Fevereiro de 2022 – Vol. 27 – Nº 2

 

Prezados Juberty, Walmor, William e demais “ocasionais ledores” destas mal-traçadas linhas: os congressos da ABP em 1974 e 1976 merecem uma atenção “especial” : representam o encerramento da “era acadêmica” e o início de outra era – “previdenciária???” – em nossa associação. Afinal foi nele que se decidiu sobre a necessidade ou não de uma “nova” reforma de estatuto da ABP, o que viria a ocorrer em 1977.

Reforma que foi precedida pela eleição do Zimmermann que se deu em Brasília em 1975,e que só aceitou ser “candidato”, com a condição de promover a dita cuja reforma… foi o liebestot de uma época … liebestot cuja versão wagneriana serviu de fundo musical para Melancholia do von Trier … quem não viu não sabe que hoje, na era dos super-espetáculos e block-busters,  o cinema ainda pode ser uma “arte” … e que pode nos induzir a pensar.

Ajuda é necessária, e muito.

 

 

                   III CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA – 1974

 

Um grito de estrelas

vem do infinito

e um bando de luz

repete o grito

Todas as cores e outras mais

procriam flores astrais

E um verme passeia 

na lua cheia…

(Secos e Molhados, 1974)

 

 

                                          Oh very young,  what will leave us this time

                                          You’re only dancing on this earth for a short while

                                          And though your dreams may toss and turn you now

                                          they will vanish away …

                                          ( Cat Stevens, 1974 )

 

Allegro ma non tanto – !974 foi um ano de cão : segunda crise do petróleo dos anos setenta, o barril ultrapassa os trinta dólares, definha o milagre brasileiro… Shigeaki Ueki lança os “contratos de risco” para a exploração do recém descoberto “campo de Garoupa” em Campos, a censura de Geisel proíbe a peça “Calabar” de Chico Buarque e Ruy Guerra, o “disco do muro branco” com a palavra “Calabar” fica menos de uma semana nas prateleiras, é logo recolhido… eu ainda tenho a bolacha com a declamação de Leila Diniz : …”brigam Portugal e Holanda, pelo domínio dos mares” … “..”.Meu coração tem um sereno jeito,, E minhas mãos o golpe duro e presto De tal maneira que,  depois de feito  Desencontrado eu mesmo me contesto…” …  Ana de Amsterdam só será sucesso muito tempo depois … bons tempos …

!974 também marca a renúncia de Nixon após o escândalo de Watergate, Gerald Ford perdoa os desertores da guerra do Vietnam,

Após vencer a batalha de Phouc Long os nortevietnamitas chegam a 100 quilômetros de Saigon e o general Vô Nguyên GIAP planeja invadir a cidade no ano seguinte … bons tempos

A cena musical do ano da graça de nosso senhor de 1974 ainda ofereceu grandes sucessos como Good bye yellow brick road de Elton John, Gita do Raul Seixas (e Paulo Coelho…), O mundo é um moinho As rosas não falam do Cartola, Sinal Fechado de Paulinho da Viola,  It’s only rock and roll ( and I like it) dos Rolling Stones… Em França, mantendo a tradição das chansonettes de putes. Serge Reggiani canta La demoiselle de déshonneur e Léo Ferré faz um hino a L’ espoir…bons tempos

No cinema o Oscar  foi para The Sting com Paul Newmann e Robert Redford e o ragtime de Scott Joplin, mas Truffaut ganhou como melhor filme estrangeiro ao lançar La nuit americaine, o Palmarès de Cannes coube a The conversation do Coppola, Bergman brincou, de novo, com a morte ao apresentar Gritos e Sussurros, em Veneza não houve festival…

Em Portugal ocorreu a “revolução dos cravos” que fez renascer Saramago e lançou Lobo Antunes ao mesmo tempo que mandava Marcelo Caetano para o Brasil, e  que acaba de se preparar para receber Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca … bons tempos

No “rigoroso inverno carioca” deste mesmo ano ocorre no Copacabana Palace o III CBP, aqui realizado para homenagear o professor José Leme Lopes que completaria 70 anos em outubro e seria aposentado pela “expulsória” … e vocês dirão, lá vem o chato do mesmo autor com seu “personagem favorito” … bons tempos

 

Scherzo ( allegro molto) – O III CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA

 

Congressos em “homenagem” são difícil tarefa: não se pode magoar, pisar os calos de nem uma personagem…e, assim se tentou sob a calma e serena autoridade do Professor José Lucena. presidente da ABP.

Aproveitando os últimos suspiros do “milagre brasileiro” as coisas desenrolaram-se melhor que o encomendado.

