Maio de 2022 – Vol. 27 – Nº 5
Este é o melhor texto que conheço sobre o Hospício Pedro II. Trago ao conhecimento de todos para deleite e registrarem a memória de um grande psiquiatra que entre muitas funções foi fundador e primeiro presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. Este artigo foi publicado no Jornal Brasileiro e Psiquiatria em 1965 (V14; n1-2; p 117-130). O Editor
José Leme Lopes
Na loucura como em tudo mais é preciso começar pela Grécia. As primeiras descrições de doenças mentais estão em Homero. Não se esqueça, porém, a Bíblia, pois aí se encontra excelente narração de estados psíquicos anormais. Em templos, recolhia, os sacerdotes gregos os doentes da mente; faziam-nos dormir na casa sagrada e, no outro dia, como psicanalistas, sem divã e sem Freud, interpretavam-lhes os sonhos e uma cura balsâmica tinha curso. Psicoterapia de boa qualidade sob o céu azul e nos pórticos de colunas estilizadas. Hipócrates, o maior dos Asclepíades, viu certo de que do cérebro partem as desregulações que levam os homens aos desmandos do delírio. Precedeu Griesinger de cerca de vinte e quatro séculos. Até certo ponto, Cícero pode ser apontado como pai da psiquiatria, pois mostrou poder ocorrer melancolia em seguida às emoções dolorosas. A loucura como fenômeno humano, como uma das fronteiras do homem, sempre teria de interessar, preocupar e ocupar filósofos, médicos, governantes e artistas. É ecumênica e permanente, uma constante da história. Não poderia e não deveria faltar sua crônica nesta série de comemorações quatricentenárias. A reunião de doidos e seus próximos parentes, os deficientes mentais e as personalidades anormais com conduta fortemente desviada, em estabelecimentos fechados de asilo e tratamento, é, contudo, um acontecimento de origem relativamente recente. A perseguição pelas Euríneas ou a possessão pelo demônio indicavam antes a intervenção sacerdotal que a sanitária ou administrativa. Não era só em “Itaguaí”, como nos conta o seu famoso cronista Joaquim Maria Machado de Assis, que uma ideia de meter os loucos numa mesma casa, vivendo em comum, “pareceria em si mesma um sintoma de demência”. Henry nos informa que em 319, Bizâncio abriu hospitais para os doentes mentais. Certo é que no século XV, em Saragossa de Espanha, um hospício usava a praxiterapia que Pinel viria a gabar, trezentos e tantos anos mais tarde, e apontá-lo como modelo. São João de Deus precedeu os repórteres sensacionalistas de nossos dias, ao fingir-se de louco e partir como um precursor de Beers, a fundar uma congregação de padres destinadas a tratar dos insanos da mente. Não sabemos que reflexos teriam aqui produzido a obra do Santo espanhol, mas não é difícil acreditar que bem precisada era a Colônia de uma tal ajuda. A qualidade da imigração nos primeiros anos da nossa existência, faz pensar que as personalidades desviadas não seriam raras por estas terras. É o que faz pensar as laudas da Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Há nelas uma mistura picante de Krafft-Ebing e Henry Miller. Muitos desses tipos eram tolerados na sociedade de então e nela encontravam atividades profissionais, condizentes com seus desvios instintivos e de personalidade, em atividades, àquele tempo honesto, como a de caçador de negro fugido ou agente em casas correcionais de escravos faltosos. Os loucos, propriamente ditos, eram colocados nas cadeias, com vagabundos, criminosos ou indiciados. Essa promiscuidade de nenhum modo foi privativa da Colônia, do Vice-Reinado ou do Primeiro Império. Era universal. Contra ela é que se gravou o artigo 24 da Lei Francesa de 1838, que foi e continua a ser a matriz de toda a legislação sobre alienados. É bom repeti-la “Em caso algum, os alienados poderão ser misturados com condenados ou indiciados, nem depositados numa prisão”. Na Regência a situação nesta