Outubro de 2020 – Vol. 25 – Nº 10

Walmor Piccinini *

            Loucura e arte se constituem como objeto de estudo para muitas áreas do conhecimento. Várias perguntas, no entanto, permanecem sem resposta. A produção artística do louco se dá justamente por causa da loucura ou apesar dela? A promoção do ato criativo, como instrumento terapêutico, deve se restringir à expressão de conteúdo internos a serem trabalhados ou pode pretender o desenvolvimento de uma experiência que favoreça funções mentais integradoras?

            “Pode ser que você ainda não tenha se dado conta disso, mas o fato é que todas as      coisas belas do mundo são filhas da doença. O homem cria a beleza como remédio para o seu medo de morrer. Pessoas que gozam de saúde perfeita não criam nada. Se dependesse delas, o mundo seria uma mesmice chata. Por que haveriam de criar? A      criação é o fruto do sofrimento”. – Rubem Alves      

Talvez se confunda a criatividade do gênio e do artista com as excentricidades do louco porque nenhum deles segue à risca as convenções sociais compartilhadas pela maioria. Mas a loucura supostamente impede a criatividade, pois a mente do psicótico está comprometida por mecanismos defensivos que impedem seu livre funcionamento, restringindo-o a padrões rígidos e estereotipados, dos quais o modelo maior é o delírio, crença inabalável e impermeável às críticas e às considerações racionais. À liberdade e flexibilidade criativa do artista se contraporia à rigidez imutável do delírio.

Mesmo assim, constatou-se que os loucos também criam.  No início do século XX, a produção de doentes mentais internados em grandes asilos e instituições psiquiátricas europeias começou a ser notada e valorizada por críticos e conhecedores de arte.

Haveria uma essencial diferença entre a arte produzida pelos doentes mentais e aquela realizada por criadores reconhecidos como artistas pelo grupo social ao qual pertencem?  A questão é interessante, pois a produção dos doentes mentais nasce distante de qualquer conhecimento dos pressupostos estéticos e seus autores não têm pretensão alguma de cunho artístico, querem simplesmente expressar de forma plástica seus estados mentais, as ideias e afetos presentes em seus psiquismos. O curioso disso tudo é que, em assim fazendo, por um lado, alguns terminam por criar soluções visuais de grande apuro formal, e, por outro, expressam com frequência elementos míticos dos quais eles mesmos não tinham conhecimento, o que dá provas da universalidade dos conteúdos inconscientes da mente humana.

A expressão Art Brut (Arte Bruta) foi criada pelo pintor francês Jean Dubuffet (1901-1985) em 1947, com o objetivo de caracterizar o trabalho produzido fora do sistema tradicional e profissional da arte (pelo que é também conhecido por Outsider Art), que o artista considerava mais autêntico e verdadeiro que o dos artistas eruditos. Dessa forma, o conceito de Arte Bruta pretendia englobar produções muito diversificadas realizadas por crianças, por doentes mentais e por criminosos, que apresentavam em comum um caráter espontâneo e imaginativo. Englobava também algumas realizações de caráter público e coletivo, como o graffiti.

O pioneiro sobre a Arte Bruta nos Hospícios do Brasil foi Osório T. César e sua abordagem era baseada na Psicanálise de Freud. Buscava na obra dos doentes um significado inconsciente de fundo sexual.

A grande dama da Psiquiatria Brasileira, Nise da Silveira, tem sua base teórica em Carl Gustav Jung. Cito alguns dos seus pensamentos:

            “Só os loucos e os artistas podem me compreender.”

            “Encontrei na psicologia de Jung e nas obras deste mestre o meu melhor instrumento     de trabalho.”

            “A obra de arte para Freud fundamenta-se nos condicionamentos individuais do criador    e Jung encara a obra de arte como uma produção super pessoal.”

 

            Pautado nas pesquisas de psiquiatras com formação em história da arte ou que demonstravam interesse pela arte como Hans Prinzhorn, Walter Morgenthaler e Jean Vinchon, Osório Cesar iniciou uma coleção com as produções dos pacientes psiquiátricos e um estudo dos fatores psíquicos que mobilizavam essas produções plásticas aparentemente modificadas, publicando seu primeiro artigo sobre o assunto em 1924. Seguindo o pensamento desses estudiosos, principalmente de Prinzhorn, César compreendeu que a necessidade do alienado de se manifestar plasticamente não era uma consequência do estado doentio, como defenderam alguns psiquiatras, mas procedia da capacidade humana de organizar ideias e sentimentos por meio de imagens.(http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF21/l_reilly.pdf)

            A criança, o homem primitivo e o louco teriam em comum a falta de discernimento, de razão, respondendo em nível primordialmente instintivo, selvagem. A produção artística instintiva, selvagem, ao olhar de Osório César, é conceituada como ‘estética do primitivo’.

