Maio de 2020 – Vol. 25 – Nº 5
Fernando Portela Câmara – MD, PhD, Prof. da UFRJ
Vivemos hoje, no momento e que escrevo estas linhas, uma pandemia, e, quando isso
acontece, os velhos modos imutáveis da psique humana retornam. O mesmo pânico ante
a mortalidade crescente, o isolamento, a perplexidade… as mesmas falas e brutalidade
dos políticos, ditadas pelo medo, os momentos fecundos da paranóia protetora que
“descobrem” remédios milagrosos, jamais comprovados e que depois caem no
esquecimento. Desde a grande pandemia que caiu sobre Atenas, no século de Péricles,
até a Peste Negra e a Gripe Espanhola, é tudo sempre a mesma coisa, e nada muda, pois
a civilização não tem defesas contra as rápidas, vorazes e globais pandemias. A
pandemia de cólera, hoje totalmente esquecida, nos mostra como a pandemia por que
atualmente passamos é um espelho das pandemias passadas, a mesma tragédia que hora
vivenciamos e o mesmo esquecimento que em breve virá.
A cólera é uma diarréia infecciosa grave causada por sorogrupos da bactéria Vibrio
cholerae produtores de enterotoxinas. A infecção se dá pela rota fecal-oral, por ingestão
de água e alimentos contaminados em um ambiente de saneamento deficiente. Cerca de
90% dos infectados são assintomáticos, e entre os sintomáticos apenas 10% apresentam
diarreias profusas com risco de morte devido à rápida e intensa desidratação seguida de
hipotensão e choque. A taxa de ataque secundário da cólera, mesmo em grandes
epidemias, raramente excede a 2%.
É uma doença tipicamente da era pré-industrial e dos países pobres, sendo considerada
uma “doença da miséria”. Desde a Antiguidade a cólera só era conhecida na Índia, mas
a partir de 1816 a doença se espalhou para fora de sua zona endêmica, atingindo a
Europa a partir de Bengala, após infectar o exército britânico, e em 1924 atingiu a Ásia.
A segunda pandemia, ainda maior que a anterior, começou em 1929 e alcançou a
Europa e a América. Tamanha era a ferocidade da doença, que matou a maioria dos
doentes em apenas um dia, chegando a ser comparada à Peste Negra.
A cólera torna os pacientes irreconhecíveis devido à intensa desidratação: a face
“chupada”, cianótica, modifica bastante a fisionomia do sujeito. O doente se torna
sonolento e confuso (letárgico) à medida que a desidratação prossegue, até que, por fim,
sobrevém o choque que leva ao coma e à morte rapidamente.
Além das duas primeiras pandemias citadas, a cólera causou repetidas epidemias na
Europa, Oriente e Américas. No Japão, logo após a abertura dos portos ao comércio
internacional no final do século XIX, com a Era Meiji, uma violenta epidemia de cólera
irrompeu no país, exterminando três milhões de pessoas. A doença foi introduzida por
um doente vindo a bordo da fragata americana USS Mississippi.
O horror da cólera produz pânico e revolta, pela condição miserável em que a doença
lança suas vítimas. Na epidemia de 1832, violentas revoltas populares ocorreram na
Inglaterra, França e Alemanha, com os revoltosos perseguindo imigrantes e pessoas
suspeitas de terem a doença agredindo médicos e depredando hospitais. Naquela época
não se tinha confiança nos médicos, e os hospitais eram tidos como caminho certo para
a sepultura e focos disseminadores da doença, algo que vemos hoje em relação à
pandemia de Covid-19. De fato, a medicina da época tratava a cólera com sangrias e
purgativos, o que só abreviava a morte dos doentes. A infecção se espalhava pelo
hospital, atingindo também o corpo médico e enfermagem, como também vemos
atualmente no cenário da Covid-19. Os mais exaltados acreditavam que isso era uma
conspiração dos ricos junto com os médicos para eliminar a população pobre.
Na epidemia de 2010 que assolou o Haiti, após o terremoto que destruiu mais da metade
do país, vimos o mesmo cenário do desespero da cólera retornar. O povo haitiano, em
extrema pobreza, refugiado em acampamentos improvisados após o terremoto, apinhado
e em condições sanitárias precárias, com péssimo abastecimento de água e nenhum
saneamento, sucumbiu à cólera. Os haitianos revoltaram-se e atacaram a força militar da
ONU, que tinha por função manter a ordem no país, e acusavam os soldados nepaleses
que integravam a força de terem introduzido a doença na Ilha. Os mesmos elementos do
arquétipo epidêmico da Praga de Atenas são vistos sempre quando epidemias
catastróficas caem sobre cidades.
