Fevereiro de 2022 – Vol. 27 – Nº 2

Mogens Schou

Nota Introdutória; O professor Mogens Schou participou do IIICBP realizado em Belo Horizonte e suas conferências foram muito bem recebidas. Contatado por Márcio Versiani e João Romildo Bueno se dispôs a escrever alguns artigos sobre o objeto do seu estudo, o Lítio. O Jornal Brasileiro de Psiquiatria publicou quatro escritos dele sobre o assunto. JBP, 1975 v24n3 283-290

Vamos publicar o primeiro deles como parte de um conjunto de escritos sobre o lítio na Psychiatry online Brasil.

Lítio. Considerações clínicas

O tratamento com lítio (íons de lítio, sais de lítio) provou ser tão benéfico em certos distúrbios psiquiátricos (e, também, em alguns não psiquiátricos) que um completo conhecimento das vantagens e desvantagens deste medicamento e dos problemas práticos referentes ao seu uso, tornou-se uma necessidade para o psiquiatra que quer dar aos seus pacientes o melhor tratamento. A literatura sobre o lítio é, entretanto, muito extensa e nenhuma tentativa será feita aqui para revê-la toda. A apresentação que se segue é baseada no que o autor aprendeu de suas próprias experiências e da literatura. Para informações adicionais veja as revisões por Bueno e col.(1973), Daou e col.(1974), Gershon e Shopsin (1973), Schou (1969,1972,1974ª e 1974b, Schou e Thomsen (1974).

Informações

Durante os últimos 120 anos, sais de lítio foi administrada a pacientes de acordo com várias indicações. Muitas foram baseadas em especulações teóricas e não foram comprovadas pela evidência clínica. De fato, somente há 25 anos, quando o lítio foi introduzido na psiquiatria (Cade, 1949) foi que alcançou reconhecimento como um composto que não só possui propriedades tóxicas, mas também, quando administrado em doses corretas e sob controle adequado, efeitos terapêuticos benéficos e qualidades profiláticas.

Embora o tratamento com lítio tenha sido sugerido para grande número de condições, só duas indicações podem ser consideradas integralmente estabelecidas e documentadas por evidências seguras: o uso terapêutico na mania e o uso profilático nos distúrbios endógenos recorrentes. Entende-se por profilaxia estabelecida a capacidade de atenuar ou prevenir as recorrências da mania e da depressão. O Lítio exerce uma ação profilática significativa tanto no tipo bipolar como no monopolar, dos distúrbios afetivos recorrentes. Em registros que aparecem em outra parte (Schou, 1975), descrevi com alguns detalhes a documentação destes usos do lítio. No mesmo documento discuti outros usos psiquiátricos do lítio e alguns não psiquiátricos para os quais a segurança ainda não é estabelecida, apesar de em alguns casos até ser fortemente sugestiva. O leitor é apresentado a esta publicação para uma avaliação mais extensa das indicações propostas e provadas para o tratamento com lítio.

A ação terapêutica do lítio na mania é pronunciada, e é mais específica do que as drogas neurolépticas. Na hipomania, mania de intensidade moderada, na mania prolongada e na mania crônica, o lítio parece ser claramente o tratamento de escolha. Na mania com sintomatologia violenta, o início relativamente lento da ação terapêutica do lítio, pode requerer que o tratamento seja iniciado com a administração de um neuroléptico de ação rápida, por ex. haloperidol, dado simultaneamente com o lítio. A administração do haloperidol é então gradualmente suspensa durante a primeira semana à medida que o lítio produz efeito. Com esta combinação a tranquilização é estabelecida rapidamente, e o paciente escapa aos efeitos colaterais desagradáveis do tratamento prolongado com haloperidol.

É ainda uma questão em aberto se o lítio exerce uma ação terapêutica direta na doença depressiva. A evidência indica que a exerce em alguns pacientes, mas os antidepressivos tricíclicos, os inibidores da MAO e a Eletroconvulsoterapia parecem ainda ser os tratamentos de escolha para a depressão.

As características mais surpreendentes do tratamento com o lítio é o efeito profilático na administração prolongada, isto é, a capacidade de neutralizar novas recorrências de mania ou depressão ou ambos. Quando as informações de tal ação primeiramente surgiram, (Baastrup e Schou, 1967) a noção de profilaxia era relativamente desconhecida na psiquiatria, e alguns psiquiatras encontraram dificuldades em acreditar na veracidade deste fenômeno. O debate gerado pelas primeiras informações conduziu a um esclarecimento proveitoso dos ensaios metodológicos e conceituais e a iniciação de numerosos estudos novos, sobre a profilaxia com lítio. A evidência da ação profilática do lítio é atualmente muito significativa baseada em um grande número de estudos duplo cego e simples cego. Para qualquer paciente com freqüentes recorrências de mania ou depressão ou ambos, o tratamento de manutenção com o lítio deve ser considerado seriamente. O tratamento exerce melhor sua ação profilática nos tipos bipolar e monopolar do distúrbio afetivo endógeno, embora possa também prevenir ou melhorar as recorrências dos distúrbios esquizoafetivos. Nestes casos a combinação com a droga neuroléptica de administração prolongada pode produzir melhores resultados.

