Abril de 2024 – Vol. 29 – Nº 4

Ellis D’Arrigo Busnello

(Professor Emérito da Faculdade de Medicina da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul;

Porto Alegre, RS, Brasil)

Nota do Editor; esta conferência foi publicada na Gazeta Médica da Bahia em 2010

A Medicina de Família e Comunidade no Brasil Tenho a certeza de que a Comissão Organizadora deste Seminário juntava o nosso nome ao do Grupo de Profissionais da Saúde que nos anos da década de 1970, certamente seguindo à risca a ideia colocada por William Shakespeare, em A tempestade, de que “nós somos tecidos com o mesmo tecido com que se tecem os sonhos, e de que as nossas curtas vidas são cercadas de sonhos”, tomaram a si o encargo de mudar a ênfase dos objetivos da Medicina como Ciência das Doenças para ser a Ciência da Saúde, e das atividades da Saúde, enfaticamente colocada em estabelecimentos planejados para lidar com as Doenças, para serem as que visam elevar o nível da Saúde Física, Mental e Social das famílias, das populações e das comunidades onde estas vivem. Certamente o convite que me foi feito através do Professor Doutor José Tavares Neto, cuja invulgar direção à frente da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade da Bahia, tem relação com o período de minha vida que passei como Professor Universitário de Medicina, fora dos locais convencionais por eles utilizados, os Hospitais de Cuidados Terciários, especializados e superespecializados, e deixando a corrente principal do Ensino da Psiquiatria como uma parte da Medicina, fui tentar praticar algo que à época seria chamada de Higiene Mental que evoluía rapidamente para o que veio a ser denominado Psiquiatria Comunitária e Social. Isto ocorreu numa área de abrangência bem definida geograficamente, numa zona periférica de Porto Alegre, que compreendia diversas vilas, entre elas a Ceres, as margens do riacho Ipiranga, a vila São José propriamente dita, mais as vilas Albion com o seu bem delimitado enclave de malocas denominado o Campo da Tuca, a Vila Vargas e o Morro da Cruz, este localizado no topo do morro já bem afastado do riacho, até hoje local de romaria na Sexta-feira Santa com uma tradicional e popular procissão que revisita os passos da Paixão de Jesus Cristo e finaliza com sua “Crucifixão” no alto do mesmo. Para dar um colorido mais vívido a este local, devo dizer que também aquele ponto era também um dos maiores entrepostos de tráfico de drogas reinando sobre ele um dos nossos clientes e sua família, aqui identificado apenas como o “Anão”. Cerca de vinte e nove mil pessoas viviam nesta área de abrangência e utilizavam os serviços prestados por um grande Centro de Saúde então denominado “Centro Médico Social São José do Murialdo”. Era uma obra desenvolvida pela comunidade, representada pela Paróquia e pelo Pároco, o Padre italiano Ângelo Costa, um líder nato de atividades comunitárias e de valorização da população marginalizada, numa feliz associação com a então Secretaria Estadual da Saúde e do Meio Ambiente. Trabalhavam na área em torno de sessenta funcionários, sendo que em torno de vinte e cinco possuíam nível superior, predominando entre eles os Médicos, sendo um deles Sanitarista especializado pelo então Serviço de Saúde Pública (SESP) do Ministério da Saúde, com treinamento na Escola Nacional de Saúde Pública e nas populações alvo que o Serviço Nacional de Saúde Pública escolhia por constituírem espaços dentro da nossa nação, desprovidos de assistência médica ou como se diria hoje, de assistência à saúde. Uma plêiade destes heróis da Medicina davam aos Secretários da Saúde do Rio Grande do Sul, à época, a orientação científica e técnica, que era a marca registrada a destacar o Estado do Rio Grande do Sul pela qualidade de suas ações de Saúde Pública, certamente devido ao fato da qualificação que era a característica dos profissionais que a ela se dedicavam no nosso Estado. Refiro nesta introdução esse detalhe por dois motivos: 1) dirigi-me por felicidade a um local onde se poderia pensar em Saúde Mental Comunitária, pois o Centro Médico Social era orientado para não ser um local concessor de atendimentos convencionais, mas ser uma área orientada para prevenção primária (promoção da saúde e proteção específica contra as doenças); orientado também à prevenção secundária (o diagnóstico precoce e o pronto tratamento) e para a prevenção terciária (a limitação do dano), privilegiando os problemas de saúde e os cuidados das famílias maternos e infantis mais frequentes e outros cuidados com populações sadias de uma forma preventiva; por isso contávamos entre os nossos profissionais de cursos técnicos e de curso superior com pessoas que tinham formação melhor para o exercício das tarefas necessárias aos cuidados básicos de saúde; o segundo motivo é porque na minha idade ao se relatarem as Histórias também se deve fazer resgate e justiça àqueles que primeiramente foram para as comunidades saindo dos palácios que se dedicam às Doenças, os Hospitais, para entrar nos domicílios e seus locais residenciais comunitários de prestação de serviços como escolas, clubes, associações de classe e outros, para levar aos mesmos cuidados preventivos e curativos dos que a Medicina já dispõe; 2) também para destacar a pessoa que delimitou a área e o projeto que posteriormente viríamos a desenvolver, a pessoa do Dr. Nelson Macedo de Rezende; ele era um dos Sanitaristas do SESP do Ministério da Saúde dos quais falamos quando referimos de onde provinham os “Sanitaristas” que emprestavam seus talentos para a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul. Ele sentiu a necessidade de ter um Psiquiatra na sua equipe e posso dizer hoje que nos escolhemos mutuamente. Éramos Professores da mesma Universidade ele no Departamento então chamado de Higiene e Medicina Preventiva e eu no de Psiquiatria e Medicina Legal. Assim