Julho de 2020 – Vol. 25 – Nº 7
Os prazeres da história bem contada e a alegria da palavra justa
Luís Claudio Figueiredo
As cento e treze páginas do livro de Sérgio Telles são ocupadas por onze contos e mais oito… Oito o quê? Ao ler, senti a alegria da palavra justa e o que me vinha à mente era parecido ao que sinto quando leio as poesias em prosa de Jacques Prévert ou de Francis Ponge. Oito poesias, portanto.
O humor levemente satírico e dramático, por vezes trágico, que encontro em Prévert estão presentes em quase todas estas pequeninas peças do bem dizer. Mas há também, em todas elas, aquela capacidade de dizer as coisas, não tanto descrevê-las, mais apresentá-las, que é o que me encanta em livros de Ponge como Le Partis Pris de Choses. É esta tomada de partido pelas coisas em uma fenomenologia quase que inteiramente intuitiva que encontro em poesias como Relógios, Metafísica, e, principalmente, A Mariposa. Prosa, sim, mas discursividade zero neste dizer as coisas tal como se dão a ver e a pensar na intuição pura.
Mas nem Prévert nem Ponge: Sérgio Telles. Vali-me destas experiências passadas de leitura apenas para ir me aproximando desta escrita muito original e comunicar aos leitores desta resenha um pouco do meu encantamento.
É uma arte difícil, esta a da palavra justa, posta com absoluta precisão a serviço das coisas e das experiências singulares do autor, mas que, justamente pela precisão do dizer, universalizam-se: uma palavra precisa para dizer o tempo, a fugacidade, as perdas, o vazio, a monotonia, as irrelevâncias, a morte… mas também a permanência, a compaixão e mesmo a esperança… Se o volume contivesse apenas estas oito poesias, Dayenu! como dizem os judeus em uma reza do Pessach. Um volume fininho, mas que já seria para o leitor atento motivo de alegria e agradecimento: “Não é muito, mas só nos resta agradecer/ por esse pouco que nos é concedido”, como lemos em Chispas.
Mas há também os onze contos onde à alegria da palavra justa se soma o prazer das histórias bem contadas: personagens e enredos inventivos, bem armados e bem narrados, com aquela economia de recursos que caracterizam as oito poesias em prosa.
Anton Tchekhov[1] recomendava cortar o primeiro e o último paragrafo do conto antes de considerá-lo pronto para publicação. Não me dão exatamente esta impressão os contos de Pecados do Mundo. Mas apesar de Sérgio Telles não haver seguido à risca o conselho do mestre russo, seus contos me transmitem justamente esta impressão de inesperado, contingência, absurdo, incompletude que talvez fosse o pretendido por Tchekhov ao deixar suas histórias sem começo nem fim. Elimina-se com este procedimento a ideia de uma verdadeira conclusão: como a vida, os contos terminam, mas sem se concluírem, pelo menos sem a conclusão que daria lugar a uma ‘moral da história’, como em uma fábula edificante. Ai seria onde os escritores mentem mais, conforme nos conta Ivan Búnin. Sérgio Telles mantém-se no campo da verdade: “Verdadeira demonstração de Fé” termina no vazio, deixando o próprio título arder na ironia cáustica;; o mesmo ocorre, de certa forma, em um outro conto , “Animais portentosos”; já “Brilho no Olhar “, ‘termina mal’, mas em um mal completamente inesperado e contingente,” (outro título desconcertante); há histórias em que se constrói um personagem memorável, inconsistente e totalmente esquecível, como o César de “A impenetrável opacidade das coisas”.
O tema das mortes nos assombra de diferentes modos, figuras e lugares, e comparece em diversas histórias, em especial em “Um ar embalsamado”, em que o perfume da mãe – Un air embaumé – vem associado à cega corrida de um pequeno Édipo, inebriado, fascinado e acuado pelo perfume, para o buraco negro materno (escrevo isso constrangido, por enfiar um aroma de psicanálise onde ela não era chamada, onde o cheiro dominante é outro, o cheiro da mãe sensual e o cheiro da morte). Mortes de mãe e de pai estão no centro de algumas narrativas, como “Inconfidências” e “A última vez que minha mãe morreu”. E os temas do inesperado e do incerto igualmente nos perseguem, como no conto que dá título ao livro, “Pecados do Mundo”, que termina com a não conclusão: “No mundo parecia vigorar uma grande desordem e o menino vagava atarantado, sem ter a quem recorrer, temendo a longa estrada que tinha pela frente”. É nesta longa estrada que temos pela frente – se tivermos a sorte de continuar envelhecendo – que os contos de Pecados do Mundo nos deixam, temerosos e atarantados.