cidade, quanto ao cuidado e assistência aos doentes mentais, não era das melhores. A Santa Casa de Misericórdia, enquanto erguia seu hospital, que em 1880 mereceria do visitante e cirurgião francês J.R. Fort o elogio de um dos mais belos do mundo… Permitam-me a interrupção. Em 1922, era ainda um dos mais belos do mundo. Que saudades da Praia de Santa Luzia, com o mar ali tão pero; da sombra acolhedora das vetustas figueiras, que a brisa da barra tornava mais gostosa; das primeiras entradas no pórtico do granito, que conduzia ao lindo átrio, pavimentado de mármore, sem o atulhamento que o hoje o desfigura. A Santa Casa, contínuo agora, era obrigado a guardar em suas enfermarias os doentes mentais ou trancafiá-los quando agitados em seus porões. Experimentara colocar algumas mulheres num pavilhão anexo à lavanderia geral, que construíra na Chácara do Vigário Geral, do Caminho das Fortalezas da Praia Vermelha. Parecera vantajosa a experiência a José Clemente Pereira, que julgava inadequado, mais do que isso injusto e impróprio, o sistema de reclusão, a que era obrigada a Santa Casa, tornando difícil e mesmo impossível à cura de uma mente enferma. Chegara até aqui, com um certo atraso, o sopro renovador, que sob a influência das medicinas da filosofia das luzes, seguido pelo da medicina do romantismo, se concretizara na doutrina famosa do tratamento moral, no fim do séc. XVIII. Dois exemplos dessa transformação: Conolly abre York Retreat e Philipe Pinel, em Bicêtre, desliga as cadeias, com que se imobilizavam os doentes mentais. No Brasil e no Rio de Janeiro foi esse movimento renovador e caritativo que levou o Conselho do Império a sugerir, entre outras medidas, que celebrizassem a maioridade do Imperador, a construção do Hospício Pedro II. Página 1 Não se pode incluir nessa decisão, como querem alguns intérpretes da história da psiquiatria, como índice de uma intolerância da sociedade, em transformação pela revolução industrial, em face do alienado. Nos países hoje ditos desenvolvidos e que haviam mecanizado àquela época sua produção de bens de consumo, houve na verdade uma tendência a construir grandes hospitais, fora do perímetro urbano, para recolher os doentes mentais, cujo número crescia, especialmente em virtude de uma nova doença de massa, o alcoolismo. Éramos ainda uma economia primitiva, baseada no trabalho escrava, a corte era uma medíocre cidade de população rala. O Hospício nasceu do coração, não por ditames do coração, não por ditames sócioseconômicos. O Decreto de 82, de 18 de agosto de 1841, dizia: “Hei por bem fundar um hospital destinado privativamente para o tratamento de alienados, com a denominação de Hospício Pedro II. A iniciativa é governamental em sua origem, emana da Coroa e deverá permanecer como estípula o documento princeps “debaixo de minha imperial proteção”, embora seja prevista sua anexação ao “Hospital da Santa Casa de Misericórdia desta Corte”. Vendera a ideia da fundação, José Clemente pereira, que forrava as funções de Ministro de Estado com as de Provedor da pia constituição. Num só edifício se reuniam dois e provavelmente mais proveitos, a celebração do regime imperial na plenitude do soberano e o esvaziamento dos porões da Misericórdia. Para dar corpo à iniciativa precisos eram terrenos, risco, construção e recursos. Comecemos pelo terreno. Quem se quiser deliciar com as gravuras, que ilustram os livros de viagem, e mais tarde com as fotografias, que as substituírem na fidelidade, diminuída, porém a poesia das aquarelas, poderá facilmente verificar que a orla da baía de Botafogo, na proximidade da Praia Vermelha e do Pão de Açúcar, era o lugar ideal para um grande hospital psiquiátrico e, como logo depois se pensou, por volta de 1880, para uma grande universidade. Hoje sua praia a da Saudade desapareceu e um cais privativo guarda os barcos