é que entre 1968 e 1969 comecei a frequentar em tempo parcial o Centro Médico Social São José do Murialdo e para o mesmo, comecei a levar colegas dos Departamentos de Medicina Interna, Higiene e Medicina Preventiva, Ginecologia e Obstetrícia e Pediatria, e mais outros que se interessavam por Pedagogia Médica, o que significava que estavam inoculados com o vírus de que não podíamos ser só Médicos de Doenças mas que tínhamos que aprender a lidar com Seres Humanos inseridos dentro das comunidades onde viviam, onde aprendemos na prática o que significava trabalhar com populações saudáveis na preservação e na garantia da saúde das mesmas, e fortalecer as fileiras dos por assim dizer novos exércitos dos profissionais de Saúde, que desejavam antes preserva-la e amplia-la, do que trabalhar com Doenças e Doentes que poderiam ser prevenidas e protegidos. Começávamos a aprender que a Saúde e a Doença estavam intimamente relacionadas com o Homem e o seu Ambiente e que no hospital nós só víamos o Homem e a sua Doença, e que o fulcro do ensino médico devia ser drasticamente deslocado se desejávamos criar uma nova geração de Profissionais da Saúde a ela, Saúde, dedicados. Para um então jovem médico que se graduara em 1955 e fizera o que então foi o primeiro Curso de Psiquiatria de três anos para se tornar um Especialista Psiquiátrico certificado pela Universidade (UFRGS) em 1959, no embrião do que depois viria ser a Residência Médica, e um Psicanalista, graduado no Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (1968), a comunidade era uma guinada marcante na nossa carreira, e o que vínhamos realizando no Centro Médico Social São José do Murialdo, atendendo problemas físicos, campo convencional da Medicina, mas invadindo os problemas psíquicos e os sociais, bem como expondo alunos de graduação de Medicina e de outras Escolas Superiores da Área da Saúde a populações reais, composta de pessoas saudáveis e de pessoas doentes, e não apenas com populações clínicas em Centros de Saúde e em Hospitais, onde predominavam pessoas doentes, era para a época tão inédito que despertamos a atenção dos colegas da Secretaria da Saúde e dos Consultores que vinham à mesma enviados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e principalmente pela Organização Pan Americana da Saúde (OPAS). De um lado nossos colegas de Secretaria nos negavam capacidades na área para o trabalho de Saúde Pública no campo, e muito menos para o trabalho de Saúde Mental e também a nossa falta de formação em Saúde Pública. De outra parte os visitantes, vindos das Organizações acima referidas e do Royal College of Family Physicians and General Practioners da Inglaterra, na pessoa de seu Presidente, o Professor Sir Michael Drurys apontavam como modelo e nos fortaleciam por considerarem que estávamos no caminho certo. Além disto nos apoiavam e estimulavam e sugeriram intercâmbios que nos fortificasse em nossos propósitos de trabalhar mais enfaticamente com a Saúde do que com a Doença. Entre estes intercâmbios destacamos os Laboratórios de Relações Humanas e de Ensino das Ciências na Área da Saúde para as Escolas Superiores de Saúde, e a ida do Dr. Sérgio Pacheco Ruschel do Departamento de Medicina Preventiva e a minha, do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para nos Mestrarmos em Higiene e Saúde Pública nos Estados Unidos, na Yale University e na Johns Hopkins University, dando impulso à formação do que então chamávamos Recursos Humanos Qualificados para a Saúde. De outra parte, a existência de um conjunto de bairros que iam da pobreza extrema à classe média, configuravam o cenário necessário e ideal, composto por cerca de trinta mil habitantes, à época cerca de seis mil famílias com uma média de cinco pessoas por família variando de algumas com cerca de quinze pessoas para outras com apenas uma ou duas pessoas, que viviam sob um mesmo teto e partilhavam de uma mesma mesa: um estrato comunitário, um presente da população para a Academia, da Comunidade real para a Universidade, das populações que apresentam Necessidades de Saúde, para a Comunidade Científica que pretende dar soluções inovadoras em termos de Prestação de Serviços capazes de resolver os problemas de Saúde que as populações apresentam. Foi naquele local que nos últimos meses de 1972 regressando do Mestrado em Saúde Pública da Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins fui designado pelo Dr. Jair de Oliveira Soares, então Secretário da Saúde, para chefiar o Centro Médico Social São José do Murialdo, face o projeto que lhe havíamos apresentado de tentar no mesmo atividades experimentais inovadoras de Assistência, Ensino, Pesquisa e Administração em Saúde Pública, transformando aquele Centro Médico Social São José do Murialdo, num moderno e experimental local de prestação de serviços inovadores, ou seja, num verdadeiro Modelo de Sistema de Saúde Comunitária, Quis a Sociedade Baiana de Medicina de Família e Comunidade que viéssemos à abertura deste seu Seminário para falar sobre a Medicina de Família e Comunidade no Brasil. É por isso que estamos fazendo este resgate histórico de nossa contribuição para o desenvolvimento da Saúde no País, com a criação do primeiro Sistema Comunitário de Saúde instalado no Brasil. Nada nos pareceu mais oportuno senão falar sobre o que ficou realizado no então Centro Médico Social São José do Murialdo, pois é justamente tocar nos momentos iniciais da organização de Serviços de Saúde Sistematizados e Hierarquizados, começando sobre os que são dispensados a populações reais da comunidade através de Educação, de Promoção de Conhecimentos e de Utilização de Métodos de Prevenção Primária (Educação e Imunização), passando para Postos de Saúde para dispensar Cuidados Primários assim ditos na época, hoje chamados Unidades Básicas de Saúde que dispensam cuidados básicos de saúde até chegar