Novembro de 2021 – Vol. 26 – Nº 11
Sérgio Telles
O filme ”Je suis Karl”, de Christian Schwochow, embora um tanto esquemático, é uma boa representação do ressurgimento da direita radical que vivemos atualmente. A ação se passa numa Alemanha assustada com as ondas migratórias, principalmente as muçulmanas, que provocam a reanimação dos fantasmas da supremacia branca e a defesa de uma Europa que estaria sofrendo uma colonização às inversas, com a invasão de povos que antes subjugara.
Em Berlim, um grupo de militantes de direita planeja e executa um atentado terrorista que provoca comoção popular. O grupo, que pretende se discriminar do nazismo e do fascismo, mas que se trai com seu próprio discurso e a saudação nazista – Siel Heil – que seus membros trocam entre si, imediatamente responsabiliza os imigrantes pelo atentado e acusa o governo de não proteger a população contra os perigosos “terroristas árabes”.
Entre as vítimas do atentado, está uma família dizimada com exceção do pai (um liberal que ajudara um imigrante líbio a entrar clandestinamente na Alemanha) e sua filha adolescente Maxi. Traumatizados, cada qual tenta lidar com o luto à sua maneira. Desestruturada e confusa, Maxi é presa fácil de Karl, o militante que praticara o atentado. Ele a seduz e a introduz no grupo, visando explorar politicamente a tragédia que ele mesmo provocara. O movimento direitista está implantado em diferentes cidades de vários países, por onde circulam os militantes. Numa importante convenção, Maxi dá um depoimento, no qual assume o discurso do grupo. Minutos depois constata que sua fala já havia sido vista nas redes sociais por 250 mil pessoas. Sem que Maxi soubesse, Karl havia planejado uma outra ação ainda mais impactante a ser realizada naquela convenção, visando provocar reações mais violentas, o que de fato ocorre, com a perseguição e assassinatos de “terroristas” negros e árabes adultos e crianças.
O filme mostra uma tática clássica de manipulação das massas em momentos de polarização e radicalismo político. Uma das facções realiza um ato ignominioso (terrorista) e o atribui à facção oposta. A população atordoada com a propaganda e privada de informações fidedignas, se deixa levar pelas emoções do momento. Há exemplos históricos conhecidos, como o incêndio do Reichstag, que teria sido provocado por Hitler e atribuído aos comunistas e a bomba a ser lançada no Rio Centro, que explodiu no colo do militar que a levava e que seria atribuída a movimentos de esquerda.
Dizem que a violência é a “parteira da história”, a única forma de viabilizar as mudanças necessárias para atingir a justiça social. Mas é possível o uso racional da violência? Ou ela estará sempre toldada pela afetividade e a irracionalidade? Essa questão tem uma ressonância mais profunda, pois aponta para a dimensão inconsciente que assombra toda e qualquer racionalidade consciente.
As situações do filme levantam importantes questões de difícil resolução. Por exemplo, seria possível fazer uma discriminação precisa entre ideologia, religião e delírio? Como discriminar a efetiva necessidade de lutar por mudanças sociais do delírio megalomaníaco de mudar o mundo? Como avaliar a decisão de alguém que decide doar a própria vida por uma causa? É possível ver esse gesto sem as lentes ideológicas? Seria um gesto louco, destrutivo, assassino ou uma atitude heroica, de absoluta doação, de uma generosidade única?
A decisão de Karl deve ser atribuída a seu amor pela humanidade e pela revolução ou se deve a um narcisismo onipotente megalomaníaco, que ignora as próprias limitações e as pessoas que estão a seu lado e que o amam? Como entender a frieza com que executa o atentado e manipula Maxi? Pensaria que os inocentes mortos e o sofrimento dos imigrantes que seriam perseguidos não têm importância frente ao objetivo maior de transformação da sociedade? Seria uma ato de coragem e desapego em nome de uma humanidade futura ou a expressão de uma loucura pessoal, um ódio psicótico acobertado pela racionalização ideológica?
A amante de Karl se oferece para colaborar na realização de seu plano por convicção revolucionária ou simplesmente por amá-lo e querer sua admiração? Ambos estão alienados de si mesmos, ignoram os afetos que os comandam? A relação deles é uma mistura tóxica de Eros e Tânatos, vida e morte, na qual a última termina por se impor e isso não tem nada a ver com suas propostas revolucionárias? Dificil dizer, pois nada sabemos de suas motivações internas. O único personagem do qual temos alguma informação é Maxi, que está perdida e desorganizada em função do trauma que sofreu até ser resgatada pelo pai.
A necessidade de discriminar bem os fatores inconscientes pessoais e grupais nas grandes propostas políticas e revolucionárias se impõe quando lembramos a violência e a destrutividade desencadeada por aqueles que quiseram implantar uma nova sociedade e criar um novo homem. Os totalitarismos stalinista e nazista e a montanha de ossos do Khmer Vermelho nos dão um bom testemunho disso.
(*) Versão estendida de texto publicado no jornal Valor Econômico em 22/10/2021