstico” é
o conhecimento profundo que, por toda sua vida, o psiquiatra acumulará de seu
paciente, doença, família e contexto social.
É verdade que, por vezes, a história da psiquiatria pode revelar idéias, tratamentos ou
abordagens que foram negligenciadas ou porque a tecnologia de um determinado
período não era compatível, ou porque o status social do psiquiatra que os postulou
era baixo demais, ou porque os mandarins da disciplina investiram sua reputação e
dinheiro em outras coisas. Essas idéias, tratamentos ou abordagens podem, em
princípio, ser resgatados e, neste sentido, diz–se que a história pode ser um “tesouro
sem dono”. Porém, esta não é uma situação comum.
Em resumo, cada período histórico tem suas próprias narrativas dominantes. Estas
atingem o poder porque geram ganho financeiro para todos os interessados (exceto
para os pobres pacientes). Se há uma lição a ser aprendida da história, é que esta
situação estrutural tende a se repetir, no sentido de que, em cada período histórico, o
establishment apontará uma elite em especial para configurar e tratar a loucura.
Infelizmente, quem essas elites serão e quais narrativas elas tramarão não pode ser
previsto. Tudo que pode ser previsto é que a disposição geral se repetirá e que
nenhuma elite durará para sempre.
Esta transitoriedade deveria ser uma fonte de esperança para aqueles que sentem que
os atuais fundamentalismos biológicos não estão causando bem algum a nossos

pacientes e que essa visão exagerada deve ser balanceada pela criação de um espaço
semântico onde possamos atender àqueles que precisam de ajuda.
Há causas e razões para a aflição mental. Causas no sentido de que
transtornos cerebrais podem sobrepujar sua psicologia. Razões no sentido de que a
vida das pessoas pode se tornar insuportável, porque elas são confrontadas com
situações extremas diante das quais sua organização emocional e semântica se
torna insuficiente ou impotente. O fato de que, neste último caso, o sofrimento das
pessoas também tenha uma “representação cerebral” é completamente
irrelevante para seu tratamento. Para serem ajudados, esses pacientes devem ser
atendidos em seu próprio espaço psicológico. Isso é algo que talvez não possamos
aprender da história, mas que parece suficientemente verdadeiro para nós que
cuidamos deles.

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