Fevereiro de 2025 – Vol. 30 – Nº 2
Walmor J. Piccinini (Editor da Psychiatry online Brazil)
A Psiquiatria no Estado do Rio Grande do Sul na década de 70 do século XX
passava por grandes transformações. Os psiquiatras mais antigos do HPSP
começavam a ser substituídos pelos psiquiatras formados pelo “Curso do
David” que na verdade era dirigido por Paulo Vianna Guedes e David
Zimmermann. Na direção do Hospital um ex-residente da Clínica Pinel, Hans
Ingomar Schreen. Na Coordenação de Saúde Mental do Estado estava Carlos
Gari Faria, também ex-residente da Pinel. Na chefia da psiquiatria do INAMPS
estava Paulo Juchem, também residente da Pinel. Na Central de Psiquiatria
estava Isacc Sprinz, também ex-residentes da Pinel. Eu estava meio
desencantado com atendimento em ambulatório do Inamps pensando em me
demitir. Ao saber disto, Carlos Gari me propôs para trabalhar com ele na
Coordenação do Estado. Foi fácil sai de um cargo federal e passar para o
Estado, muitos candidatos queriam fazer o trajeto contrário. Na Coordenadoria
encontrei uma equipe de amigos, a assistente social era Guilhermina Iochpe
Zimerman, a psicóloga Shirlei Cardoso que tinha sido minha aluna na PUC e a
este grupo se somou Bruno Russomano de Mendonça Lima. Nas suas férias
Carlos Gari visitou um outro colega de residência o Fernando Rocha que fazia
formação psicanalítica em Paris e trabalhava num arrondissement. Paris é
dividida em arrondissements e cada um está equipado com serviços médicos e
atende determinada região. No seu retorno a Porto Alegre o Dr. Carlos Gari
resolveu aplicar este conhecimento parisiense no Hospital Psiquiátrico São
Pedro. Aí começou um plano para mudar de mudar a realidade do São Pedro.
Na época tinha cerca de cinco mil pacientes e não parava de aumentar.
Falando agora parece um plano ingênuo, mas deu resultados surpreendentes.
Em vez de Unidades de agudos e crônicos, nossa proposta foi de setorizar o
Hospital reunindo os pacientes por região de proveniência. Zona Sul (Pelotas.
Rio Grande, São Lourenço etc.); Zona da Campanha (Bagé, Livramento,
Alegrete e outros); Zona Central (Santa Maria, Canguçu, Restinga Seca);
Missões; Litoral e os oriundos da Grande Porto Alegre. A segunda parte do
plano era visitar e treinar os Centros de Saúde destas regiões, contactar
prefeito, padre e outras força comunitárias para localizar as famílias destes
pacientes que estavam abandonados no grande Hospital. Nosso fim de
semana era ir para estas localidades, algumas viajando toda noite, pois as
distâncias eram enormes. Sempre fomos bem recebidos, os médicos daquelas
Unidades de Saúde do Estado nos recebiam muito bem e participavam do
treinamento e abraçavam a ideia. Não recebíamos hora-extra, todo trabalho era
voluntário e na segunda-feira, lá estávamos no serviço. Nosso entusiasmo era
grande e a cada família localizada e treinada para receber seus familiares
doentes era nossa recompensa.
Aos poucos fomos nos dando conta de um grande problema, os pacientes
saiam mal medicados do Hospital e tínhamos que reduzir medicações, mudá-
las e isso era desgastante. Por sugestão do Bruno Lima criamos um curso de
farmacologia para os profissionais, criamos um livro básico com os principais
medicamentos e isso deu resultado. Depois de pouco mais de dois anos
conseguimos reduzir a população do hospital de cinco mil para mil e duzentos.
Depois veio mudança de governo e saímos desta atividade. Como atendia
pacientes idosos, fiz um plano para reduzir os pacientes moradores. Como o
Estado dava subsídios para geriatrias do estado, que eram umas 440, imaginei
que se cada uma recebesse um dos pacientes idosos e crônicos, reduziria
ainda mais a população do hospital. Aí esbarrei na negativa dos
administradores destas geriatrias em receber os pacientes. Alegavam, entre
outras coisas, que o Estado havia cortado os subsídios e tinham medo dos
pacientes. Para resolver isto, eu mesmo ia ao Hospital selecionar os pacientes
idosos e crônicos. Aí descobri fatos impactantes. As irmãs que cuidavam dos
pacientes não queriam que tivessem alta, pois eram fundamentais para o
funcionamento do hospital. Na cozinha, na limpeza etc. Dei alta para um
paciente e a Freira veio reclamar comigo, pois ele não poderia sair de jeito
nenhum. Seu argumento era impactante, era o único que entendia das velhas
caldeiras do hospital e se saísse acabaria com o banho quente.
Os personagens desta história tiveram destinos diferentes. Bruno Lima foi para
os Estados Unidos e se tornou professor na John Hopkins, morreu moço e
contei sua história em (Psychiatry online Brazil – 2007 ) Carlos Gari que o
Davizinho (David E. Zimerman; David Epelbaum Zimerman (1930-2014)
chamava de pintinho e poeta, também faleceu, Shirlei, eu, Hans e Guilhermina
seguimos firmes e com bastante idade.