a Centros mais complexos de Saúde onde desempenham atividades profissionais especializadas que prestam Cuidados Secundários de Saúde (Diagnóstico Precoce e Pronto Tratamento) e aos Hospitais Comunitários e aos Hospitais Especializados e Superespecializados onde se prestam Cuidados Terciários (´Diagnósticos e Tratamentos Complexos). Em todos esses níveis que abrigam populações diversas, constituídas por uma Família, várias Famílias que fazem um Grupo Social, Grupos Sociais maiores que fazem um Bairro dentro do qual existem várias Comunidades, e Grupos Humanos que constituem populações maiores, se estabelecem organizações que prestam cuidados Básicos, Especializados, e Superespecializados e que posteriormente as curas e aos tratamentos com sequelas, oferecem oportunidades de Inserção Social ou seja, Reabilitação, às pessoas que ficam com maior ou menor grau de incapacitação. Naquele local tivemos a oportunidade de durante alguns anos que consideramos os anos épicos das conquistas, realizar uma série de inovações, bem como de implanta-las, em termos de organização e desenvolvimento de um Sistema de Saúde Comunitário. Pelas mesmas fomos descobertos, percebidos, reconhecidos, adotados e registrados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Pan Americana da Saúde (OPAS). A partir daí, veio o reconhecimento do mundo científico, que passou a ver a Unidade Sanitária Murialdo como um local dentro da comunidade onde se desenvolviam pela primeira vez em nosso País atividades experimentais e inovadoras de Assistência, Ensino, Pesquisa e Administração em Saúde Pública, de extrema importância. A OMS e a OPAS prestigiaram a nós e aos colegas que conosco trabalhavam, mormente Bruno Russomano de Mendonça Lima e José Manoel Bertolote, tornando-nos seus colaboradores, na qualidade de Assessores Temporários e Membros de seus Painéis de Peritos. A nossa Secretaria da Saúde e sua Escola de Saúde Pública, dada à importância que a Unidade Sanitária Murialdo adquiriu em Assistência, Ensino, Pesquisa e Administração para a Saúde Pública no Rio Grande do Sul, veio a assumi-la e mantê-la como um dos órgãos da Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, e a denominaram inicialmente com o nome de Unidade Sanitária Murialdo, atualmente localizada na Escola de Saúde Pública da Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul. De novembro de 1972 a abril de 1974, um intenso trabalho de estudo de projetos internacionais e de avaliação, discussão e redação de um Projeto de Saúde Comunitária a ser implantado naquela área geográfica, foi realizado com a participação de todos os funcionários que exerciam as suas atividades no Centro Médico Social São José do Murialdo, com uma forte e muito presente contribuição das lideranças e de pessoas da comunidade. Com o aval das autoridades acima referidas, de abril de 1974, quando o projeto terminou de ser redigido, até o momento em que, em 1982, passamos a chefia ao nosso sucessor, Dr. Flávio Kanter, cerca de 11 Grupos de Trabalho deram início à tarefa de tornar realidade o que determinavam os 11 Objetivos Básicos do Projeto. Com o Objetivo Geral de elevar os níveis de Saúde da população da área geográfica de abrangência do Centro, com o atendimento Integral (Preventivo, Curativo e Reabilitador), Continuado (vinte e quatro horas por dia, nos 365 dias do ano para sempre), Personalizado (cada indivíduo visto como uma Pessoa e não como um Número ou como uma Doença), e Participativo (com a colaboração do Paciente, da sua Família e da Comunidade que o cerca), da população daquela área. Destacamos o objetivo de elevação da Saúde, clara e definitivamente diferente e até oposto ao objetivo de outros tipos de serviço de saúde, como por exemplo os Hospitais, que era e ainda é, em parte, o de tratar doentes, limitando a função da Medicina definida como sendo a Ciência que busca a elevação do nível da Saúde Física, Mental e Social de indivíduos e não a de elevar o nível da Saúde Física, Mental e Social das populações. Era objetivo do Murialdo, como assim passamos a denominar o Centro Médico Social São José do Murialdo, futuro Sistema de Saúde Comunitária – Unidade Sanitária Murialdo, a elevação do nível de Saúde da população da área, oposto à idéia primitiva de que deveria servir ao tratamento das pessoas já doentes. A partir deste objetivo principal e filosófica e cientificamente bem definido, criaram-se grupos de trabalho com tarefas definidas para que pudéssemos alcançar o objetivo geral. Estes compreendiam que se reorganizasse a área de abrangência, subdividindo-a em cinco subáreas, servidas por cinco equipes inicialmente multiprofissionais, denominadas de Equipes Primárias de Saúde, isto é, Equipes dedicadas aos Cuidados Básicos de Saúde. Também era necessário que se modificassem os serviços especializados no Centro de Saúde, para servirem de apoio e retaguarda aos locais de Cuidados Primários, e que houvesse um deslocamento gradativo das Equipes Primárias, concentradas de início no Centro de Saúde, para o coração de cada uma das subáreas, à medida que fossem construídos ou alugados locais adequados para abrigar o que denominamos então um Posto de Saúde, atualmente Unidades Básicas de Saúde. Objetivos de desenvolvimento de Assistência a Prioridades, com técnicas de alta eficiência e eficácia, e de boa prática assistencial, por meio do desenvolvimento do Ensino e da Pesquisa mais avançada para o que na época denominávamos Cuidados Primários de Saúde (hoje Cuidados Básicos de Saúde), para problemas Prioritários, assim definidos por serem Prevalentes, Preocuparem a Comunidade, Importantes Médico Socialmente e para os quais existem Tratamentos Resolutivos. Objetivos de Assistência com tal definição, elevaram também o desenvolvimento de Ensino e Pesquisa consentâneos com as propostas do projeto. Todos os programas de Ensino