de prazer dos privilegiados, que não se contentaram em mudar a fisionomia local suave e terna Praia da Saudade com as grandes construções de garages, mas levaram o esmero a plantarem as águas sofisticadas de uma piscina, entre palmeiras havaianas. Ainda me recordo do mar, do outro lado da avenida, em toda a frente do Hospício, com as suas águas calmas, só de leve movidas, e de um certo cheiro marítimo, que não se sente mais. E neste vasto campo, cujo subsolo revela sua origem marinha, ocupado por chácaras e quintais, alguns de propriedade de gente estrangeira de arrevesado nome, que se escolheu o local do Hospício. Segundo José Carlos Teixeira Brandão, o primeiro professor brasileiro de psiquiatria, em resposta à intervenção no Senado republicano de Leite e Oiticica, a 9 de novembro de 1894, a área do Hospício Pedro II resultou da integração de dez frações de terrenos. Resumo dos dados recolhidos por Teixeira Brandão. 1)Escritura das casas e benfeitorias de Isabel Cochrane Birne; 2) sentença de adjudicação das benfeitorias do terreno e casa de D. Teodora da Silva de 1 de abril de 1842; 3) idem de benfeitorias da chácara de Maria Luiza da Silveira, em 19 de agosto de 1842; 4) translado de compra de dois terrenos com suas benfeitorias de Hugh Hutton e sua mulher; 5) chácara dos Expostos vendida e transpassada à administração do Hospício Pedro II; 6) chácara da Capela de D. Jacinta Rosa de Castro; 7) trinta e duas braças de terras de terra sitas na Estrada da Fortaleza da Praia Vermelha de Luís Carlos de Souza e sua mulher; 8)terça parte de uma casa e benfeitorias da chácara da Azinhaga de Antônio marques Lameira e sua mulher e 10) pequena chácara da rua de Copacabana de D. Norberta do Espírito Santo. Desculpem os ouvintes esta longa relação. Pensei em não a incluir. Mesmo em cartório, quando temos interesses pessoais, essas descrições são maçadoras. Mas é preciso ficar bem claro que o terreno do Hospício foi adquirido para fim específico, que sua incorporação, como hoje se diz, resultou de iniciativas sucessivas, coordenadas para prover à instituição a ser construída ao solo adequado e mais ainda que isso decorreu da iniciativa imperial, para se ter presente que essa gleba privilegiada da cidade constitui, desde sua integração, num todo, patrimônio nacional. Na polêmica que sustentou na imprensa e em seu livro, o professor Teixeira Brandão deixou claro que, em momento algum, o Hospício Pedro II era parte da Santa Casa da Misericórdia. Apenas um dado esclarecedor: durante a construção do edifício, a Mesa da instituição da Praia de Santa Luzia cobrava a pedra de alvenaria e cantaria, fornecidas pela pedreira do Hospital Geral e as notas mensais foram, em 1846 e 1847, respectivamente de 1:000$000 e 1:500$000. Escolhido o terreno, era preciso um plano para a obra, O risco foi calçado, nos informa Pedro Calmon, o historiador do Segundo Império, no hospital criado pelos padres de São João de Deus, na vizinhança de Paris, que laicizado pela Revolução Francesa, passou a chamar-se Maison Nationale de Charênton, onde desde 1931 pontifica Henri Baruk e é, no presente, um dos focos de maior atividade psiquiátrica na França. A planta básica é de Domingos Monteiro: um grande retângulo, enquadrando quatro grandes pátios internos, separados por um corpo central da construção, a de certo modo distanciar as alas masculinas e femininas do asilo. No bloco central estava a entrada única. Três grandes portas conduziam “às salas de respeito”, para usar a terminologia do cronista de “O mundo Ilustrado”, em 1858. Página 2 Nesse corpo central, havia como foi dito, no andar superior, a Capela e sob ela, no interior, a farmácia. Não sei se foi parte do plano do diretor do projeto colocar no centro do hospital seus órgãos curativos; o espiritual no plano mais elevado, sobre o material, como a indicar que