A vontade é grande de continuar comentando um a um cada um dos onze contos, mas o espaço de uma resenha não comporta tanto. Que, porém, fique registrada a ideia de que, tornando ainda mais precária e impossível uma conclusão, os términos a rigor não terminam: abrem-se sempre, para algo além, um além de absoluta trivialidade, como ao término de “A última vez que minha mãe morreu”, em que a morte da mãe e as desavenças familiares se encerram quando “Deixei-os acertando as contas com as cuidadoras e fui ajudar os homens da mudança a carregar os móveis”. Ao contrário de Tchekhov, Sérgio Telles não corta a mentira dos últimos parágrafos, mas os esvazia para se manter rente à verdade. O final de “A última vez que minha mãe morreu” nos faz lembrar da poesia Metafísica: “Tudo isso, num determinado momento futuro, terá irrevogavelmente desaparecido. Aí então, você pega a toalha, se enxuga e vai tocar a vida”. É também o que ressoa do início ao fim em outra poesia, Previsão que começa dizendo: “Tirando um ou outro coração machucado/tudo continuará igual/ quando eu não estiver mais aqui”.
Já falei das poesias e dos contos. Mas há mais: há a composição do livro entremeando contos e poesias, e sempre carregando-nos pela alegria e pelo prazer em meio a territórios incertos quando não sombrios e fantasmagóricos.
Tanto nas poesias como nos contos, há sempre, em cada peça, uma dimensão reflexiva, mas é certamente desta composição híbrida que ressalta a força de reflexão da escrita de Sérgio Telles.
Vai aqui uma confissão: ao receber o pedido para escrever uma resenha do livro de contos de um psicanalista, sendo eu psicanalista, afligi-me. Adoro ler, leio continuamente romances, contos, poemas, justamente para não pensar em psicanálise! Será que ia ter de enfiar psicanálise nesta resenha, estragando minha experiência de leitura. Mas não. A alegria das palavras justas e o prazer das histórias bem contadas quando se aliam à reflexão produzem exatamente o que se espera de uma boa psicanálise sem que nenhuma teoria seja forçada e trazida de contrabando.[2] Aliás, é disso mesmo que se trata em uma sessão: teorias fora daqui! Ideias psicanalíticas, deixem o espaço livre para as experiências e as coisas serem intuídas, ditas, pensadas, refletidas! É assim que nossas experiências emocionais e cognitivas – que incluem nossa condição corporal – podem ir sendo interminavelmente significadas, elaboradas, transformadas. Ler é minha particular estratégia para a autoanálise interminável, e um livro como Pecados do Mundo, pela qualidade da escrita e pela inteligência literária de que dá testemunho, para mim, é puro mel, um tônico de vida e esperança.
Mas há mais: quando se encerram as cento e treze páginas de poesias e contos, vem mais uma. Passa meio despercebida e só dei com ela em uma segunda leitura, mas é indispensável, conforme reconheci da terceira vez que li o livro para escrever esta resenha. Nesta página sobressalente, Sérgio Telles fala de seu amor à literatura e de sua convicção de que ficção e poesia não se tornam menos importantes em tempos crispados pelas polarizações odientas que obstruem o espaço para pensar com clareza sobre si e sobre o mundo. Ao contrário: “É que ele – refere-se ao editor Eduardo – como eu, acreditamos que, sem se refugiar nas torres de marfim, a literatura é a guardiã da imprescindível lucidez que deve ser mantida a qualquer custo”.
Peço licença para fazer parte dessa seleta confraria e convido meus leitores e nela também ingressar: Viva a literatura! Viva a psicanálise! Viva a condição humana e nossos trabalhos!
[1]A sentença “Depois de se escrever um conto, deve-se cortar o início e o fim. É aí que nós, escritores, mais mentimos”. foi recolhida por Ivan Búnin em, “Tchekhov. Recordações de um contemporâneo”, publicado em russo pela primeira vez em 1955, em NY. Devo esta informação a Samuel Titan Jr., a quem agradeço.
[2] Quando lembrei do Édipo, por exemplo, ao comentar “Um ar embalsamado” foi completamente sem querer, mas ainda assim quase pedi desculpas.