existentes e propostos, a iniciar pelos Estágios com alunos de Graduação de Escolas Médicas de outras Ciências, da Saúde, Sociais e Humanas, e outras direta ou indiretamente envolvidas com a Saúde da Comunidade, passaram a ser integrados e consequentemente, Multiprofissionais e Interdisciplinares, e o que é mais importante, nenhum ensino que não ficasse integrado a uma Prestação de Serviços que objetivasse a elevação do nível de Saúde da População. O objetivo de uma Organização Escalonar dos Serviços de Saúde atingiu plenamente a busca de prover Autocuidados e Assistência Domiciliar, na qual a unidade de atendimento era o Domicílio do Paciente ou os locais de encontro dos Grupos Sociais dentro das Comunidades; a busca de Cuidados Primários, realizados por Equipes Primárias nos Postos de Saúde, hoje conhecidos como Unidades Básicas de Saúde também foi atingido. A busca de Cuidados Especializados Básicos, passou a ser realizada no Centro de Saúde existente, o qual concentrava também a Chefia do Sistema e suas Coordenações, a de Assistência, Ensino, Pesquisa e Administração, bem como atividades de Ensino e Pesquisa. Estas exigiam espaços maiores para serem desenvolvidas, uma vez que abarcavam o ensino e a pesquisa no que lhes competia e que se faziam desde os domicílios até os Postos de Saúde quando não em outros locais de assistência, inclusive hospitalares, para onde eram transferidos alguns casos de alta complexidade mas não deixando de formalizar a referência e a contra-referência dos clientes que passavam de um local para o outro, já não mais de uma forma anônima. Um Prontuário de Família orientado para a Resolução de Problemas foi desenvolvido acompanhando a Família aos Serviços de Saúde mais complexos quando havia necessidade de Consultoria em locais de maior complexidade, referenciais para os Postos de Saúde e Centro de Saúde do Sistema que se criava. Para nos tornarmos mais específicos, devemos referir que para o Projeto foram estabelecidos 11 objetivos, que podemos antecipar terem sido atingidos como o pretendia o Projeto de forma completa ou muito próxima do completo: 1) Organizar cinco Equipes Primárias cada uma delas composta por dois Médicos de Comunidade, quatro Auxiliares de Saúde de tempo integral e número variável de Voluntários de Saúde (Pessoas da Comunidade treinadas em Serviço); 2) Delimitar cinco áreas geográficas a serem servidas por uma Equipe Primária com População de cerca de 5 a 6 mil habitantes, ou seja, 1200 famílias 3) Transferir as Equipes Primárias para então assim chamados Postos Avançados no interior de cada uma das cinco áreas; 4) Promover a interação das Equipes Primárias com os seus vizinhos através de Visitação Domiciliar, participação em Reuniões Comunitárias e levantamento das necessidades e dos recursos da área; 5) Modificar os objetivos dos Serviços Especializados do Centro Médico Social integrando algumas das funções dos mesmos às das Equipes Primárias, evitando o atendimento direto dos pacientes pelas Equipes Especializadas; iniciar a assessoria técnica e o treinamento pelas Equipes Especializadas para as Equipes Primárias; 6) Reorganizar administrativamente o Centro Médico Social para se adequar à nova filosofia de trabalho: delegação da autoridade, do processo decisório, do controle e implementação do sistema e da avaliação; 7) Estabelecer um Sistema de Treinamento em Serviço através da organização de um Estágio de Treinamento Unificado permanente e global para as Equipes Primárias e para as Equipes Especializadas, baseado na Avaliação do Desempenho das mesmas e na Solução dos Problemas de Saúde considerados Prioritários para aquelas populações da área de abrangência das mesmas; 8) Organizar um Estágio de Treinamento Unificado para estudantes de Cursos Universitários de Graduação nas áreas da Saúde e afins às mesmas, baseado no Treinamento em Serviço, aproximando os diversos Profissionais da Saúde e das áreas afins já nos seus anos de Graduação, para facilitar sua convivência e seu trabalho grupal, procurando também diminuir as distâncias entre os Professores, os Alunos e os Clientes (pessoas, famílias e grupos sociais residentes nas áreas de abrangência dos Postos Avançados de Saúde; 9) Desenvolver um Programa de Residência em Saúde Comunitária principalmente para Profissionais da Saúde em geral com ênfase nos Médicos no momento em que se reforçava no País a formação especializada Senso Lato pelo Sistema de Residência para os Médicos, sem desconsiderar o treinamento dos demais profissionais da Saúde e de áreas afins de receber um treinamento especializado em Saúde Comunitária (da Família e da Comunidade), abrindo as portas, pela primeira vez no País a um Curso com a mesma orientação, desenvolvimento e capacitação para Enfermeiros, Assistentes Sociais, Psicólogos, Fisioterapeutas, Nutricionistas e o que poderia ser resumido com a expressão “Profissionais de áreas afins na Organização da Assistência à Saúde); 10) Promover a realização e divulgar Estudos e Pesquisas sobre a realidade Médico Social da área de atendimento do Sistema; 11) Promover o estabelecimento de um Hospital Comunitário, como retaguarda aos Postos de Saúde e ao Centro de Saúde. Embora Hospitais de referência tivessem sido identificados para o encaminhamento daqueles pacientes necessitados de cuidados mais complexos, permaneceu apenas como Projeto escrito o Objetivo que propunha o desenvolvimento de um Hospital Comunitário, o que só poderia ocorrer quando o Sistema atingisse uma área de maior abrangência. Isso veio a ocorrer nos tempos atuais, estabelecendo as Unidades Básicas de Saúde como vanguardas dos Centros de Saúde e do Sistema Hospitalar como um Projeto Nacional, que é o marco referencial do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), que está desenvolvendo-se no País há 20 anos. Um Hospital Comunitário não seria possível à