3 – Fatores temporais

O tratamento de manutenção com o lítio pode ser uma continuação do tratamento com o lítio terapeuticamente administrado na mania e hipomania. Pode também ser iniciado durante um intervalo livre de sintomas ou ainda, para alcançar um efeito profilático integral o mais rápido possível durante um episódio depressivo. Em último caso, o lítio é administrado geralmente em combinação com a terapia antidepressiva tradicional.

É importante observar que em alguns casos o efeito profilático somente é alcançado gradualmente. Episódios depressivos podem ocorrer durante os primeiros meses ou ainda no primeiro ano de tratamento, mas tornam-se menores e menos intensos gradualmente e desaparecem por completo finalmente. Os episódios devem ser tratados com a terapia antidepressiva tradicional em combinação com a administração contínua do lítio. Os pacientes devem ser avisados sobre a possibilidade de tais recorrências, assim não interromperão o tratamento com o lítio em virtude disto.

O tratamento com o lítio não “cura” distúrbios afetivos endógenos, melhora ou remove sintomas. A experiência mostra que se o tratamento de manutenção com o lítio é suspenso, episódios depressivos e maníacos reaparecem com a mesma freqüência, duração e intensidade como antes do início do tratamento. Isto ocorre mesmo quando o lítio é administrado durante anos.

Pacientes com uma história de episódios freqüentes e graves devem permanecer sob tratamento de manutenção com o lítio durante vários anos, possivelmente para o resto de suas vidas. É inconcebível que existam subgrupos de pacientes que possam interromper o lítio após um período mais curto, embora ainda não tenham sido identificados.

4 – Implicações psicológicas e sociais da profilaxia com o lítio bem sucedidas.

Quando o tratamento de manutenção com o lítio muda uma vida que era previamente dominada por manias e depressões freqüentes e graves para uma que é estável mês após mês, ano após ano, isto é um acontecimento maior com conseqüências mais profundas para os próprios pacientes e para suas famílias e conhecidos. Muitas vezes desenvolve-se em torno de um paciente com episódios afetivos freqüentes e graves um padrão psicossocial peculiar em que pacientes, a esposa, as crianças, os amigos e os companheiros, todos possuem papéis especiais, em um esforço combinado para mitigar as conseqüências da incessante mudança de humor do paciente. Isto é alterado por um tratamento de manutenção com lítio bem sucedido. As recorrências tornam-se raras e moderadas e finalmente desaparecem por completo. O paciente mais uma vez torna-se a pessoa que era antes de iniciada a doença; o medo é consequentemente substituído pela confiança no futuro e todos podem suspirar de alívio.

Entretanto, nem tudo é felicidade em todos os casos. Há paciente que sente a transformação com o lítio torna a vida mais monótona e menos colorida, “restringe” suas atividades e os impede de ir tão rápido como eles gostariam. Pacientes que tiveram lucro pessoalmente ou profissionalmente dos períodos freqüentes e longos da hipomania, antes do tratamento com o lítio podem por esta razão não gostar dos efeitos do tratamento e mesmo rejeitá-lo. Alguns homens de negócio e executivos alegam que o ímpeto e a energia hipomaníaca, é necessária para seus trabalhos e que o lítio os torna menos capacitados. Alguns artistas afirmam que a inspiração, a infatigabilidade hipomaníaca são essenciais tanto para a qualidade como para a quantidade de seus trabalhos e que o tratamento com o lítio inibe seus poderes criativos. Deve ser mencionado, entretanto, que vários pacientes que sentem falta, inicialmente, das hipomania, finalmente se acostuma ao novo estável curso de vida e descobrem com agradável espanto que sua criatividade e poder criativo continuam tão bons quanto, ou melhor, que antes de iniciado o tratamento com lítio.

Para a família e amigos do paciente uma sensação de imenso alívio é geralmente a reação predominante nos resultados bem sucedido da profilaxia com o lítio, embora algumas vezes precisem de tempo para se ajustar à nova situação. Isto é mais bem ilustrado pelo efeito do tratamento com o lítio nas relações maritais. A profilaxia bem sucedida com o lítio conduz a uma troca radical dos papéis e responsabilidades da família e a principal sofredora devido a isto pode ser a esposa, cujo papel central como apoio heróico do lar e da família é ameaçado pelo reaparecimento do paciente como uma pessoa normal. Nestes casos, a esposa pode se tornar ansiosa ou deprimida e necessitar de assistência psiquiátrica durante o período de adaptação.