naquela casa se deveriam partir as demais atividades, a ele subordinadas. Não se conhecem com segurança as variações pela qual passou o risco primitivo. Parece que a Joaquim Candido Guillobel se deve haver sido quebrada a monotonia de mármore das três sacadas centrais superiores, sobrepostas às três de um lado e outro do frontão neoclássico, se sucedem vinte janelas, terminadas em arco, dispostas em grupo, a partir do centro, de sete, três, sete e três, delimitado cada grupo por cantaria descoberta, em alinhamento que ascende até o teto. O telhado é disfarçado por uma platibanda, arrematada por estátuas de louças e grandes vasos ornamentais, que emprestam uma feição neoclássica ao grande casarão. É na verdade o pórtico de granito, com as suas quatros colunas de pedra nobre, dóricas no primeiro pavimento, jônicas no segundo, ao alto tímpano reto, onde estavam enquadradas as armas imperiais, que dá ao exterior do edifício e sua beleza sóbria e o coloca entre os quatros principais exemplares de arquitetura imperial do Rio de Janeiro. No interior o ponto alto é a escadaria, que parece ter sido idealizada por José Maria Jacinto Rabelo, o mesmo que resolvera o problema fundamental da canalização da água, um problema que tem sido nesta cidade pelo menos um centenário. Cabe ainda realçar a elegância da Capela, que compõe, com a escadaria e o conjunto de salas nobres do andar superior, um conjunto harmônico e de grande dignidade. Os corredores, revestidos de lindos azulejos azul e branco têm uma perspectiva profunda e circundam os pátios, que arejam, refrescam e alegram a construção. No entanto, quantas mudanças tem sofrido esse mesmo quadro. Da ufania da inauguração à decadência da primeira fase republicana, da restauração no governo Rodrigues Alves ao abandono do Estado Novo, das ruínas sem destino certo ao renascimento como palácio universitário, as galerias e as salas do Hospício Pedro II contam um século de história na cidade. Na euforia da instalação do asilo, não foram poupadas medidas para seu embelezamento. Ao alemão Pettrich encomendaram-se sete estátuas de mármore de Carrara: a da Ciência, a da Caridade, a do Imperador com a parafernália da sagração, a de José Clemente Pereira com o balandrau e a vara do provedor, a de São Pedro de Alcântara, padroeiro do Império, do país e da capela central, e as de Pinel e de Esquirol, os mestres da psiquiatria francesa, que seria durante todo o século XIX a inspiradora da incipiente medicina do espírito no Brasil. As más línguas disseram desde logo que a Ciência e a caridade não haviam entrado no Hospício, pois que suas estátuas foram colocadas fora dos muros ao Aldo dos degraus do pórtico granítico. Pinel e Esquirol ficaram no saguão de entrada, a se entreolharem, sobre um belo piso com a sua rosácea de mármore colorido. Guardavam a entrada das duas seções principais, que levavam também seus nomes. A gíria psiquiátrica, em que me formei, as designava a Pinel, a seção dos homens, e a Esquirol a das mulheres. Com a saída definitiva dos doentes em 1944, também se foram dali as estátuas dos grandes mestres da psiquiatria. Esquirol está hoje na Colônia Juliano Moreira e Pinel postado à frente do Instituto de Psiquiatria Adauto Botelho, no Engenho de Dentro. Não nego que estejam em bom lugar, mas em qualquer país de tradição elas teriam voltado aos seus sítios de origem, para continuarem a ensinar às atuais e novas gerações as lições, que seus trabalhos e suas vidas ditaram, e relembram que ali nascera a psiquiatria brasileira sob inspiração dos grandes clínicos gauleses. Ainda mais testemunhariam, na sua plácida permanência, a mudança fundamental da casa de Orates em templo de Minerva. Não é fácil recompor o quadro do primitivo Hospício, tal como começou a funcionar em 8 de dezembro de 1852, quando havia hospitalizados 144 pacientes, sob os