época, sendo os casos mais complexos gradativamente transferidos para o Sistema Hospitalar existente, como até hoje ainda ocorre, na retaguarda da maioria das Unidades Básicas de Saúde. A Unidade Sanitária Escola Murialdo antecipou-se em cerca de quatro anos à Conferência de Alma-Ata e em cerca de 15 anos à criação do Sistema Unificado de Saúde (SUS) do Brasil. Este só ocorreu muitos anos após, para a organização e consolidação do qual muitos modelos como o que tentamos instalar na Unidade Sanitária Murialdo foram e deverão utilizados, como espaços Modelo de Assistência, Ensino, Pesquisa e Administração necessários para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do SUS brasileiro que todos desejamos. Foi, pois, naquele local que se instalaram, a partir de abril de 1974, os primeiros Postos Avançados de Saúde, hoje conhecidos como as cinco primeiras Unidades Básicas de Saúde de nosso País. Como já o referimos, cada um desses postos estava encarregado de um quinto da população da área – dividida em setores geográficos, mas com alguma afinidade sócio cultural maior –, sempre vendo os indivíduos dentro do seu contexto familiar e social. Como era objetivo do Projeto do Sistema de Saúde Comunitária (9), naquele local foi desenvolvida, instalada e, por que não dizer, criada a primeira Residência em Medicina Geral Comunitária, cujo Registro Oficial foi solicitado à Comissão Nacional de Residência Médica do Ministério da Educação, no ano de 1976, onde tramitou até seu Registro Oficial. Junto a essa Residência Médica corria em paralelo um Curso de Especialização multiprofissional para Enfermeiros, Assistentes Sociais, Psicólogos, Farmacêuticos, Bioquímicos, Nutricionistas, Fisioterapeutas, Veterinários e Administradores de Empresas. A formação pós-graduada Lato Senso multiprofissional, similar à Residência, não era prevista àquela época, quando a instituição “Residência” era somente médica, e o Curso de Especialização para não médicos só encontrou seu amparo e formato legal e oficial dentro da Escola de Saúde Pública da Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, como forma de legitimar uma Especialização para os Profissionais da Saúde, não Médicos: Enfermeiros, Assistentes Sociais, Psicólogos, Terapeutas Ocupacionais, Fisioterapeutas, Professores de Educação Física, Farmacêuticos, Veterinários e Administradores de Empresa. A residência tomou à época o nome de Residência em Medicina Geral Comunitária, adequado àqueles tempos de luta pela democratização do País. Graças a ela e aos novos especialistas pós-graduados, surgiram a Sociedade Brasileira e as Sociedades Estaduais de Medicina Geral Comunitária. As diretorias da Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária e da Sociedade de Medicina de Família, que surgiram quando a Nação resolveu reestruturar o SUS, criando os serviços necessários ao desenvolvimento da Política Nacional de Saúde para Todos, vieram posteriormente dentro de uma feliz idéia, unirem-se, dando origem à Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, hoje uma das maiores Associações de Médicos da Associação Médica Brasileira. As Sociedades Estaduais, umas com o nome já atualizado de “Associação” e outras conservando ainda o nome de “Sociedade”, levaram avante a idéia que se pensava já à época do desenvolvimento do projeto do Sistema Comunitário de Saúde da Unidade Sanitária Murialdo, na qual os Serviços Básicos de Saúde que se instalavam deveriam servir não somente à Assistência da população, mas também ao Ensino, à Pesquisa e à Administração de Serviços de Saúde. O novo Sistema exigia maior espaço para a formação de pessoal capacitado, um tipo novo de profissional ou, como se denominava à época, de Recursos Humanos básicos necessários para que a Nação tivesse pessoas preparadas para a concretização do sonho de Saúde para Todos. Cabe-nos neste Seminário de Medicina de Família e Comunidade organizado pela Direção da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, atualmente sob a Direção do Prof. Dr. José Tavares Neto, referir que o mesmo à época dirigia a Comissão Nacional de Residência Médica do Ministério da Educação. A seu espírito visionário devemos o fato de ter sido prontamente entendida a nossa proposta de formação do Médico então dito Geral Comunitário, atual Médico de Família e de Comunidade, dentro do sistema oficial existente no Ministério de Educação de formação de Especialistas Médicos, a Residência Médica. Ele não só nos apoiou na abertura oficial da mesma como deu início as tratativas de oficialmente vir a CNRM do MEC, oficialmente registrar e regulamentar o funcionamento da mesma e de suas congêneres, para que a Residência viesse a ser a forma oficial de treinamento do Médico Geral Comunitário/Médico de Família e de Comunidade. Esta primeira experiência realizada em Porto Alegre, surgida dentro da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, com lideranças que pertenciam à mesma e aos Departamentos de Psiquiatria e de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, procurávamos propor e viabilizar a necessidade de formar um tipo de profissional capaz de atuar em Postos de Saúde, hoje denominados Unidades Básicas de Saúde, bem como preparar pessoal em serviço, capacitados a entender populações em seus locais de residência e mediar os atendimentos entre seus lares e os Postos, Unidades Básicas de Saúde, os Centros de Saúde e os Hospitais de retaguarda (Comunitários), até os seguimentos necessários àqueles atendimentos quando maior complexidade e resolutividade fossem necessárias ao seguimento dos Cuidados de primeira necessidade. Estes seriam prestados em nível de Domicílios, Postos/Unidades Básicas e Centros Médico Sociais/Centros de Assistência à Saúde Física, Psíquica e Social. Dávamos acabamento assim naquele local a um primeiro Modelo de estruturação de uma rede