Janeiro de 2023 – Vol. 28 – Nº 1
Sérgio Telles
A SEGUNDA ESPADA, primeiro livro de Pater Handke depois de receber o
Prêmio Nobel em 2019, tem o título explicado nos versículos de Lucas da
epígrafe – um trecho do Evangelhoque suscita interpretações divergentes: há
legitimidade no uso da força e da violência?
É esse o tema do livro. O narrador conta que, após planejar por décadas uma
vingança para resgatar a honra de sua mãe, atingida por uma jornalista que a
acusara de nazista, um dia resolve concretizá-la.
A ação do livro se dá nas férias de Páscoa que ocorrem em maio na França
(“uma história de maio” – é o subtítulo do livro). O narrador mora na periferia de
Paris, naquele momento deserta, pois muitos viajaram. Os que ali ficaram são
os miseráveis, os pobres, os imigrantes, os bêbados, os solitários, lixeiros, com
quem o narrador confraternizava de longa data. Na verdade, procurava um
assassino para executar a mulher que caluniara sua mãe, desistindo da busca
ao constatar que aquela era uma incumbência intransferível, cabia só a ele
realizá-la.
Em sua missão vingadora, desloca-se em caminhadas, trajetos de trem, bonde
e ônibus, mais uma vez convivendo com os deserdados, os humildes e
desprezados, os que já perderam toda esperança. Tendo passado por diversas
localidades, aproxima-se de Port-Royal-des-Champs.
Sente então uma grande fome, “uma fome selvagem, violenta, a fome fome,
sem um objeto palpável, para não dizer comestível, uma fome que se
localizava ou que tinha seu lugar de origem, ou seja lá o que fosse, não na
barriga nem embaixo dela em meio a entranhas, mas no alto, na pele da testa
sob o crânio, a mais devoradora das fomes que não poderia ser acalmada e
muito menos saciada, de maneira duradoura, por nada. (…) Dessa vez eu tinha
fome de Port-Royal-de-Pascal”.
O trecho parece indicar a forte carga simbólica que Port-Royal-des-Champstem
para Handke, que já ambientara ali a ação de um outro romance – ‘DON JUAN
narrado por ele mesmo”.
No século XVII, em Port-Royal-des-Champsse localizava o mosteiro jansenista
em que Pascal e Racine estudaram, e onde foram produzidos importantes
estudos gramaticais e de lógica.
Em Port-Royal-des-Champs, o narrador relata importantes ocorrências. O
reencontro com o grafite numa parede que celebra a derrota dos nazistas em 8
de maio de 1945;a recordação das elocubrações de Pascal sobre a justiça
como uma pantomima – não fosse o chapéu de quatro pontas, ninguém
aceitaria a autoridade dos juízes; o encontro com seu vizinho, também juiz, que
revela a prática criminosa da justiça e a impunidade que a acompanha. Ali tem
um sonho assustador, que o faz recordar a difícil relação com a mãe, como a
atormentava acusando-a de não ter se rebelado contra o nazismo, o que a
deixava desesperada e muda. Lembra de suas fantasias agressivas e
violentas, quando se via fazendo parte de uma família de assassinos (efeitos
trans geracionais do nazismo?). Se ele mesmo torturava a mãe com a
acusação de nazista, como poderia se vingar da mulher que fizera o mesmo?
Assim, a passagem por Port-Royalprovoca efeitos decisivos no narrador. O
encontro com o pensamento de Pascal o ajuda a compreender a própria
destrutividade e a repensar sua vingança.
Provoca efeitos também em Handke. O texto é muitas vezes interrompido por
um questionamento que discute se tal ou qual termo é o mais adequado
naquele momento, a pertinência de manter ou não uma expressão adverbial e,
especialmente, uma intolerância que o narrador tem quanto a metáforas,
aproximações, símiles. (“não, nada de ‘tal como’”, “outra vez você repete ‘ao
mesmo tempo’”).A gramática de Port-Royal tinha um distanciamento crítico da
retórica aristotélica e do uso das figuras de linguagem, preconizando uma
escrita limpa, que acompanhasse a lógica do pensamento. O próprio texto do
narrador, com sua secura despojada, seu permanente questionar sobre a
propriedade e pertinência de palavras e locuções, não seria tributário dessas
posições?
A autoconsciência do texto se evidencia também nas frequentes declarações
do narrador de que, como autor, “decide” como a história deve ser escrita.
Assim, em algum momento, depois de ter percebido a própria violência e a
corruptibilidade da justiça,se pergunta se cabe uma vingança sangrenta na
história que escreve,ou, mais ainda, se há espaço para a malfeitora em sua
história. Como autor, num ato de escrita, poderia “decidir” simplesmente
suprimi-la, extirpá-la da história. Não seria essa a melhor vingança? Entretanto,
caso isso ocorra, como ficaria a própria história, se nela a malfeitora tem um
importante papel?
Ao confundir a narrativa com a materialidade do texto e reflexões sobre a
própria escrita, Handke produz um livro simultaneamente incômodo e
instigante.