Março de 2020 – Vol. 25 – Nº 3

Walmor J. Piccinini

Introdução

Escrever sobre história é uma tarefa interessante e permite dar rédea solta à imaginação. Começar simplesmente com o a instalação do Hospício Pedro II no Rio de Janeiro não permite esquecer uma série de acontecimentos prévios que nos levaram até aquele momento. Vamos começar a nomear os personagens que fizeram parte da constelação de acontecimentos que desencadearam aquele fato histórico. Como numa peça de teatro podemos citar os personagens e incidentes com papel direto ou indireto nos acontecimentos: Começamos pela “Guerra das Laranjas” de 1801 entre Portugal e Espanha. Guerra que não aconteceu graças aos malabarismos de D. João VI, na época príncipe regente da Coroa Portuguesa. A guerra não ocorreu, mas a notícia chegou no sul do Brasil e teve consequências territoriais extraordinárias. O chefe da guarnição militar de Rio Grande, baseado na informação de declaração de guerra atacou as posições espanholas no território sul e expulsou os espanhóis para além do rio Uruguai, estabelecendo as fronteiras do que hoje conhecemos como o Estado do Rio Grande do Sul. Quando chegaram as notícias do tratado de paz assinado entre os ibéricos, não se voltou atrás e as fronteiras permaneceram como estavam e estão até hoje. O segundo acontecimento foi a Batalha de Trafalgar em 1805, nela, a marinha inglesa treinada e chefiada pelo Almirante Nelson derrotou a Armada Espanhola e francesa. Apesar da morte de Nelson no primeiro dia de enfrentamento, os ingleses destruíram os navios espanhóis e franceses e passaram a dominar os mares do mundo. As consequências foram a libertação das colônias americanas espanholas e a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808. O motivo já é bem conhecido, Napoleão resolveu invadir Portugal para impedir que os ingleses tivessem um porto que facilitasse sua invasão europeia. Novamente o príncipe regente tentou negociar uma solução, mas desta vez nada conseguiu e, diante da iminente invasão de Portugal pelas tropas francesas e espanholas, foi aconselhado pelos ingleses a se retirar para o Brasil. Imaginem a cena, 14 mil nobres portugueses, com seus bens mais valiosos embarcando em navios protegidos pelos ingleses e rumando para sua colônia de além mar.

As consequências foram positivas para o Brasil que foi promovido a Vice-Reino, teve a abertura dos portos, a imprensa oficial, a possibilidade de comunicação entre as antigas capitanias hereditárias, o ensino superior e muitas outras coisas. Um dos primeiros atos do príncipe regente foi a criação dos Cursos médico-cirúrgicos da Bahia e do Rio de Janeiro.

Nesta criação dos Cursos, foi de fundamental importância a figura do médico José Maria Picanço, nascido em Pernambuco e atuante na corte portuguesa. Teve destaque na assinatura do laudo que atestou a incapacidade da Rainha D. Maria I de governar. A rainha, depois chamada de a Rainha Louca, veio para o Rio de Janeiro e ali faleceu sob os cuidados de damas de companhia e a atenção permanente do seu filho D. João VI. Relatos da vida do príncipe regente, eram contraditórios, uns o apresentavam como indolente, avesso ao banho e sempre carregando coxinhas de galinha nos bolsos do casaco, contrastam com o mundo real onde seu malabarismo para vencer os espanhóis diplomaticamente e a enrolar Napoleão o quanto foi possível e sua atuação em favor do filho mostram uma pessoa diferente. Sem muito destaque se fala do carinho que dedicou a mãe doente a quem visitava diariamente. Não há referências a respeito, mas podemos livremente deduzir que a ideia de construir palácios para colocar os “loucos”, tenha nascido ali nos cuidados da Rainha Maria I. (1734-1816). Sobre ela pode-se visitar a Enciclopédia Virtual (Wikipedia) e o livro da historiadora (Mary del Priori) sobre sua vida. (D. Maria I: As perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca” ).

Uma outra mulher notável foi a Imperatriz Leopoldina (1797-1926), primeira esposa de D. Pedro I e mãe do que viria ser o grande personagem do Brasil Imperial, seu filho D. Pedro II.