hierárquica de atendimento da saúde da população. Foi assim dada e naturalmente aceita a idéia de associar o nome da Medicina Comunitária, com a idéia maior de orientá-la ao objetivo de elevar o nível de saúde das Famílias e das Sociedades Humanas, privilegiando nominalmente as duas primeiras formas de associação dos grupos humanos: a Família e a Comunidade. Contamos para todas estas tarefas com a colaboração de uma grande Equipe, cujo trabalho de apoio e a liderança compartilhada nunca poderei deixar de reconhecer. Também nunca poderei retribuir o muito que recebi, em qualidade e em quantidade, das mais de uma centena de pessoas com as quais trabalhei entre os anos de 1968 até 1982, como Médico Psiquiatra e Profissional da Saúde Pública, principalmente nos anos em que fui do CMSocial São José do Murialdo, o Médico Chefe, 1972 a 1982. Era um respeitável grupo de muito qualificados profissionais, de nível superior, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas, dentistas, farmacêuticos, administradores de empresa; de nível auxiliar de saúde das mais variadas áreas de atuação, enfermagem, serviço social, farmácia, laboratório e profissionais de saneamento. A eles todos se agregavam profissionais graduados e em treinamento, aí incluindo os primeiros Residentes Médicos e os primeiros Profissionais não Médicos que desejavam aperfeiçoar-se em Medicina Geral Comunitária, em pós-graduação Lato Senso, Médicos e não Médicos. Também compareciam alunos de cursos de diversas graduações e de pós-graduação de várias universidades e escolas da grande Porto Alegre e todo o Estado do Rio Grande do Sul, que lá buscavam estágios especiais em Saúde da Comunidade, todos democraticamente lá aceitos, que eram instalados pioneiramente em Estágios Especiais que foram idealizados para ensinar e aprender como contribuir para a construção do campo da saúde que hoje chamamos de Medicina da Saúde da Família e da Comunidade. Esta demanda de ensino obrigou o grupo dirigente a criar uma extremamente forte Coordenação de Ensino além da Coordenação Administrativa Geral e a fortíssima Coordenação da Assistência e uma tímida mas bem intencionada Coordenação da Pesquisa. Desnecessário será ressaltar que a opção por criar um Sistema de Saúde Comunitário implicava em criar uma Administração, um Ensino e uma Pesquisa afim e consentânea com os objetivos do Sistema. Era uma verdadeira peregrinação para novos rumos em direção à construção de uma sistemática de trabalho dirigida à concretização de uma política de Saúde para Todos. Foi necessário abrir as portas do sistema para a população da área, bem como acolhê-la, não só como usuária, mas como participante desse sistema. O nosso modelo de Sistema de Saúde Comunitária recebeu os membros da comunidade para ouvi-los e treiná-los como Trabalhadores da Saúde, na condição de Voluntários. Estes eram escolhidos pelos grupos populacionais da comunidade dentre as pessoas por ela conhecidas e respeitadas e que se dispunham dar parte de seu tempo de lazer ou de descanso para o desempenho de tarefas de saúde, fossem elas no campo físico, psicológico ou social. Para o grupo dos que procuravam participar dos cuidados mais diretamente ligados à Saúde e para os que trabalhavam em atividades de agregação social para a busca de solução de problemas coletivos das comunidades envolvidas, como os problemas de saneamento básico, era oferecido um Curso de Treinamento de Voluntários de Saúde, que corria regularmente todos os anos, por vários meses, em horários extraordinários, para poder acolher pessoas da população com trabalho regular em outros locais. Destaco a criatividade da Enfermeira Dinalva Scaravaglione, não deixando também de reconhecer o esforço da Enfermeira Noely Ângelo e do Chefe da Oficina de Saneamento Paulino Vaz no desenvolvimento desse tipo de Treinamento. Estas atividades de Ensino ficaram denominadas como Treinamento de Voluntários da Saúde e Treinamento de Auxiliares de Saúde, para cuja consolidação os colegas acima citados foram extremamente criativos e competentes. Para as pessoas que vinham dos campos já tradicionais da área da saúde, bem como para os que vinham das áreas das Ciências Sociais, da Educação e da Cultura, e que desejavam ter conhecimento do que se trabalhava em um Sistema de Saúde Comunitária, era programada uma forma de treinamento em serviço ou de atividade participativa no desenvolvimento do modelo de sistema, em um estágio similar ou conjunto ao já referido Estágio Integrado, com algumas atividades próprias das áreas das quais provinham os candidatos a Estágio e ao qual denominamos por nossa Coordenação de Ensino, de Estágio de Familiarização. Assim, foi se consolidando o Sistema de Saúde Comunitária da Unidade Sanitária Murialdo, sempre pensando na abertura do Campo da Saúde, primeiramente à população da sua área de abrangência e, posteriormente, para todos que viessem em busca de uma informação ou de uma formação convencional dentro do sistema inovador que se desenvolvia, enfim, para todos que dessem guarida à idéia de que todo o sistema de saúde deveria ter como objeto fundamental à elevação do nível de saúde da população. É certo que uma organização pioneira na busca de uma nova forma de prestação de serviços de saúde e de administração dos mesmos teria que se estruturar como um local de Ensino ou Treinamento de Pessoal e de Pesquisa, irmã natural do Ensino. Tínhamos consciência de que a construção e a administração de uma nova forma de assistência exigiriam um ensino e uma pesquisa extremamente fortes, partes integrantes do serviço e só passíveis de serem assimilados se realizados dentro de uma experiência que aliasse, ao Ensino “teórico”, a prática daquilo que se projetava transmitir. A busca da organização de um sistema e de uma formação de pessoal que projetasse e proporcionasse às populações uma Saúde para