Março de 2021 – Vol. 26 – Nº 03

 

Walmor J. Piccinini

 

O ano era 1966 e o mundo psicanalítico de Porto Alegre foi sacudido por acontecimentos inesperados. Um dos analistas didata e fundador, decidiu romper com o grupo hegemônico da sociedade psicanalítica e saiu atirando. Lançou um livro que deveria abalar as estruturas rígidas do grupo que a formara. Tratava-se do Dr. Jose Jaime Lemmertz que editou um livro “Psicanálise e Psicoterapia”, dedicado ao filho Henrique e a um médico falecido em acidente, o Dr. Günther Würth. Começa com uma declaração amarga: “A insatisfação a respeito dos aspectos teóricos e resultados terapêuticos da psicanálise e um sentimento de responsabilidade intelectual para com as novas gerações médicas, especialmente para com os psiquiatras e psicologistas – eis as causas que me levaram a publicar este trabalho.”

“Acontece que fui um dos fundadores de uma Associação Psicanalítica, e, que, através da minha atuação, muito contribui para que se estabelecesse o “dogma” de que a formação psiquiátrica deveria ser fundamentalmente psicanalítica. Criou-se o mito de que as perturbações mentais somente poderiam ser adequadamente tratadas pela psicanálise, a esta falsa crença tem se difundido em nosso meio, quase sem nenhuma oposição. Repetem-se constantemente as mesmas discussões, mesmas hipóteses teóricas que são apresentadas como verdades cientificas irrefutáveis e que terminam sendo aceitas como fatos indiscutíveis, mesmo contradizendo as normas mais elementares do bom senso. Isto se verifica não somente com as teorias freudianas, como ainda mais especialmente, com a chamada Escola Melanie Klein”

Ainda no prefácio O Dr. Lemmertz cita quem o auxiliou na feitura do mesmo e faz um agradecimento a seus analisandos. Uns saíram da sociedade psicanalítica com ele e outros permaneceram.  Passado o terremoto, a terra se acomodou e o mundo psicanalítico seguiu forte e firme. Lemmertz uniu-se ao Dr. Barros Falcão e criou um curso de formação em psiquiatria que hoje leva o nome de José Barros Falcão. Alguns dos analisandos do Dr. Lemmertz que saíram com ele da Sociedade Psicanalítica são citados como Ênio Arnt, Leão Henrique Knijnik e Oscar Jesus Sempé.

Antes desse trauma institucional, membros da Sociedade Psicanalítica participaram de uma viagem para o Congresso da Associação de Psiquiatria, Neurologia e Higiene Mental em 1975 em Fortaleza. O Dr. Manoel Albuquerque conseguiu o avião presidencial e levou para o Ceará 35 psiquiatras, psicanalistas gaúchos acompanhados de suas esposas. A exigência era que fosse apresentado um trabalho científico. A participação foi muito bem recebida e a psiquiatria do Rio Grande do Sul de base psicanalítica se tornou um marco dos novos tempos. Começaram neste congresso as articulações que redundaram na fundação da ABP.

Toda esta movimentação foi feita num momento de muita repressão política. Os psicanalistas faziam seu trabalho e não se envolviam nas questões mais agudas. Já na Argentina, com a subida do General Ongania ao poder a repressão foi num crescendo. Um marco repressivo aconteceu em 1976 no Instituto de Física da Universidade de Buenos Aires, num episódio conhecido como a noite dos Bastões Longos em que professores e estudantes apanharam bastante e nos dias seguintes começaram a fugir do país. Foi o fim da Reforma Universitária que tinha sido conseguida em 1918. Muitos psicólogos, alguns psicanalistas e outros profissionais universitários saíram da Argentina. Um número expressivo veio para o Brasil e injetaram novas ideias no nosso ambiente psi.

As relações psicólogo-psicanalista argentinos começou a sofrer tensões motivadas pelo crescimento em número e qualidade dos psicólogos, até então vistos com subalternos nas diferentes instituições, mas que começavam a criar espaços próprios e já não aceitavam as regras não escritas da relação com os analistas Em 1973 cito Jorge Balan: “ Qualquer que seja a forma particular em que interatua, a relação entre psicanalista e psicólogo é sempre uma relação professor-aluno, na qual o aluno é o psicólogo e além disso essa relação se cronifica como tal, perdendo o caráter transitório que é intrínseco a uma relação docente.”

Fiz um mapa da situação

Psicólogo/a                                                       Psicanalista

Aluno                                                                     Professor

Subordinado                                                         Chefe

Analisando                                                           analista

Grupos de estudo.                                               Supervisor

Difusor de nome                                                 beneficiário

Além desta ebulição entre os psicólogos, havia problemas nas instituições psicanalíticas.

Fiz um esboço esquemático dos problemas:

Conflitos:

  1. Análise de parentes próximos de um analista para outro. O êxito reforçava a relação. O fracasso podia gerar conflitos. O parente adotava o analista como mentor e ia contra quem o encaminhara.
  2. Mudança de analista didata. Reforçava a rivalidade e se fosse repetitiva reforçava ciúmes profissionais entre dois analistas.
  3. Dois analistas tinham pacientes que entravam em conflito por ex. marido e mulher e tomavam partido.
  4. Poucos didatas e muitos candidatos. Se determinado didata fosse marginalizado, seus analisandos sofriam.
  5. Ampliação do campo de trabalho tornou os analistas jovens menos dependentes.

Num artigo de registro histórico pode ser difícil a um não iniciado avaliar o que estou escrevendo. Como já disse em outros momentos, meus registros são baseados em muitas experiências pessoais. Alguns fatos os personagens envolvidos nem querem tocar no assunto, mas vou registrando como vi os fatos. O caso Amílcar Lobo teve consequências muito graves na psicanálise brasileira e com repercussões na SPPA. A história pode ser lida no livro da Dra. Helena Besserman Viana “Não conte a ninguém”. Sua denúncia que um candidato da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro tinha participado de tortura de presos políticos, sofreu tentativas de abafamento e descaracterização da denunciante. O fato envolvia o analista do denunciado que era o Dr. Leão Cabernite, então presidente da SBPRJ. E o supervisor do candidato, o Dr. Ernesto La Porta que foi o primeiro paciente de psicanálise do Dr. Mário Martins. O assunto foi levado a IPA que solicitou ao seu Diretor para América Latina que tomasse providências. Esse diretor era o Professor David Zimmermann. Como ele era amigo dos dois denunciados, tentou contemporizar e isso mais adiante se revelou extremamente danoso para sua pessoa. A crise chegou ao Departamento de Psiquiatria da Universidade onde os demais professores se dividiram. A solução foi afastá-lo do curso que ele fundara e dirigia. David se aposentou e saiu da Universidade com um grupo de amigos solidários. O clima ficou muito ruim na Sociedade Psicanalítica e ele acabou saindo de lá também e partindo para a organização de nova sociedade psicanalítica. Retornaremos a este assunto com mais tempo e detalhes.

 

 

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