A experiência ocidental com a cólera, desde a primeira pandemia há dois séculos,
fomentou um intenso debate sobre suas causas e, de maneira geral, das doenças
infecciosas. Naquele tempo dominavam duas teorias: a miasmática e o contágio. A
teoria miasmática acreditava que todos estavam expostos à doença por conta de eflúvios
presentes no ar e nas águas. A teoria do contágio, ao contrário, admitia que uma pessoa
saudável só adquiria a doença a partir de uma pessoa doente ou uma fonte de contágio,
mas essa teoria não ganhou força: os pós-iluministas criticavam-na, afirmando que ela
induzia o medo à doença e que isso restringia as liberdades individuais e o comércio. A
teoria miasmática, portanto, dominava e ganhava ainda mais reforço entre os
protestantes, cuja ética do autoaperfeiçoamento ensinava que o ser humano devia
superar todas as dificuldades e perigos para consolidar a sua fé.
Foi a crença na teoria miasmática que atrasou o progresso da teoria dos germes, que
teria sido um segmento natural da descoberta de John Snow (Snow, 1990; Johnson,
2008); entretanto, ela só foi percebida quando Robert Koch isolou e identificou o
vibrião colérico em 1883, nas memoráveis pesquisas conduzidas no Egito e na Índia.
Essa importante descoberta foi obscurecida quando um rival de Koch, adepto da teoria
miasmática, chamou os jornalistas e bebeu diante dele um copo cheio de cultura de
cólera e não adoeceu. Isto causou impacto e a teoria do miasma foi mais uma vez
“confirmada” (Porter, 1997). Na verdade, ele bebeu uma cultura velha do vibrião
colérico, já atenuada. Entretanto, Koch conseguiu demonstrar a falácia, confirmando em
estudos controlados a etiologia bacteriana da cólera em 1892, na epidemia de
Hamburgo, a pedido do governo da Prússia. Um bairro dessa cidade, Altona, que tinha
abastecimento de água separado do resto da cidade, não padeceu da epidemia, pois não
se contaminara. Juntando as conclusões dos estudos de John Snow com suas pesquisas,
Koch demonstrou de modo inequívoco a origem da cólera, e a teoria da etiologia
microbiana tornou-se uma política de Estado na Prússia.
Em meados do século XIX, enquanto a febre amarela estava em plena atividade no Rio
de Janeiro, a cólera invadiu o Brasil pelo Norte e Nordeste. Infelizmente, a amnésia
coletiva encobriu esse episódio de desespero e medo pelos quais passou a população
brasileira. Esse fenômeno foi recentemente tratado por Edward Paice (2010) em seu
livro sobre o terremoto e a tsunami que destruíram Lisboa em 1755, e no livro de Mauro
Ventura (2011) sobre o incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, no Rio
de Janeiro, em dezembro de 1961, em que morreram 503 das pessoas que assistiam ao
espetáculo. Acontecimentos trágicos são reprimidos na memória coletiva e tendem a
desaparecer com as gerações seguintes. Os registros, contudo, permanecem e
ocasionalmente são resgatados. Um exemplo eloquente é o livro do Êxodo e o papiro
Ipuwer, que assinalam uma catástrofe de extraordinária proporção que ocorreu no Egito
há 3.500 anos e que muitos pensam ser apenas uma lenda.
Há muitos relatos e reportagens nos jornais da época, mas o relatório de José Pereira
Rego (Marques, 1991) nos dá informes exatos sobre como a cólera entrou no país vinda
da Europa, então vitimada pela pandemia. Rego nos informa que o cholera morbus
chegou ao Brasil em 1854 através de navios ingleses com marinheiros acometidos da
doença, mas a primeira notícia da doença em terra brasileira ocorreu em 1855 no Porto
do Pará, com portugueses doentes a bordo da galera Defensor, que teriam sido as
sementes infecciosas. A doença se espalhou rapidamente e logo foi decretado estado de
epidemia, com um total de cinco mil mortes em pouco tempo. Vários portos do Pará já
estavam sob contágio.