Todos, viessem esses profissionais das Ciências Humanas, das Ciências Sociais e das Ciências da Administração, era bem vinda. Um número incontável de pessoas veio ajudar na construção do Sistema de Saúde Comunitária da Unidade Sanitária Murialdo. Certamente, nós “tivemos muitos colegas, irmãos, amigos, que de tantos não podemos mais contar”. Porém, representando a todos, lembro Isaac Lewin, que prematuramente perdemos, Sérgio Pacheco Ruschel, Patrícia Bradley e Lynda Hirata Ellingson (estas, Voluntárias do Peace Corps, dos Estados Unidos), Jorge Carbajal (do Instituto de Antropologia do Peru, assessor da OPAS), que nos ajudaram na construção e na realização do Projeto e o já então Médico de Família Sênior, Carlos Grossman, este já também agraciado pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que, com outros nomes já incidentalmente citados neste longo discurso inaugural. Eles brilhantemente representam os “incontáveis” trabalhadores da saúde, profissionais ou voluntários que desenvolviam atividades na época no Centro Médico Social São José do Murialdo – Unidade Sanitária Escola Murialdo. Fundamental para o desenvolvimento dos Cuidados Primários da Saúde, hoje Atenção Básica à Saúde, foi a consecução do objetivo que previa um Programa Geral de Residência em Saúde Comunitária e um Programa Especial de Residência em Medicina Geral Comunitária; era a introdução do Médico de Família e de Comunidade na História da Medicina do Brasil. Destaco a Cooperativa Tritícola de Ijuí (COTRIJUI) e o Serviço Social da Indústria (SESI) que, cada um por dois anos, ao longo de quatro anos, repassaram à Secretaria da Saúde – RS, um montante necessário para o pagamento das Bolsas dos Residentes. Carlos Grossman negociou com a Presidência da COTRIJUÍ, e eu mesmo, com o então Diretor do SESI, Dr. Luiz Octavio Vieira aqueles financiamentos que no momento, não poderiam ser providos pelo Estado. É nosso dever dizer-lhes que a Medicina de Família e Comunidade foi uma atividade que muito nos complementou na nossa forma de ser profissional, com obrigações e deveres de dirigir e de liderar os colegas de forma participativa. Também por ter sido uma atividade que pude levar ao mais completo acabamento possível à época, desde o Projeto à realização do mesmo, quando, no início, era quase impossível vislumbrar que, ao fim de 10 anos, o Sistema de Saúde Comunitária estaria teórica e praticamente acabado. Um Projeto Experimental, unindo Assistência, Ensino, Pesquisa e Administração, de cuja autoria fomos coordenador e também sujeito, partindo do atendimento da Demanda para o atendimento da Necessidade, dando Assistência à Saúde Física, Mental e Social de forma Integral (preventiva, curativa e reabilitadora), Continuada, Personalizada e Participativa, foi o cumprimento de um dever a que nos obrigáramos para com a nossa Profissão Médica, como nós a entendemos, ou seja, uma Ciência do Humano, e para com o nosso País, que nós o desejamos saudável Física, Psíquica e Socialmente. É certo que temíamos não poder atingir a meta de instalar uma forma de assistência à saúde, unida a um ensino, a uma pesquisa e a uma administração afins e conseqüentes ao objetivo maior, que é maior grau de Saúde Física, Mental e Social às populações da área de abrangência da Unidade Sanitária Murialdo, como um modelo experimental para o nosso Município, para o nosso Estado e para o nosso País. Mas é certo também que cumprimos com esse objetivo. Essa foi, talvez, a tarefa de maior relevância que nos coube durante toda a nossa vida médica em serviços públicos, dada a condição de indigência em que se encontrava a organização dos Serviços de Saúde em nosso País à época. Como Psiquiatra, cumprimos outras tarefas, tais como a de repensar a Psiquiatria e a Medicina como uma Ciência da Saúde do Homem, e não do combate à Doença Mental, tal como se pensava nos nossos primeiros contatos com as nossas amadas profissão (Medicina) e especialidade (Psiquiatria). Mas, naquele momento de nossa vida, o que importa foi termos participado do desenvolvimento e da aplicação prática da idéia de que a nossa Ciência deveria pensar que a Saúde, como condição de bem estar Físico, Mental e Social e não apenas como ausência de Doenças é o Objetivo de todos os Serviços de Saúde e de todos os que neles trabalham. Também esta é a idéia que está mais de acordo com o nosso sonho conscientemente quixotesco, não tão impossível, de que, um dia, chegaremos a trabalhar com a Saúde Física, Mental e Social de todos e não mais com as Doenças de poucos. No nosso sonho im-Possível as Doenças deverão ser, no futuro, extintas. Nós temos um sonho e esperamos que os Médicos do futuro estejam trabalhando na fortificação dos aspectos saudáveis do Homem, na sua cada vez maior Humanização. Cito Shakespeare, o inspirador maior de muitas coisas, principalmente da idéia que cada vez mais fortificamos em nossa mente, por ele Shakespeare claramente expressa em sua obra A Tempestade: nós, os seres humanos, somos tecidos com o mesmo tecido de que se tecem os sonhos, e nossas curtas vidas são cercadas por sonhos. Muito comovido e muito agradecido aos que nos convidaram para proferir a Conferência de Abertura deste Seminário Baiano de Medicina de Família eComunidade, na pessoa do Diretor dessa Escola, Prof. Dr. José Tavares-Neto cuja cumplicidade bem a destacamos quando referimos a criação1 da Residência em Medicina Geral Comunitária/ Medicina de Família e Comunidade, fica o sonhador que ainda sonha e que está ainda longe de concretizar ou de ver concretizados todos os seus sonhos, mas que tem consciência de que deu sua possível e bem disponível contribuição para que o sonho de Saúde paraTodos desse um passo para frente. Outros mais virão, para alcançarmos o triunfo do Humano e da Humanidade sobre o inumano, da Civilização sobre a barbárie e da Saúde sobre a doença.

