Abril de 2025 – Vol. 30 – Nº 4
Walmor J. Piccinini
Os relatórios dos diretores do hospício são documentos únicos de uma época e
estamos trabalhando para colocá-los a disposição de todos na página da
Secretaria de Saúde do Governo do Rio Grande do Sul. A dificuldade é, no
mínimo, bizarra. Só existe uma cópia do relatório e faz parte do relatório do
Secretário, estão guardadas, muito bem guardadas, diga-se de passagem, na
Biblioteca do Solar dos Câmara, não é permitido tirar cópias e o trabalho é
manual, digita direto do relatório para um computador. Tenho feito isso nos
meus dias de folga, que não são muitos, mas chegaremos até lá. Muito em
breve, os primeiros relatórios estarão à disposição do público.
Nada como acender uma luz na escuridão, o exame de documentos pode
sofrer da miopia do observador, de uma tese a ser provada, de modismos
históricos defendidos na Academia. Quanto mais pessoas tiverem acesso ao
material, menos distorções existirão.
O historiador Paul Veyne (“Como se escreve a história” Editora UNB-
2008), nos ensina que: “A história é, em essência, conhecimento por meio de
documentos”. A dificuldade começa a aparecer quando diferentes olhares e
especialidades se debruçam sobre o mesmo documento. Temos a visão
sociológica como a de Roy Porter (Madness, Oxford Press-2002) ou de Andrew
Scull (Historical Sociology of Psychiatry), o de médicos historiadores como Ida
MacAlpine, Michel Stone e tantos outros, e temos os historiadores
propriamente ditos. Um historiador marxista tende a examinar a história sobre
o ponto de vista da economia, da luta de classes, outros, do ponto de Michel
Foucault (História da Loucura, Microfísica do Poder) e assim por diante. No
meio universitário brasileiro tenho observado um grande esforço em estudar a
história, examinar documentos dentro desse último ponto de vista e chega a
ser patético o esforço em colocar tudo sob o prisma da visão foucaltiana. Essa
maneira de interpretar a história coloca o historiador num brete, ele perde a
liberdade de examinar os fatos de diferentes ângulos.
O historiador deve ter o ceticismo de um detetive ao examinar um evento,
nem tudo é o que parece. Essa mesma atitude se exige de um psiquiatra ou
de um psicanalista na investigação da história de seu paciente. Sempre
existem motivações ocultas, verdades escamoteadas, deliberadas ou
inconscientemente.
O documento que examinaremos a seguir é o Primeiro Relatório do
Diretor Médico do Hospício São Pedro elaborado pelo seu Diretor o Dr. Carlos
Lisboa em dezembro de 1884. Este relatório era dirigido a Presidência da
Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre que tinha o hospício sob sua
responsabilidade. Tomei conhecimento do relatório através do trabalho da
historiadora Yonissa Marmitt Wadi (Palácio para guardar doidos: Uma história
das lutas pela construção do hospital de alienados da psiquiatria no Rio
Grande do Sul- Editora da Universidade – UFRGS.2002. p111-159). A partir do
relatório a autora escreveu o capítulo “Hospício São Pedro: A luta médica por
espaço, reconhecimento e poder”. Não é meu objetivo discutir os pontos de
vista da autora, que são bem claros na ideia da construção do poder médico
dentro da perspectiva de Renato Machado e colaboradores (Danação da
Norma) e das ideias de Michel Foucault sobre poder médico e poder
psiquiátrico. Minha ideia foi realizar uma releitura sob o ponto de vista de um
historiador médico e utilizando como ferramentas nosso trabalho com
pacientes. Examinar sua história sem tentar encaixá-las em conceitos prévios.
É um exercício difícil, pois sabemos que a neutralidade é uma utopia.
O relatório do Dr. Carlos Lisboa, é uma agradável surpresa. Ele demonstra
o entusiasmo dos positivistas na ciência, nas estatísticas e, principalmente,
registra seus conceitos sobre doença mental que foge da expectativa, pois
estão marcadamente sob influência inglesa, mais precisamente de John
Connoly. Preocupações com o “no restraint”, com o diagnóstico, com não
internar pessoas que não sofressem de alienação mental. A ideia de um
período de observação, antecede ao instituído no Hospício Pedro II no Rio de
Janeiro. Essas constatações que, evidentemente, não estariam ao alcance de
historiadores leigos, para nós médicos, são um filão a ser pesquisado.
