Agosto de 2020 – Vol. 25 – Nº 8

Sérgio Telles

 

A leitura de livros lacanianos é tarefa reconhecidamente difícil para os não pertencentes a essa vertente teórica da psicanálise, como eu. Resenhar um desses livros, um desafio maior ainda que quase me fez desistir da empreitada. O que me impediu de fazê-lo foi a convicção que nós psicanalistas devemos lutar contra a divisão de nosso campo em redutos teóricos incomunicáveis e em permanente disputa pela primazia, o que tanto nos enfraquece. É necessário reconhecer as diferenças entre as várias escolas, conhecer as contribuições que cada uma oferece e com elas enriquecer o cabedal de nosso conhecimento, sem transformá-las em crenças a serem seguidas com ardor religioso.

Mauro Mendes Dias, criador do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise, apresenta seu livro como fruto dos trabalhos que desenvolve em torno da formulação teórica lacaniana da “voz”, que o levaram a formular os conceitos de “vociferação” e “estupidez”.

Freud descreveu três objetos pulsionais, ligados às pulsões oral, anal e fálica. A eles Lacan acrescentou dois outros: o olhar (pulsão escópica) e a voz (pulsão invocante). Segundo Miller, a voz é a terceira instância entre a função do discurso e o campo da linguagem. É, pois, sobre ela que nosso autor se debruça, propondo nuances e discriminações. Dias relata as dificuldades inerentes ao processo de assunção da própria voz e abandono da submissão à voz do Outro (“ponto surdo”, equivalente ao “ponto cego” freudiano), dificuldades que podem gerar distorções como aquela de expressão especialmente agressiva e destrutiva, à qual chamou de “vociferação”. As vociferações podem se articular como um discurso, o da “estupidez”, o que – por sua vez – configura os urros e zurros da “fera humana”. Partindo do acervo teórico lacaniano, Dias apela para a literatura, que fornece imagens da bestialidade que nos é intrínseca nas figuras dos rinocerontes de Ionesco, das baratas de Kafka e McEwan (ao contrário de Gregor Samsa, que morre em estado de abandono, a barata de McEwan chega ao poder, aclamada por todos), as sereias da Odisséia, Musil.

Na delimitação de seu objeto de estudo, muitas vezes pareceu-me que o autor procurava com essas formulações dar novas roupagens a manifestações da destrutividade própria da pulsão de morte, especialmente quando caracteriza a estupidez apoiando-se em Cipola (“estupidez como sinônimo de uma posição em que os sujeitos ‘causam dano a uma outra pessoa, ou grupo de pessoas, sem obter benefícios para si mesmos’”) ou nos termos de Musil: “ (…) algo é realmente estúpido ou ordinário, não só uma interrupção da inteligência, mas também a tendência cega à destruição ou à fuga desprovida de sentido”. É bem sabido que as pulsões destrutivas derivadas de Tânatos não visam necessariamente obter um ganho objetivo pragmático e sim o prazer, o gozo que decorre da própria destruição. Lembremos a reveladora afirmação de Cioran, que dizia em “The trouble with being born”: “A aniquilação lisonjeia alguma coisa obscura, algo de primitivo em nós. Não é ao criar e sim ao pulverizar que podemos vislumbrar as secretas satisfações de um deus. Daí a atração da destruição e as ilusões que ela provoca entre os perturbados de qualquer era”. Ampliando seu enfoque, Dias discorre sobre a dimensão política da estupidez, focando especialmente o fascismo.

Na segunda parte do livro, Mauro Dias procura aproximar seu “discurso da estupidez” dos cinco discursos de Lacan (universitário, histérica, mestre, do analista e do capitalista). Esta é uma tarefa árdua e que configura a parte mais inóspita do livro para o leitor não especializado.

Levando em conta que na teoria lacaniana os discursos dispõem de formas de organizar os laços sociais, o autor sugere que o discurso da estupidez seria uma nova versão do discurso do capitalista na era da internet e é o que rege nossas relações político-sociais atualmente.

Espero não me ter extraviado na travessia dos trechos mais emaranhados do livro, permanecendo assim próximo ao pensamento do autor. De certa forma, essa resenha é também um registro do que um psicanalista não lacaniano pôde depreender de um texto que muitas vezes lhe pareceu obscuro, mas que se empenhou em compreender e fazer justiça ao trabalho do autor.

Uma última observação sobre a dificuldade de compreensão dos textos lacanianos. Na apresentação de seu livro, Mendes Dias escreve: “Alguns leitores considerarão a leitura difícil; outros, que algumas ideias mereceriam maior clareza, ainda que passiveis de entendimento. Outros ainda, certamente, pensarão que um livro que aborda os tema a que se propõe deveria explicar melhor as ideias. Sem dúvida, cada um tem suas razões, suas leituras.” Mas ele mesmo está satisfeito com o que produziu e diz: “em nenhum momento me senti com necessidade de explicar e fundamentar melhor do que fiz”.

Vê-se então que não é propriamente uma autocritica, pois o autor não lamenta as dificuldades impostas ao leitor, parece não se preocupar com o acordo tácito entre aquele que escreve e o que lê, no qual o primeiro se esforça para se fazer entendido pelo segundo, que retribui a gentileza com a leitura atenta e cuidadosa.

(*) Publicado no Caderno EU&FS do jornal Valor Econômico em 24/07/2020

 

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