Referências consultadas

1. Busnello E. Medicina, saúde pública e ensino médico. R. Méd. ATM (Porto Alegre) 5: 1-14, 1970.

2. Busnello E. Medical students face the community. Trabalho apresentado ao Curso de Behavioral Sciences da Escola de Higiene e Saúde Pública da Johns’ Hopkins University, 1972.

3. Busnello E, Lewin I. O tipo de médico que as escolas de medicina devem graduar. R. CASI. (Porto Alegre, órgão de divulgação científica do Centro Acadêmico Sarmento Leite da Faculdade de Medicina da UFRGS) 34: 11-27, 1973.

4. Busnello E, Lewin I, Ruschel S. Estudo de um caso registrado num prontuário de família orientado para a solução de problemas. R. AMRIGS (Porto Alegre) 24: 159-165, 1980.

5. Busnello E, Lewin I, Ruschel S, Bradley P. Projeto de um sistema comunitário de saúde. Porto Alegre, Centro Médico Social São José do Murialdo da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul, Outubro 1974/Abril 1975, 1975.

6. Busnello E, A Integração da Saude Mental num Sistema de Saude Comunitária. Tese destinada a habilitação a Livre-Docência em Psiquiatria junto ao Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1976.

7. Giel R, Harding TW. Psychiatric priorities in developing countries. Brit J Spychiat 128: 513-522, 1976.

8. Grossman C, Busnello E, Lewin I, Ruschel S, Bradley P. Projeto de residência em saúde comunitária. Centro Médico Social São José do Murialdo da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, Abril de 1975.

9. Lewin I. A ficha clínica e o trabalho médico: papel na assistência, educação, comunicação e avaliação. R. Méd. ATM (Porto Alegre) 10: 1-28, 1975.

10. Lewin I, Busnello E, Ruschel SP. O prontuário de família orientado para a solução de problemas. R. Ass. Méd. Brasil 25: 6-8, 1979.

11. Liz Jr E. Estudo da prevalência do alcoolismo numa vila marginal de Porto Alegre. R. Méd. ATM (Porto Alegre) 9: 407-32, 1974.

12. Newell KW. Health by the people. World Health Organization: Geneva, 1975.

13. World Health Organization. The primary health worker; working guidelines for training; guidelines for adaptation. Working Document HMD, 745: Genève, 1976.

14. World Health Organization. Psychosocial factors and health. WHO Chronicle 30: 337-39, 1976.

A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE NO BRASIL*

(*) Conferência apresentada no I Seminário Bahiano de Medicina de Família e Comunidade, de 17 a 18 de Setembro de 2009, organizado pela Escola Estadual de Saúde Pública da Secretaria de Estado da Saúde da Bahia (SESAB), com o apoio da Faculdade de Medicina da Bahia. Gazeta Médica da Bahia 2010;80:1(Jan-Abr):93-100. © 2010 Gazeta Médica da Bahia. Todos os direitos reservados.

1 Nota do Editor: Faz referência ao movimento acadêmico, de 1981- 1983, para criação do Programa de Residência Médica em Medicina Geral e Comunitária, pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM)/MEC, também descrita na Declaração de Petropólis (publicada na Revista Residência Médica, da SESu-MEC), que antecedeu em 13 anos a criação (em 1994 ) do Programa de Saúde da Família e do PRM em Medicina da Família e Comunidade. Por conta desse movimento, em 1982, vários Professores brasileiros conheceram os PRM em Medicina da Família e Comunidade desenvolvidos em alguns países da América Latina (D.O.U. de 17.11.1982, página 1.101).

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