A primeira dificuldade a ser enfrentada está na biografia do autor do
relatório, existem poucos dados sobre sua vida, pois morreu jovem, não
deixando descendência. Sabe-se que realizou seu curso de medicina na
Faculdade do Rio de Janeiro e teria se formado em 1881. Foi contemporâneo
de João Carlos Teixeira Brandão que se formou em 1877, não há referência de
contato entre eles. Há uma vaga referência que teria estagiado no Hospício
Nacional, mas sua tese de doutoramento foi na área da cardiologia. Logo que
se formou, retornou a Porto Alegre e foi trabalhar na Santa Casa, no setor de
moléstias contagiosas. Com a decisão da Presidência do Estado em entregar a
administração do novo asilo à Santa Casa, foi nomeado diretor. (concurso pela
imprensa?). Há referências que teria 24 anos de idade e ficou na direção da
mesma durante 4 anos, tendo falecido aos 28 ou 29 anos de idade devido a
um abscesso de ouvido que lhe atingiu o cérebro.
O primeiro regulamento do hospício estabeleceu a hierarquia de poder
dentro do mesmo e o diretor médico tinha um papel secundário. A
administração superior estava destinada a três irmãos da Santa Casa de
Misericórdia, um seria o escrivão, outro o tesoureiro e um terceiro, o
procurador, todos debaixo da supervisão do Provedor que seria auxiliado por 4
Mordomos. Ao médico, auxiliado pelo farmacêutico, incumbe a direção do
serviço sanitário, cujas tarefas eram nomear enfermeiros, designar as
enfermarias ou quartos para os alienados, tratá-los e redigir o relatório anual.
No artigo 12, são descritas as funções das Irmãs de Caridade que seriam as
mesmas atribuições conferidas pelo Regimento do Hospício Pedro II, do Rio de
Janeiro, de 14 de março de 1858.
Aparentemente, ou com certeza, a Santa Casa, como consta no regulamento,
pretendia entregar a administração do hospício a uma ordem religiosa, como
ocorreu no Hospício Pedro II no Rio de Janeiro. Isso não foi conseguido e a
direção médica com 3 enfermeiros passou a cuidar dos primeiros 40 enfermos
aí colocados, número que subiu para 147 seis meses depois quando o primeiro
relatório do diretor médico foi apresentado. O relatório se encontra no acervo
histórico da Santa Casa de Porto Alegre.
As colocações do Dr. Carlos Lisboa são extraordinárias e levantam
algumas questões que esperamos ir respondendo na medida que examinamos
seus relatos. A primeira observação que faço é sobre as condições de trabalho
enfrentadas pelo Dr. Carlos Lisboa. Como ele escreve, o Hospício São Pedro
ficava a uma légua do centro da cidade, não havia meio de transporte regular.
O edifício estava inacabado, no regulamento se previa uma casa para o diretor
médico, mas isso não foi feito, não havia energia elétrica, a água era
abundante, mas sem tratamento adequado. Os pátios não eram calçados.
Longe de ser um palácio, era um prédio em construção que logo foi lotado por
pacientes vindos de todos os rincões do Estado. Uma parte era de pensionistas
e outra parte de indigentes. Um detalhe existente no regulamento do hospício
era que escravo não poderia ser internado, só depois de receber carta de
alforria seria aceito. O Hospício de Juquery, inaugurado em 1998 tinha a
mesma regra. É pouco salientada essa participação do asilo na libertação dos
escravos. Em outro artigo afirmei “a loucura liberta”, o doente mental tinha
que ser cidadão livre. O Dr. Carlos Lisboa reclama, também sobre o fato de a
enfermeira ganhar menos que os enfermeiros e que não achava isso justo,
deve ter sido uma das primeiras manifestações em prol da igualdade de
direitos das mulheres. (o enfermeiro recebia 480$000 réis/ano e a enfermeira
360$000 réis anos. O médico diretor tinha o salário de 3:600$000 réis/ano, o
administrador recebia a metade. Segundo a Dra. Vasconcellos em sua tese
sobre internamento de mulheres no hospício no período de 1884 a 1910, o Dr.
Lisboa era solteiro e fazia sucesso no mundo feminino de Porto Alegre.