O segundo ponto de entrada da doença foi Manaus, através do vapor paraense Marajó; o
terceiro ponto foi Salvador, pelo navio inglês Mercury ou pelo vapor paraense
Imperatriz; e o quarto ponto foi o Rio de Janeiro, pelo vapor S. Salvador. A partir daí,
sempre por via marítima, a cólera chegou a Santa Catarina e ao Rio Grande do Sul e
prosseguiu seu contágio avançando para além do litoral. Rui João Marques (1990) faz
um relato detalhado do trajeto da epidemia em Pernambuco. A cólera entrou no Estado
por terra, em Garanhuns, através de doentes provenientes de Alagoas. A partir daí se
disseminou por vários municípios, incluindo Recife. O município mais atingido foi o de
Vitória de Santo Antão, onde morriam mais de 70 pessoas por dia e em poucas semanas
o número de mortos era enorme, não havendo lugar onde enterrá-los e nem coveiros
suficientes para a tarefa, permanecendo as residências e ruas cheias de cadáveres por
dias e dias. Em 1856 o Diário de Pernambuco publicou o relatório do conselheiro
Sergio Teixeira de Macedo apresentado à Assembléia Legislativa Provincial sobre o
infortúnio que essa doença macabra trouxe ao estado: “ceifou 37.586 vidas (na
proporção de 23 por cento dos acometidos), segundo as presunções e dados incompletos
que se puderam obter”. No Rio de Janeiro, contaram-se 4.818 mortes entre 1855 e 1856
(a cólera retornou em 1867-1868 juntamente com a varíola, devido à movimentação de
tropas pela Guerra do Paraguai). Ainda em 1856, em Porto Alegre, então uma cidade
pequena, com 17.000 habitantes, em pouco tempo contava 1.700 mortos (em um total
de 4.000 mortes em todo o Estado do Rio Grande). De norte a sul a epidemia grassava,
trazendo terror e sofrimento (para um relato mais detalhado, ver Cooper, 1986).
Em 1855, John Snow provou, em Londres, que a cólera estava diretamente relacionada
ao grau de contaminação fecal das águas de consumo, mas no Brasil ainda se
raciocinava como uma doença trazida pela “infecção do ar”, e algumas províncias
queimavam fogueiras de alcatrão nas ruas para afastar o miasma. Mas o que em vão se
tentava expulsar do ar estava, contudo, na água e nos alimentos contaminados. A
imundície das ruas das cidades brasileiras e a falta de higiene desde a Corte às demais
capitais de províncias era um fato gritante, e não é de se espantar por que todas as
doenças aqui vicejavam, em paródia diabólica ao famoso dito carta de Pero Vaz de
Caminha a El Rei de Portugal: “No Brasil, em se plantando, tudo dá.”
Também não faltaram os remédios milagrosos. A maioria desses remédios eram
invenções de escravos e de índios, cuja influência na medicina popular era imensa,
perdurando até a segunda metade do século XIX, quando o povo começou aos poucos a
confiar nos médicos das Faculdades. Os jornais colaboravam para disseminar as
novidades milagrosas. Por exemplo, o Diário de Pernambuco, em sua edição de 18 de
fevereiro de 1856, publicou uma nota revelando que um escravo do senhor do Engenho
de Guararapes descobrira uma fórmula que havia curado muita gente de cólera, fato que
foi desmentido pela Junta de Higiene (Marques, 1991). Ainda nessa mesma edição, o
jornal publicava uma fórmula “infalível” de ervas trituradas em azeite de carrapateira
com a qual se devia untar todo o corpo. Dias depois, o mesmo jornal publicava uma
descoberta de outro escravo, novamente desmentida pela junta. O próprio governador da
província não proibia esses remédios caseiros, mas recomendava que só fossem usados
com a supervisão de um médico.
No final do século XIX a doença foi considerada erradicada do país. Contudo, em 1991
o biótipo El Tor retornou ao Brasil através do Peru, sendo a primeira cidade atingida
Tabatinga (Alto Solimões), no Amazonas, daí se espalhando para o Norte e o Nordeste,
permanecendo ativa até 1996, mas em todos os casos sem o alarde do passado. Ao todo,
registrou-se um total de 154.415 casos, dos quais 141.856 concentrou-se no Nordeste,
com letalidade variando de 0 a 6,7% (Gerolomo e Penna, 1999), segundo a precocidade
do diagnóstico e tratamento. A baixa mortalidade decorreu da assistência médica da
população e de métodos de tratamento adequados e eficientes, o que faltava ao público
no passado.
A cólera ocasionou seis pandemias entre 1817 e 1923, causadas pelo sorotipo clássico
O1. A atual, a sétima, causada pelo biótipo El Tor, começou na Indonésia, em 1961,
disseminou-se por outros países na Ásia, Oriente Médio, África (onde teve 70% de
todas as notificações), Europa e, em 1991, América do Sul, via cidades litorâneas do
Peru, atingindo o Brasil, como já dito, pela região do Alto Solimões, no Amazonas. Em
1992, um novo sorogrupo enterotoxígeno, O139, surgiu na Índia e rapidamente atingiu
o Paquistão, Bangladesh e China. Em 2010, uma epidemia pelo biótipo El Tor invadiu o
Haiti depois de um terremoto que praticamente destruiu boa parte do país.
Pensamos que hoje vivemos a pandemia da Sars-2, denominada Covid-19, algo novo e
inusitado. A imprensa e muitos cientistas da geração atual dizem ser o “maior desastre
da história da humanidade”. Quanto engano. As pandemias são sempre as mesmas,
alarde, espanto e depois esquecimento.
Nihil novum sub solem.
(Este artigo é parte de um capítulo do livro Pandemias, Virulência e Catástrofes, de
Fernando Portela Câmara)