cuidados dos Drs. José Antônio Pereira das Neves e Lallemont. Certamente, naquele momento, era dos melhores hospitais psiquiátricos do mundo. Havia grades, celas de isolamento, quartos fortes, mas existia um esboço de tratamento ocupacional com instrumentos de música, oficinas para trabalhos manuais e, sobretudo espaço, claridade e pátios arborizados. Ainda hoje aí se erguem as moráceas e leguminosas, que Glaziou estabelecera como as plantas fundamentais para seus parques e jardins cariocas. Não seria apenas o valor estético do recorte de suas copas e do desenho de suas folhas, que levou o grande paisagista a preferir o Fícus brasiliensis, o tamarindeiro e árvore de frutapão no campo da Aclamação e na quinta de São Cristóvão. Um papel funcional cabia-lhe desempenhar, o de produção de grandes sombras tão preciosas no verão guanabarino. Num pátio de hospício, duplicava seu valor. Cabe agora indagar o custo da obra. O numerário foi conseguido paulatinamente. As primeiras parcelas provieram de uma subscrição agenciada pela comissão da praça do comércio, que rendera 6.500$000 e de uma entrega do provedor da Santa Casa, no montante de 2:560$000. Em 26 de janeiro de 1844, José Clemente Pereira (podia comunicar à Mesa da sua instituição que o Imperador mandará juntar 67:755$800, dinheiro apurado por uma subscrição feita por ocasião de seu casamento). Até 19 de julho de 1850, incluídos os lucros de duas loterias, concedidas pela assembleia provincial do Rio de Janeiro, as doações montavam a 567:044$213. Teixeira Brandão nos informa que até 1882 haviam sido gastos Página 3 na edificação do asilo 2.672.424$689. Muito se falou em certa época no imposto da vaidade, que aos donativos generosos traziam a recompensa de títulos nobiliárquicos, mas Pedro Calmon nos ensina que foi “a generosidade anônima” que “deu apoio substancial à obra”. Iniciada a construção em 2 de novembro de 1842, a inauguração se fez a 30 de novembro de 1852. Houve pontifical, e banquete, com a presença de suas majestades imperiais, segundo rezam as folhas então. Passaram-se os primeiros tempos e, com o decorrer dos anos, aumentaram os hóspedes do Hospício. A população crescia. A atração da Corte sucedera o fascínio e mesmo a drenagem da Capital Federal, ainda virgem de barracos e biroscas. Certo não havia na área dependente do Rio de Janeiro, qualquer outra instituição que cuidasse dos doentes mentais. Teixeira Brandão reclamava e exigia que o estado do Rio de Janeiro e o de Minas Gerais pagassem ao Tesouro Nacional na proporção dos doentes internados, vindo daquelas unidades da federação. Só mais tarde para remédio da superlotação vieram as colônias, quando havia mais doentes no chão, sem uma simples enxerga, que nos leitos. É ainda Teixeira Brandão quem nos dá conta das dificuldades advindas na República com a laicização do Hospício. O decreto 162 A de 11 de janeiro de 1980, inspirado pelo Ministro Aristides Lobo, determinava a desanexação do Hospício e suas colônias, bem como a reversão do patrimônio a ele pertencente. Saíram as irmãs de Caridade e as suas agregadas, que exerciam grande parte dos serviços de administração e enfermagem. Uma crise gigantesca surgia que só viria a ser solucionada alguns anos após, quando J.J. Seabra chama, aconselhado por Afrânio Peixoto, um professor substituto da Faculdade de Medicina da Bahia de Alienados e reformar a assistência aos doentes mentais, com a criação da primeira lei brasileira relativa a esse magno problema. Juliano Moreira foi o reformador do velho Hospício Pedro II, velho não pelo tempo decorrido desde sua fundação, mas pelo desgaste, pela incúria, e pela ausência de padrões científicos e étnicos na sua direção. Já tive a ocasião de estudar pormenorizadamente a personalidade e a obra do patrono da psiquiatria brasileira, em outra oportunidade. Agora pedirei a Maurício de