Um fato que chama a atenção em diferentes momentos do relato, era sua
preocupação com o bem-estar dos doentes, a condenação do uso de métodos
de contenção e a preocupação de não internar pessoas que não
apresentassem doença mental. Para que isso fosse realizado, antes de ser
internado o doente ficava em observação, por 15 dias e só depois disso, com
diagnóstico feito, ele passava a condição de paciente internado no hospício.
Essas ideias eram defendidas por John Connoly (1794-1867), médico inglês,
preocupado com a internação e perda de direitos de cidadãos ingleses. Ele se
tornou conhecido no mundo inteiro pela política de “no restraint” que era mais
do que condenar o uso de camisa de força, era toda uma ideia estabelecer
graus de liberdade para os doentes mentais. Isso se traduziu no hospício com
o uso de trabalhos manuais, toda a costura era feita por pacientes, à horta era
cuidada por pacientes e alimentava todo o hospício, serviços de pedreiro,
carpintaria etc. era feito por pacientes. A ergoterapia aplicada de forma ampla
e regularmente.
Quando se divulga a ideia que a psiquiatria brasileira foi primeiramente
influenciada pela França e depois pela Alemanha, teremos que incluir a
influência inglesa no Rio Grande do Sul. Não há registro de como essa
influência chegou a Rio Grande do Sul, uma das hipóteses que algum inglês
ligado à ferrovia ou frigorífico tenha trazido para Porto Alegre a obra de John
Connoly editada em 1830.
No seu relatório, o Dr. Lisboa enfatiza a união da Ciência com a Caridade e
demonstra uma confiança muito grande na capacidade curativa do asilo por
ação da medicina. E isso era uma crença típica da época, havia uma ideia
objetiva de cura da loucura. Vamos examinar esse aspecto na história:
A ideia de recolher pessoas enfermas a asilos existiu desde a Idade Média e
não necessariamente significava ministrar tratamento, era principalmente à
atuação da caridade cristã para minorar o sofrimento dos enfermos e
desvalidos. Uma das possíveis explicações para esse fenômeno estaria ligada a
formas de combater a Peste Negra que assolou e devastou a Europa e o
mundo no período de 1398 a 1610. A peste modificou as relações de trabalho
nos campos, enfraqueceu o poder da Igreja Católica e trouxe a ideia da
quarentena no trato com as moléstias. Primeiro em navios, depois em
albergues e depois em lazaretos, mais tarde nos hospitais ou hospícios, assim
foi se introduzindo a ideia que era preciso isolar para tratar. O índice de
mortalidade nesses locais era muito alto e contribuiu para sua má fama. Os
hospitais eram locais de aguardar a morte, não de curar.
Em seu livro História da Psiquiatria, Edward Shorter comenta sobre os
asilos tradicionais que seriam uma invenção do século XVIII. As pequenas
vilas, cidades e as grandes cidades tinham que se confrontar com o problema
dos psicóticos, os dementes e os deficientes mentais abandonados nas ruas.
Muitas vezes eram recolhidos a hospícios para doentes, criminosos e
andarilhos. Muitos eram simplesmente recolhidos às prisões públicas, ou
mantidos em cárceres privados por familiares. Nesses locais, não havia
qualquer forma de tratamento. A primeira estatística que se tem notícia sobre
o número de doentes mentais foi publicada na Inglaterra em 1826. Havia
cerca de 5 mil insanos num total de 10 milhões de habitantes. 64% deles
eram atendidos no setor privado e 36% no setor público. Algo parecido
acontecia na França e na Alemanha o que coloca em dúvida ou desmente a
afirmação de que teria existido um grande confinamento de pessoas
socialmente indesejadas, por toda a Europa. “É importante destacar que, num
mundo sem psiquiatria, ao invés de ser tolerado ou protegido, o doente
mental era tratado com uma selvagem falta de sentimento”. (Porter E.). O
mesmo autor refere que: antes do advento do asilo terapêutico não houve
uma era dourada, nem refúgio idílico para aqueles supostos desviantes dos
valores capitalistas. Afirmar de outra forma é fantasia.