            Ao lembrar sua história, não pude deixar de pensar em Nietzsche e sua concepção do homem dionisíaco e apolíneo. Características apolíneas consistem em bela aparência, sonho, forma resplandecente, ordem, serenidade. A racionalidade, o celibato, o intelectualismo e o progresso, pensando em objetivo final, são traços apolíneos, enquanto nos traços dionisíacos temos a irracionalidade, a busca pelo êxtase, a ignorância, a preguiça e a indulgência sexual.

            Vamos conhecer um pouco sobre Osório Thaumaturgo César. Nasceu em 1895, em João Pessoa, Paraíba. Chegou a São Paulo com 17 anos de idade (1912), onde estudou Odontologia. Na ocasião, para se sustentar, deu aulas de violino. Começou a estudar Medicina em 1918 no Curso de Medicina ministrado junto à Escola de Farmácia, que fazia parte da então chamada Universidade de São Paulo (que não era a mesma que a atual, a qual foi fundada em 1934). Com a extinção dessa Universidade, ele transferiu-se para a Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, em 1920. Formou-se em 1925, aos trinta anos de idade, fixando-se na área de Anatomia Patológica. Antes disso, em 1923, já frequentava o Hospital do Juquery como interno. Nesse local, foi oficialmente contratado como médico, e assim permaneceu por quarenta anos.

            Nos anos de 1930, César estudou em Paris e, também, na Alemanha, Itália e União Soviética, tendo participado de um Congresso de Psiquiatria sob a presidência de Pavlov. Na ocasião foi acompanhado por Tarsila do Amaral, então sua companheira. César teve grande afinidade com o Marxismo, sendo que, em 1933, publicou dois livros sobre o “Estado Proletário”, um ano após retornar da União Soviética. Por isso, foi preso pelo governo de Getúlio Vargas. (Osório Taumaturgo César -1895-1986 – https://www.polbr.med.br/ano08/wal0508.php)

            Nise da Silveira nasceu a 15 de fevereiro de 1905 e faleceu a 30 de outubro 1999. (https://www.polbr.med.br/ano02/wal0902.php). Trabalhos como os de Nise e de Osório César só aconteceram devido à longa permanência dos pacientes nos hospitais-asilos. Nos dias atuais, com internamentos de curta duração, isso já não ocorre.

            A ideia de se utilizar a arte nos hospitais acabou acrescentando mais algumas especialidades ao arsenal terapêutico. Arteterapia, Musicoterapia, Oficinas das mais variadas formas e, principalmente, atividades que facilitassem o retorno dos pacientes ao convívio social.

            Nancy Andreasen partiu para outra linha de raciocínio: qual a relação da criatividade, inteligência e a arte?

 The capacity to be creative, to produce new concepts, ideas, inventions,                                   objects or art, is perhaps the most important attribute of the human brain. We                           know very little, however, about the nature of creativity or its neural basis. Some                    important questions include how should we define creativity? How is it related                                    (or unrelated) to high intelligence? What psychological processes or                                           environmental circumstance cause creative insights to occur?

            Suas observações, ainda em andamento, podem ser resumidas. Estudando imagens cerebrais, ela chegou à conclusão de que criatividade é um fenômeno individual e que não tem relação direta com inteligência. Cita o trabalho de Lewis Terman que acompanhou 745 indivíduos com alto QI (140-160) da infância à velhice e constatou que não se destacaram pela criatividade. Indivíduos criativos apresentaram QIs em torno de 120. Seu trabalho está em andamento.

(Bibliografia por solicitação).

—————

*A apresentação deste trabalho foi baseada nos trabalhos de Osório César (https://www.polbr.med.br/ano08/wal0508.php), Nise da Silveira                   (https://www.polbr.med.br/ano02/wal0902.php) e Nancy Andreasen (The capacity to be creative, to produce new concepts, ideas, inventions, objects of art, is perhaps the most important attribute of the human brain –  A journey into chaos: Creativity and the unconscious . Mens Sana Monographs, 2011.

Part of the International Journal of Psychiatry – ISSN 1359 7620 – A trade mark of Priory Lodge Education LTD

 

** Psiquiatra, editor da Polbr Brasil

*** Trabalho apresentado em MR, na Jornada Sulbrasileira de Psiquiatria realizada em Florianópolis, SC nos dias 19-20 de abril de 2018.

 

 

Similar Posts