Lembro-me de, ao lado de Dennis Leigh, quando visitamos a “mostra” das livrarias no mezzanino, de ele ter-me dito “vocês ainda terão um longo caminho a percorrer, estas livrarias só ofertam títulos de psicologia ou de psicanálise, há muito o que fazer…”

Outra memória é a do almoço oferecido ao Leme Lopes por seus alunos e ex-alunos no “Bife de Ouro”, o restaurante da pérgula do Copa e onde pontificava Zacaria  Borge Ali Ramadan saudando o “professor”, orador talentoso, amigo e companheiro que foi para a USP ser… “professor de psiquiatria” … bons tempos

Creio que tenho uma foto do Zacaria discursando, eu me sentava próximo ao “professor”, há que achá-la …

Falando em fotos, há uma em que estamos van Praag e eu discutindo alguma besteira, creio que o Vanor a guardou na “banheira seca” da Alcindo Guanabara, nem os deuses sabem onde andará…

Culpa minha, ou da ABP, a de não darmos importância às fotos … terá sido meu lado ñambiqwara, índios  que viviam entre Piauí e Maranhão – o chamado “Piorão” –  e que acreditavam que cada vez que um vivente aparece em uma foto, parte de sua alma é perdida … coitados se vivessem na era do espetáculo, com tantos “smartphones” a aniquilar seus espíritos já estariam “extintos”…

Falando em “convidados”, tantos foram que me perco : Dennis Leigh, Martin Roth, Max Hamilton, Malcolm Lader, Linford Reese, Pichot, Deniker, Pelicier,  os Verdaux – Jacqueline disse-me em esta época que deveríamos salvar o Afeganistão, causa maintenant pérdue -, Judd Marmor, Massermann,  Barahona-Fernandes, Fernandes da Fonseca ( não me lembro se acompanhado de Palha …) van Praag, Walter Pöldinger, Rascovisky, Baron Shopsin, Joe Wortis, Heinz Lehman, T.A. Ban,  Tellenbach,.. Paul Kielholz não viajou, quebrara o fêmur, Hippius não chegou, acabou em Buenos Aires  – antiga capital do Brasil – , Angst chegou atrasado de um dia – até mesmo a Swissair cometia enganos -, Lopez-Ibor não veio, dueña Socorro passou mal e a viagem foi cancelada … não tenho certeza se William Bunney e Alec Coppen estiveram no congresso ou se vieram depois. A confusão se explica: o Fischer realizava em Buenos Aires uma reunião da Sociedade de Psiquiatria Biológica e muitos que lá estariam pararam no Rio, alguns foram ao CBP “de leve”, outros nem lá estiveram … o o Jules Axelrod, Nobel de medicina foi direto, não parou na cidade maravilhosa…mas isto é outra história : Joe Wortis “ofereceu” à ABP que se encarregasse de formar um “departamento de psiquiatria biológica” antes que um “aventureiro qualquer” lançasse mão da ideia, ele desejava vincular a psiquiatria biológica às associações psiquiátricas, deram-lhe uma rasteira em Barcelona, logo a seguir … a ABP nem sonhava com departamentos e, hoje fosse, seria a mesma coisa : a ABP só tem departamentos em “áreas de atuação” reconhecidas pela AMB … alinhamento automático é outra…merda, ou “quase-história” …

Deixei no IPUB muita “velharia”, inclusive programas de CBP, catá-las-ei : quando a greve acabar…

No frigir dos ovos, entre os “amigos”, “muy amigos” e “inimigos” do professor, reuniu-se a fina nata da psiquiatria mundial.

Algo havíamos aprendido, cuidamos das inscrições prévias e das feitas no balcão: se nos roubaram – e com certeza, o fizeram – desta vez não foi por descuido, foi por rapinagem mesmo…

Mais importante: discutia-se o que fazer da ABP. Algo já se decidira: o próximo congresso seria em Fortaleza, comemoração dos 10 anos da ABP e que nascera de uma reunião realizada na capital do Ceará no ano de 1965. Mais complicado seria a escolha do próximo presidente: o Rio Grande do Sul, apesar de sua contribuição à psiquiatria brasileira, ainda não tivera um seu representante na presidência de nossa entidade … gaúchos são complicados, além de muito divididos: o Chuí não “fala” com Quaraí ou Itaqui … sem se esquecer de Rosário do Sul ou de Alegrete e, além disto julgavam que “psiquiatria-sem-psicanálise” era uma blasfêmia… tarefa complicada a de “unir dividindo”.