A partir da metade do século XVIII começam a surgir ideias otimistas em
relação ao tratamento e cura do doente mental, surgem personalidades como
William Battie na Inglaterra que escreveu em 1758 o “Treatise on Madness”
onde especificamente atribuía virtudes terapêuticas ao asilo. Vicenzo
Chiarruggi, no final do século XVIII em seu tratado “On Insanity” afirmava que
os asilos não são apenas para segregar os doentes mentais, mas para curá-
los. A simbólica libertação dos doentes mentais, desencadeada por Pinel e seu
livro de 1801 “Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental ou a Mania”
(UFRGS-Editora e MUHM), deram o passo inicial para o nascimento da
psiquiatria como especialidade médica. O fenômeno do nascimento das
especialidades médicas é um acontecimento do século XIX.
O Tratado de Pinel foi publicado em 1801, nesse mesmo ano os
portugueses consolidavam seu poder no sul do Brasil e definiam as fronteiras
da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Em 1808 a família real
portuguesa fugiu par o Brasil e deu-se início a grande transformação da
Colônia em Vice-Reino e pôr fim a independência do Brasil sob uma
monarquia.
Em 29 de junho de 1884 foi inaugurado o Hospício São Pedro de Porto
Alegre, o prédio estava parcialmente concluído, mesmo assim foi inaugurado
por pressão da população que achava que as obras estavam muito
demoradas. Seus primeiros pacientes vieram transferidos da Santa Casa (25)
e do Presídio Central (14).
Fiz um resumo de um Relatório do Inspetor de Higiene do Estado do Rio
Grande do Sul de 1893, para dar uma ideia das condições sanitárias de Porto
Alegre, nove anos depois da inauguração do hospício.
Relatório do Inspetor de Higiene Dr. Protásio Alves- 1893
Foi nomeado Inspetor de Higiene em 13 de novembro de 1892. Queixas de
falta de recursos e pobreza das instalações.
Estatística de 1891, com dados da Santa Casa de Misericórdia.
Óbitos 2245; média diária de 6,015
Porto Alegre tinha cerca de 60 000 habitantes, calculou uma mortalidade de
37,4 por 1000 habitantes; mortalidade muito grande atendendo que, o Rio de
Janeiro com a sua fama de insalubre, tem uma média de 30 a 31/1000 e
Londres 19/1000.
Causas de Morte dos cidadãos de Porto Alegre em 1892
Natimortos 133
Sem assistência médica: 518 (358 crianças menores de 10 anos, apenas 18
com menos de 24 horas). Morte de crianças sem assistência 70%; com 30%.
Atribui a falta de assistência médica e opção pela homeopatia.
De moléstias gastrointestinais: 310, Tuberculose: 220, Febre Tifoide 151,
Varíola: 141, Difteria; 30, Tétano: 11, Sarampão: 3. Outras causas 728
Este relatório nos dá ideia de quão grave era o problema sanitário de Porto
Alegre, a referência à homeopatia estava dentro do contexto da briga entre os
médicos formados e os práticos, autorizados pela Constituição Estadual de
De orientação positivista propunha a liberdade religiosa, liberdade
industrial e liberdade de praticar a medicina desde que a pessoa se sentisse
habilitada. Os médicos, mesmo sendo positivistas na sua maioria, não
aceitavam ser igualados aos curandeiros, charlatões ou curiosos da medicina.
A consequência foi à criação de uma faculdade de medicina que começou a
atuar em 1898.
Porto Alegre tinha um porto bastante movimentado, vinham navios de todo
mundo buscar cereais e charque. Com os marinheiros vinham desde a peste
bubônica até varíola. Numa tentativa de conter as doenças fora de Porto
Alegre, foi montada uma barcaça hospital de quarentena. Ela ficava no meio
do Lago, rio Guaíba. Tempos atrás li na imprensa que esta barcaça tinha sido
encontrada no fundo do rio. Ninguém soube dizer para que servia e eu resolvi
não me intrometer, pois não tinha documentação para confirmar.
A ideia de que o internamento no asilo seria uma forma de reunir os
excluídos sociais é uma tentativa de enquadrar nossa realidade em teorias
historiográficas vindas do exterior e em abandono no próprio território de
origem. Antigamente se dizia que o diagnóstico psiquiátrico era como um leito
de Procusto, pode-se dizer que a historiografia da psiquiatria é procustiana,
tudo deve ser enquadrado num modelo pré-estabelecido. Fico alarmado com a
aprovação dessas teses pela nossa Universidade e o que é pior, quem desafiar
o modelo, será riscado do mapa acadêmico. A Inquisição sobrevive em certos
ambientes universitários.