Medeiros que nos descreva o hospital, em que iniciou como interno, 1m 1904, sua carreira psiquiátrica. Juliano estava ausente, no momento, na Europa, e era seu insigne colaborador Afrânio Peixoto, quem dirigia a casa. “Minha impressão foi de deslumbramento diz Medeiros. O edifício estava admiravelmente conservado. Havia como nota dominante a preocupação de eliminar do Hospital o aspecto de prisão. Todas as grades haviam sido retiradas. “Interrompo a descrição para dizer que talvez na exaltação do recordar o tempo feliz de sua mocidade tenha Medeiros exagerado. Grades havia na década de 20, quando frequentei o Hospício, não só na fachada externa, mas também nas janelas do pavimento superior e nos quartos de segurança, onde ainda em 1943 Carrilho me levou para ver um raivoso. Continuo com Medeiros: “Os quartos fortes transformados em quartos de isolamento. Nas enfermarias havia jarros de flores que se substituíam todos os dias. Salões de leitura e jogos para doentes. Pátios de recreação. Várias oficinas de trabalho para os doentes”. De preferência a esses parâmetros extrínsecos, convém frisar que Juliano Moreira aí firmara o primado da ciência, apoiado na grande revolução que a obra de Kraepelin introduzira em face das concepções mais empíricas da psiquiatria anterior. Em torno de Moreira se reúne uma plêiade de jovens médicos, destes sairão mestres para a Faculdade e o primeiro grupo autêntico de psiquiatras brasileiros. No entanto, o mesmo mal que Juliano Moreira viera sanar, pletora de pacientes e míngua de recursos terapêuticos, viria levá-lo de roldão, na revisão apressada e injusta que o movimento revolucionário vitorioso de 1930 trouxe à vida administrativa do país. Era então o Hospício o famoso 70 Sul uma quase fórmula familiar de fazer calar os teimosos ou desagradáveis contraditores de nossos pontos de vista uma casa roída pela rotina, pela carência de todos os meios pessoal e material – e sobretudo, pelo excesso de doentes crônicos, que as deficientes condições sanitárias não conseguiram eliminar. Saiu Juliano num melancólico crepúsculo que não era só o seu, mas o da instituição. Ninguém foi encontrado capaz de repetir sua façanha no início do século, ninguém que tivesse a capacidade de galvanizar a psiquiatria brasileira e obter da república as providencias necessárias para revitalizar o mais belo hospital psiquiátrico do Brasil. Entre 1944, quando os doentes foram tangidos para o Engenho de Dentro, e 1948 quando se iniciaram as obras para sua recuperação, o casarão da Praia da saudade ficou vazio, suas paredes manchadas pela lepra do mal uso e do desuso, seus pisos esburacados transformados em tropelias para ratazanas, uma ruína. Apenas um homem vigilante do passado o colocara entre as instituições de valor histórico e artístico e os inimigos do Hospício não o puderam demolir. Um grande pintor brasileiro, Iberê Camargo, conseguiu em algumas de suas telas admiráveis, fixar a angústia do velho prédio abandonado e em reforma. Nelas sentimos como sofriam aquelas paredes, que fechavam o nada. E de repente a Fênix ressurgiu de suas cinzas. Era uma nova força, que surgia na vida brasileira e se impunha, a Universidade. Um Reitor tomara a si, com o amor que uma longa vida em comum com a história fomentara, a tarefa de recompor a casa, que José Clemente Pereira idealizara, o Monteiro, Guillobel e Rebello construíram e Página 4 Juliano Moreira engrandecera. Quatro anos de trabalho. Primeiro a ala esquerda. Abriu-se aí uma nova entrada. Instalou-se a Reitoria e seus órgãos. Pouco a pouco o resto de edifício foi reparado, com simplicidade, com bom gosto; com o desejo de fazer voltar ao ambiente o clima de sua época, aparelharam-se as dependências. A capela readquiriu seus dourados e o brilho de seus lustres e pingentes de cristal. No lugar, onde Agassiz assistiu ao serviço