Imaginem uma princesa da Casa Habsburgo, nascida no Palácio de Schönbrunn em Viena tendo que obedecer às ordens do pai, Francisco I, Imperador da Áustria para casar-se com um príncipe português da Casa de Bragança e vir para o Brasil. Casou por procuração em Viena em 1816 e morreu no Rio de Janeiro dez anos depois.  O pouco tempo de vida não impediu que tivesse muitos filhos, fosse protagonista no dia do Fico e estivesse na Regência do Império por ocasião da independência.  Graças a ela e a força do seu pai na política europeia o Brasil foi reconhecido internacionalmente. (Para ampliar conhecimento sobre D. Leopoldina sugerimos o livro de Paulo Rezzutti sobre a mulher que arquitetou a Independência do Brasil).

Como vemos, antes mesmo de entrarmos na História da Psiquiatria tivemos que viajar por acontecimentos que estão interligados: A Batalha das Laranjas, a Batalha de Trafalgar, a vinda da Coroa Portuguesa ao Brasil, Dona Maria I (A Piedosa, a Louca, “Maria vai com as outras”), a  Imperatriz Leopoldina e seu filho Dom Pedro II).

Depoimento `margem da história

Estava no quarto ano de Medicina quando fui indicado para estágio no Hospital da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul. Na ocasião acumulava vários trabalhos, era atendente no IAPB. Atendente na Clínica Pinel de Porto Alegre, plantonista do Hospital Espírita de Porto Alegre, Vice-presidente do Centro Acadêmico Sarmento Leite da Faculdade de Medicina da UFRGS e para completar era zagueiro da equipe de futebol da Faculdade. Nada disto importa muito para o que vou relatar. O Hospital da BM, se é que se pudesse falar em hospital, era um prédio velho, caindo aos pedaços, situado nos altos da Vila Assunção em Porto Alegre. Comecei a atender os soldados e logo que o Dr. David E. Zimerman sentiu que eu estava à vontade, pediu demissão do cargo de capitão e foi tratar da sua formação analítica. Não exagero quando digo que o dito hospital era precário, mas servia ao propósito de atender os soldados, na maioria de origem humilde e que residiam em condições até piores. Um dos cirurgiões, homem de temperamento explosivo, do tipo do italiano invocado, costumava exclamar: “não aguento mais este pardieiro, tenho vontade de botar fogo neste chiqueiro”, palavras que expressavam sua frustração, mas que um sargento levou a sério e levou uma denúncia ao diretor do Hospital. Eram tempos revolucionários, o medo da repressão era grande e a tal denúncia seguiu os trâmites habituais e resultou num Inquérito Policial Militar contra o médico. Este processo levou um tempão, neste meio termo o hospital foi demolido e fomos transferidos para instalações provisórias enquanto construíam o novo hospital. A burocracia militar era lenta e parecia que o tal IPM tinha sido esquecido quando ressurgiu assustador. O cirurgião vivia angustiado e temeroso de perder seu cargo de capitão. Recebeu apoio de todos colegas e foi inocentado do tal IPM. Eu muito aliviado, pois temia ser arrastado para o problema já que era dirigente estudantil e tinha sido preso meses antes. Foi uma prisão, mais do tipo de dar um susto, mas o receio das consequências estava sempre presente. Por algum motivo que nunca descobri, o comando da BM não aceitou a conclusão do IPM e foi aberto um novo IPM contra o Coronel que havia declarado o médico inocente. Felizmente este coronel era amigo do chefão da Brigada Militar e o novo IPM foi arquivado. É claro que relatar o caso, assim meio que superficialmente não dá ideia do medo que assombrou todos os envolvidos. Quando me formei, tive uma situação especial. Fui credenciado como médico do Instituto os Bancários, convidado para ser médico do Hospital Espírita, fui aceito na Residência em Psiquiatria da Pinel e nomeado médico da Brigada Militar. Acrescento que estava em formação analítica e segui jogando meu futebol. Como conseguia fazer tudo isto, não sei, tudo me parecia muito natural. Certamente bem diferente dos tempos atuais em que um jovem médico tem que lutar para conseguir uma vaga de residente, tem que passar por vários exames e disputar um lugar ao sol com milhares de colegas.

O primeiro curso de psiquiatria começou em 1957, a primeira Residência em Psiquiatria em 1960. Antes existiam alguns cursos intensivos dados pela DINSAM no Rio de Janeiro. De modo geral, os futuros médicos psiquiatras aprendiam em estágios em alguns serviços e com alguns professores que também tinham aprendido pelo acompanhamento de um psiquiatra mais experiente.

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