Outubro de 2020 – Vol. 25 – Nº 10

                                                                                                                               Sérgio Telles

Autor de roteiros cinematográficos originais e criativos (“Quero ser John Malkovich”, “Adaptação”, “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”), mais recentemente Charlie Kaufman passou a dirigi-los, como em “Sinédoque – New York” e “Anomalise”. A Netflix lança agora “Estou pensando em acabar com tudo”, sua última criação,

O filme inicia com um denso e erudito diálogo entre Jake e sua namorada Lucy – ou Lucia, Louise e Ames, pois, seu nome muda ao correr da narrativa, bem como sua profissão – ora é uma cientista (como Jake?), ora é pintora, garçonete ou poeta. O diálogo é entrecortado pelo monólogo interno de Lucy, que é atacada por um pensamento obsessivo que insiste em se fazer presente, o “estou pensando em acabar com tudo”. Essa ideia compulsiva seria fruto de suas pulsões destrutivas, estaria querendo acabar com sua vida e suas relações? Ou decorreria mais da visão pessimista que tem da vida e das relações humanas: se tudo está fadado a se acabar um dia, para que iniciar qualquer coisa, seja lá o que for? Porque iniciar uma relação amorosa como essa com Jake, trabalhar e investir para ela se desenvolva e frutifique? Por que ir visitar os pais dele numa fazendola na zona rural em plena nevasca? Se tudo se acaba, há algum sentido na vida?

O filme está dividido em três episódios – a visita à casa dos pais, a visita à escola onde Jake estudou na adolescência e o epilogo, que ocorre muitos anos depois, uma cerimônia em torno de Jake.

O jovem casal pensa frouxamente no futuro, num relacionamento mais sério. Mas antes de consolidá-lo se faz necessário uma visita ao passado.

Ao chegarem à fazenda, o filme abandona o registro mais realístico e mergulha de vez numa abordagem onírica, no qual o tempo assume o protagonismo. Louisa se depara com os pais de Jake em diferentes estágios da vida, desde o vigor da maturidade até a velhice, senectude e decrepitude. De forma pungente, os conflitos familiares de Jake se levantam, mas Louisa tampouco passa ilesa. Acossada por um homem que lhe telefona sem parar fazendo ameaças, sente que sua identidade se dissolve e se confunde com a de Jake.

Se os pais estão inevitavelmente aprisionados em casa pela velhice, cabe aos filhos prosseguir em busca de seus próprios destinos. Mas não é fácil se livrar do passado e Jake, apesar dos protestos de Louisa, se vê compulsivamente forçado a voltar à escola, enfrentando a tempestade de neve, para encontrar os fantasmas que ali habitam e que a mãe, de forma desastrada, mencionara várias vezes durante o jantar. Tal como na casa dos pais, permanece um clima onírico, surreal, no qual se desenvolvem as experiencias traumáticas de Jake, os sonhos destruídos, o amor desfeito de forma trágica. E aí está o grande paradoxo do tempo, ao mesmo tempo em que ele não para, estamos apegados ao passado, por mais doloroso que ele tenha sido, o passado é um tempo que não quer passar. Jake entende que é preciso abandonar os sonhos juvenis, por mais queridos e acalentados que foram um dia. É preciso curar as antigas feridas e seguir em frente, aceitar a realidade.

No epílogo, Jake parece responder à questão inicial de Louisa: vale a pena fazer qualquer coisa, se tudo está predestinado à extinção? Sua resposta é afirmativa e se apoia na importância do amor, a única lógica que pode dar sentido à vida. Dito assim parece piegas, um mero final feliz. Mas no contexto essa posição possui uma intensidade humanística, injetando luz e esperança numa visão de mundo predominantemente lúgubre e sombria.

Essa seria uma forma possível de entender a estrutura do filme, não fosse ela subvertida completamente pelo enigmático personagem do zelador/faxineiro, que é visto de forma intermitente desde o início, fazendo seu trabalho diurno e noturno, no meio dos alunos ou na escola deserta. Ele evidencia como Kaufman foi fortemente influenciado por David Lynch, que introduz surpreendentes descentramentos e deslocamentos em suas narrativas, forçando o espectador a discriminar entre a realidade e a fantasia do que lhe é apresentado, bem como descobrir quem está contando a história de quem.

O filme mostra muitos subtextos, como reflexões sobre literatura e criação artística (são citados muitos autores, como David Foster Wallace, Wordsworth e Eva HD); sobre as ligações entre crítica e arte – como na desconfortável conversa de Louisa com o pai de Jake ou na longa evocação da disputa entre Pauline Kael e John Cassavetes, especialmente sobre o filme “A woman under influence”.

 

(*) Publicado no Suplemento EU&FS do jornal Valor Econômico em 18/09/2020

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