Versão Copiloto
História Vivida
Na década de 1970, a psiquiatria no Estado do Rio Grande do Sul estava
passando por grandes transformações. Os veteranos psiquiatras do Hospital
Psiquiátrico São Pedro (HPSP) estavam sendo gradualmente substituídos por
novos profissionais formados pelo renomado “Curso do David”, dirigido por
Paulo Vianna Guedes e David Zimmermann. Na direção do hospital, estava
Hans Ingomar Schreen, um ex-residente da Clínica Pinel. Carlos Gari Faria,
também ex-residente da Pinel, coordenava a Saúde Mental do Estado. A chefia
da psiquiatria do INAMPS estava a cargo de Paulo Juchem, outro residente da
Pinel. Na Central de Psiquiatria, Isaac Sprinz, mais um ex-residente da Pinel,
desempenhava um papel importante.
Eu estava desencantado com o atendimento no ambulatório do INAMPS e
cogitava me demitir. Carlos Gari, ao saber disso, me convidou para trabalhar
com ele na Coordenação do Estado. Aceitei prontamente e encontrei uma
equipe de amigos: a assistente social Guilhermina Iochpe Zimerman, a
psicóloga Shirlei Cardoso, que tinha sido minha aluna na PUC, e Bruno
Russomano de Mendonça Lima.
Durante suas férias, Carlos Gari visitou Fernando Rocha, um ex-colega de
residência que fazia formação psicanalítica em Paris e trabalhava em um
arrondissement (divisão administrativa). Inspirado pelo modelo parisiense,
Carlos Gari decidiu aplicar esse conhecimento no Hospital Psiquiátrico São
Pedro. Assim, nasceu um plano para mudar a realidade do São Pedro, que na
época tinha cerca de cinco mil pacientes.
Em vez de agrupar pacientes em unidades de agudos e crônicos, decidimos
setorizar o hospital por regiões de proveniência: Zona Sul (Pelotas, Rio
Grande, São Lourenço etc.); Zona da Campanha (Bagé, Livramento, Alegrete e
outros); Zona Central (Santa Maria, Canguçu, Restinga Seca); Missões; Litoral
e oriundos da Grande Porto Alegre.
A segunda parte do plano consistia em visitar e treinar os profissionais dos
Centros de Saúde dessas regiões, além de contactar prefeitos, padres e outras
forças comunitárias para localizar as famílias dos pacientes abandonados no
hospital. Nosso fim de semana era dedicado a essas visitas, muitas vezes
viajando a noite inteira devido às grandes distâncias. Sempre fomos bem
recebidos, e os médicos das Unidades de Saúde do Estado se envolveram nos
treinamentos e abraçaram a ideia. Todo o trabalho era voluntário e, na
segunda-feira, estávamos de volta ao serviço com entusiasmo renovado.
Nossa maior recompensa era cada família localizada e treinada para receber
seus parentes doentes.
Aos poucos, percebemos um grande problema: os pacientes saíam do hospital
excessivamente medicados. Foi necessário ajustar e reduzir as medicações, o
que era desgastante. Com a sugestão de Bruno Lima, criamos um curso de
farmacologia para os profissionais e elaboramos um livro básico com os
principais medicamentos, o que trouxe resultados positivos. Após pouco mais
de dois anos, conseguimos reduzir a população do hospital de cinco mil para
mil e duzentos pacientes.
Com a mudança de governo, deixamos essas atividades. Como eu atendia
pacientes idosos, elaborei um plano para reduzir ainda mais o número de
internos. Imaginei que se cada uma das 440 geriatrias do estado recebesse um
paciente idoso e crônico, a população do hospital diminuiria significativamente.
No entanto, os administradores dessas geriatrias se recusaram a aceitar os
pacientes, alegando, entre outras coisas, que o Estado havia cortado os
subsídios e tinham medo dos pacientes. Para resolver isso, eu mesmo selecionava os pacientes idosos e crônicos no hospital. Descobri fatos
impactantes, como as religiosas que cuidavam dos pacientes não querendo
que eles recebessem alta, pois eram essenciais para o funcionamento do
hospital, tanto na cozinha quanto na limpeza. Certa vez, liberei um paciente e
uma freira veio reclamar comigo, argumentando que ele era o único que
entendia das velhas caldeiras do hospital e, se saísse, acabaria com o banho
quente. As irmãs de caridade também trabalhavam numa semiescravidão. Elas
não tinham salários. As Irmandades faziam contrato com o Estado e recebiam
o dinheiro. Em1957 o Dr. Dyonélio Machado exigiu que as irmãs tivessem
contratos individuais com direito a Previdência Social. As Irmandades reagiram
e declararam greve ou melhor retiraram as Irmãs do hospital. O Dr. Dyonélio
não cedeu e finalmente as Irmãs voltaram e tiveram a carteira do trabalho
assinada, ter direito a salários e benefícios da Previdência.
Os personagens desta história tiveram destinos diferentes. Bruno Lima foi para
os Estados Unidos, tornou-se professor na Johns Hopkins e faleceu jovem,
como relatei em “Psychiatry online Brazil” em 2007. Carlos Gari, apelidado de
“pintinho e poeta” por David Zimerman, também faleceu. Shirlei, eu, Hans e
Guilhermina seguimos firmes e maduros.