5 – Alteração das recorrências durante o tratamento com o Lítio.

O tratamento de manutenção com o lítio geralmente conduz a uma atenuação das recorrências maníacas e depressivas; algumas vezes elas somente melhoraram moderadamente, com freqüência elas desaparecem por completo ou só aparecem na forma de ataques “abortivos”. Episódios que só são parcialmente abolidos podem ocorrer com a mesma freqüência que antes do tratamento com o lítio. Muitas vezes correm com menos freqüência; em alguns casos a freqüência é aumentada por um período menor ou maior.  As recorrências da mania ou depressão que surgem durante o tratamento com lítio, geralmente apresentam a mesma sintomatologia dos episódios que ocorriam antes de iniciado o tratamento com lítio; as mudanças produzidas pelo lítio são unicamente restritas à freqüência e à gravidade. Há, entretanto, exemplos onde os episódios assumem um novo caráter durante o tratamento com o lítio, apresentando um quadro “pseudoneurótico” ou exibindo um aspecto de disforia, sensibilidade aumentada, estreitamento do campo emocional, confusão, pânicos, inquietação hipomaníaca sem exaltação maníaca ou experiências transitórias de desrealização. Tais mudanças de caráter são, entretanto, principalmente, exceções do que regra. Em alguns pacientes a remoção dos episódios maníaco-depressivos pode conduzir ao aparecimento de traços paranóides e outros desvios de personalidade que previamente estiveram escondidos atrás dos sintomas dos distúrbios afetivos.

Quando os episódios maníacos depressivos são atenuados pelo tratamento de manutenção do lítio, torna-se muito mais difícil distinguir entre as mudanças do humor patológicas e as mudanças que estão dentro dos limites normais de variação do humor. Entretanto é impossível fornecer dados precisos quanto à freqüência em que os pacientes tratados com lítio estão inteiramente livres de episódios afetivos e quanto à freqüência em que tais episódios ocorrem sob uma forma moderada em intervalos longos. (A impressão do revisor, apoiada em experiência relatada por outros, é que a maioria dos pacientes tratados com lítio ocasionalmente experimenta) episódios abortivos ou “reminiscências”. Os períodos de alguns dias ou uma semana durante os quais os pacientes têm a sensação de que a mania ou a depressão pode estar a caminho sem nunca ocorrer realmente. Os pacientes em que os episódios ocorriam muito regularmente, antes do tratamento com lítio relatam algumas vezes que as “reminiscências” ocorrem no período em que os episódios poderiam estar sendo esperados.

6 – Considerações Terminológicas

Vários nomes foram dados ao efeito do tratamento prolongado com o lítio como o tratamento propriamente dito e se tem discutido se um ou outro termo descreve a ação do lítio mais precisamente.

Hartigan, 1963, primeiramente usou o termo “ação profilática” porque achou o lítio de pouco ou nenhum valor terapêutico nos episódios depressivos agudos , mas obteve resultados promissores ao usar a administração prolongada do lítio contra recorrências depressivas. Este emprego da palavra tem sido criticado ocasionalmente porque a profilaxia significa ação prolongada por uma ou algumas administrações de um procedimento particular, por exemplo, a vacinação. Definido isto minuciosamente, profilaxia não pode ser usado como tratamento prolongado com lítio que deve ser contínuo para manter o distúrbio efetivo recorrente sob controle. Profilaxia pode ser empregada no sentido mais amplo, diminuir principalmente a intensidade das recorrências do que suas frequências e esforços têm, entretanto, sido feitos para substituir a palavra “profilaxia” por um termo mais adequado; “normotimótico” ou “tratamento normalizador do Humor”, “ação estabilizadora”, tratamento compensatório” e “tratamento regulador”.Cada um destes termos tem suas vantagens, todos requerem a qualificação de que são unicamente mudanças de humor do tipo endógeno e não mudanças de humor ou funções mentais em geral que estão normalmente estabilizados, compensados ou regulados.

O termo “tratamento de manutenção” tem sido empregado frequentemente neste capítulo. Abrange a manutenção de um estado normotímico durante o tratamento com lítio em pacientes com distúrbio afetivo endógeno recorrente; significa também que o tratamento é dado de tal forma que é mantida uma concentração apropriada Le lítio no organismo. Ainda sabemos muito pouco do que o lítio faz realmente aos pacientes e sua doença assim pode ser bastante cedo para por um nome definitivo ao seu efeito. Os estudos sobre o mecanismo bioquímico de ação do lítio pode conduzir a uma visão mais profunda e a uma terminologia mais precisa.

 

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