religioso vespertino, recebendo das janelas abertas a visão e a brisa da baía, hoje a sociedade se encontra para as solenidades das grandes alianças. E a vida voltou, não na agitação descontrolada dos maníacos delirantes, mas no passo firme da mocidade estudiosa, nas suas discussões acaloradas e num dos pátios há um teatro de arena. Muitos perguntarão: como se fez este milagre? A fórmula é simples: decisão, trabalho, pertinácia e amor. Principalmente uma aplicação correta das verbas orçamentárias. De 1948 a 1952, a Universidade do Brasil dispendeu nas obras de recuperação do Palácio da Praia Vermelha Cr$ 15.500.00. Os montantes vieram de suas dotações orçamentárias regulares. Não houve outras fontes de financiamento. Foi um maciço investimento patrimonial, nos moldes em que seu estatuto lhe faculta. Não era mais possível, como no tempo do provedor mágico, recorrer à vaidade dos novos ricos, pois a Universidade não distribui baronatos, nem lançar mão de loterias; consigne-se também que não recebeu qualquer doação ou benemerência de particular ou instituição. A sociedade brasileira ainda não aprendeu a ver em suas universidades organismos matrizes, que devem ser mantidos e ampliados pelos esforços da comunidade, em seu próprio proveito. No império, a munificência da Coroa de muito concorreu para a criação do Hospício Pedro II, agora na República é o Governo o único agente que funda e mantém as universidades, a quem outorgou autonomia e de quem espera, pelo bom uso dessa prerrogativa, saibam elas ensejar as condições para ampliação dessa mesma autonomia no campo econômico. Isso fez de modo alto e eficiente a Universidade do Brasil, ao recuperar o Palácio da Praia Vermelha, onde umas das bases decisivas da cultura brasileira encontrou um quadro condigno. A tradição se alia ali à evolução e dessa estrutura há de sair à reforma indispensável, para tornar a Universidade o instrumento de progresso social, que a partir da ciência e da tecnologia crias as condições para o aumento do bem-estar social. De José Clemente Pereira e Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, o Palácio da Praia Vermelha tem tido um esplendido destino. Nascido para a assistência e os cuidados dos doentes mentais, ressurgiu para centro de estudos e de formação das elites. Através da cultura mais larga e mais profunda, a mocidade encontra aí as condições para vencer as deficiências inerentes as condições históricas, políticas e econômicas. Organismo aberto para a comunidade, dela recebe seu sustento e sua matéria-prima: o seu orçamento e seus alunos, para devolver-lhe em técnicos, em cientistas, em homens maduros para a vida pública e profissional, com a reta consciência democrática; ao mesmo tempo forma e argamassa um cabedal de conhecimentos e de atitudes humanas, que dará ao homem brasileiro a grandeza, que sua terra exige. De Hospício à Universidade uma trajetória que poderá servir de lema a outras campanhas. Qualquer que seja seu futuro destino, um século de esperanças, de lutas, de passageiras derrotas e de glórias, contém a história do Edifício Rosa, onde no tímpano que encima o frontão de seu pórtico a cabeça de Minerva substituiu as armas imperiais e onde na trave superior de seu portão principal, sobre a antiga inscrição Hospício Nacional de Alienados hoje está fixado a Universidade do Brasil. Um século é uma densidade de vida, que prepara o desenrolar de novas perspectivas, onde o futuro da casa grande do caminho da Fortaleza da Praia Vermelha, terá estou certo um relevo maior. Incorporada à vida quatricentenária desta mui leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de janeiro ela é o castelo da ciência, a fábrica de brasilidade, uma arca de tradição e uma das plataformas para a decolagem do Brasil maior.
http://www.abpbrasil.org.br/historia/galeria/a_psiquiatria_e_o_velho_hospicio.pdf