De qualquer modo, “os do sul” se reuniram e apresentaram Zimmermann com candidato à próxima eleição a ser realizada em Brasília, durante o congresso da SBNPHM que seria organizado pelo psicanalista Luiz Meyer, discípulo da Darcy de Mendonça Uchôa … bons tempos em que nos CBP discutia-se a eleição da próxima diretoria que era feita quando da realização do congresso da SBNPHM no ano seguinte e a discussão era simples : nem mesmo uma lista de associados adimplentes existia … y asi pasán los dias …

 

Adagio cantabile – sim, as “sessões científicas” do III CBP estiveram sempre lotadas, comparadas com os termos atuais teria sido “top”: havia congressistas sentados nos corredores, faltavam poltronas e cadeiras já que o centro de convenções do Copa não comportava mais que 1 400 pessoas.

As sessões mais concorridas, depois das mesas-redondas “internacionais”, foram as de … “temas livres”…

Parece curioso, mas não o é: os “temas livres” eram… “livres” … em algumas sessões um mesmo e único “relator” apresentava uma “meia dúzia de trabalhos” e enchia a sala de seus “acólitos”…creio que  eu apresentei uns dois “temas-livres”, um sobre piracetam e outro sobre sulpiride.

Outro detalhe curioso : nem uma mesa deixou de ser realizada com “todos” os participantes … havia um “time reserva” para tapar qualquer ausência … se faltasse um psicanalista que falaria a respeito de “castração”, assumia um colega que dizia não apresentar exatamente o “mesmo tema”, mas sim “casos clínicos” sobre o assunto…se faltasse algum “neuropsiquiatra”, lá estaria o Vandick, psiquiatria clínica, o Gerardo … psiquiatria transcultural ou antropológica havia o Rubim de Pinho ou o René … se o assunto fosse “nordeste” havia o Agatângelo… tout court : o “programa” era cumprido à risca, sem exigência de prazos ou demanda de confirmações, tudo na base da solidariedade … bons tempos…

…e havia : os jovens turcos, pau p’ra toda obra, fosse carregar mesas ou falar sobre o sexo dos anjos…

Poucos congressos atingiram tal grau de perfeição, inclusive no número de “congressistas pagantes” : passamos dos 1 200, quase batemos nos 1 300 e isto em uma época em que a FBH, o INPS e a AMB( a de Kassab e Nelson…) “demonizavam” a ABP por sua postura “independente” ( pero no mucho…)

Mas, o melhor do congresso eram os jantares, feitos sem pressa, sem “programação” … reunia-se um grupo e tudo estava pronto : fosse no “Cervantes”, no “Sat’s”, no “Rond Point” ou no “Bec Fin” … o CBP do Rio em 1974 se completava com simpósios ( para os menos versados em grego antigo : symposia eram reuniões de amigos para beber, comer e discutir … o “banquete” de Platão foi um symposium…)

Em um destes jantares, por exemplo, podia ouvir-se que havia um jovem residente sul-americano trabalhando com Max Hamilton e cujo nome era … German Berrios … 

Fique claro: o congresso desenvolvia-se em cinco dias, com direito a abono de ponto, não havia “telefones moleculares”, ouvia-se com atenção e tentava falar-se com mais propriedade… coisas antigas, demodées, outdated… as palavras tinham “mais peso”, deviam durar até o próximo congresso.

traigo un pueblo en mi voz …

 

Allegro vivace – Outros amigos e colegas escusavam-se dos simpósios, preferiam dirigir-se aos “men’s bar” do Lido, ou às boites de peladonas na Prado Júnior ou ainda, mergulhar na “putaria” deslavada … e cara … do Leme : “La Licorne” ou ” La Cicciolina” ( hoje, após a “revolução sexual”, totalmente decadentes…)

Dai a diminuída freqüência da manhã seguinte, mas até isto era levado em conta: pela manhã e logo após o almoço eram “programadas” as sessões de “temas-livres” : havíamos aprendido um bocado em Belo Horizonte … e utilizamos os acertos para mais acertar : o que havia dado errado, foi abandonado : com erros só se “aprende” a errar mais…

A ABP, aos trancos e barrancos, aproximava-se da puberdade, já tínhamos um CNPJ, as publicações claudicavam, mas o CBP era um sucesso.

O caminho andado nos dava algum fôlego para enfrentar as agruras de uma transição … temida, porém inevitável

Claro está que estes relatos, propositadamente “meio-impessoais” não contam tudo : nem a “estória oficial” – cheia de fanfarras, pompas e circunstâncias – e menos ainda a “história escondida” – cheia de rasteiras, meias-palavras, traições, as explícitas e as nem tanto – para isto é necessário tempo, outras “memórias” mais, ou menos comportadas … vivace, come le memorie di uno smemorato …

 

Os “movimentos” acima descritos são os da “Sonata número 3 para cello de Ludwig von Beethoven”,  executada por Jacqueline Du Pré e dirigida por Daniel Barenboim, ao piano.

Poderia ter escolhido Elomar, mas dele só tenho “bolachas”…

 

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