Fevereiro de 2025 – Vol. 30 – Nº 2
Descartes, no fim da Idade Média, em sua obsessão classificatória dividiu
o homem em corpo e mente, uma divisão artificial cujas consequências
danosas suportamos até hoje
Colaboração: Franklin Cunha
“Não há classificação do Universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão
é muito simples: não sabemos o que é o Universo.”
Jorge Luis Borges
Tudo começou com o Criador (ou classificador) Supremo, pois, criando o ser
humano, já o classificou em dois sexos: macho e fêmea. Não chegou (por
desconhecimento ou prevendo controvérsias futuras) estabelecer
subclassificações que, como sabemos, são muitas.
Em seguida, criou duas outras categorias: a do bem e a do mal. Ambas foram
simbolizadas pela figura de uma árvore que, também sabemos, tem muitas
ramificações, grandes e pequenos galhos como os grandes e pequenos bens e
males.
Seus seguidores foram tomados de um verdadeiro frenesi de classificações: os
sete pecados capitais, os dez mandamentos, anjos, demônios e suas diversas
sub-classes e assim por diante.
A Idade Média também foi pródiga nesta mania, quase uma patologia.
Classificou – via teólogos da Igreja – as doze dualidades que, segundo eles,
dividiam a soberania da alma humana.
Fé e Idolatria, Esperança e Desespero, Caridade e Avareza, Prudência e
Loucura, Paciência e Cólera, Suavidade e Dureza, Concórdia e Discórdia,
Obediência e Rebelião, Perseverança e Inconstância.
Para decidir, por exemplo, quem seria queimado nas fogueiras, foi escrito, por
dois monges, um verdadeiro tratado, o Malleus Malificarum , o mais importante
depositário de leis classificatórias que regiam o teocrático Estado Medieval.
Descartes, já no fim da Idade Média, foi ao paroxismo, pois em sua obsessão
classificatória, dividiu o homem em dois setores: a Res Extensa e a Res
Cogitans. Partiu-o em corpo e mente, numa divisão artificial e irreal cujas
consequências danosas suportamos até hoje e que Freud apenas conseguiu
atenuá-las.
As classificações, dizem os classificadores, são importantes para a ciência
porque são um pré-requisito de todas as tentativas feitas para se descobrir uma
ordem no Universo.
Não foi senão Claude Levi Strauss quem descobriu que não podemos suportar
a confusão e que devemos, não apenas para viver, mas até para pensar,
introduzir diferenças e classificá-las. Segundo ele, os homens são menos
ávidos de crenças do que de classificações.
Dos reinos animal e vegetal, encarregou-se o botânico sueco Carolus
Linnaeus, ou simplesmente Lineu (1707-1778).
Uma grande parte de nossos conhecimentos dos animais e vegetais está
correlacionada com o sistema classificatório de Lineu. Assim, nomeados,
ordenados e sistematizados, os animais e vegetais do planeta puderam ser
sistemática e irreversivelmente destruídos.
Talvez seja por isso que, das classificações atuais, minha preferência vai para
a encontrada pelo doutor Franz Felix Adalbert Kuhn (1812-1881), filólogo
germânico, numa enciclopédia chinesa chamada Empório Celestial de
Conhecimentos Benévolos e citada por Jorge Luis Borges. Em suas remotas
páginas está escrito que os animais se dividem em:
a) Embalsamados
b) Amestrados
c) Pertencentes ao Imperador
d) Leitões
e) Sereias
f) Fabulosos
g) Cães soltos
h) Incluídos nesta classificação
i) Fabulosos
j) Que se agitam como loucos
k) Desenhados com um finíssimo pincel de pelos de camelo
l) Inumeráveis
m) Etecétera
n) Que acabam de quebrar um vaso do Imperador
o) Que de longe parecem moscas
O ignoto Lineu chinês, sabiamente, elaborou uma classificação animal para
agradar ao Imperador em suas preferências estéticas e gastronômicas ou,
simplesmente, para amenizar o Imperial tédio. E que, embora pareça imprecisa
e desordenada diante de nossos cartesianos conceitos, teve o mérito de não
aprisionar em grades classificatórias, para depois destruir nossos irracionais
companheiros de viagem neste não menos irracional Universo em que vivemos
e morremos.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras