Fevereiro de 2020 – Vol. 25 – Nº 2
Capítulo 4. Continuação do livro disponível para aquisição na amazon.com.br)
Os jornais e os ativistas antipsiquiátricos, pelo contrário, criticaram a APA por <<decidir sobre a doença mental por votação democrática>>. Uma doença mental ou era uma doença médica ou não era, diziam os críticos com um tom de gozação: nunca verias os neurologistas decidindo por votação se um vaso sanguíneo obstruído no cérebro constituía uma apoplexia, certamente não, Assim, pois, em vez de dar um empurrão na imagem da psiquiatria que andava muito necessitada, o episódio acabou gerando outra ocasião embaraçosa para uma profissão assediada em todas as frentes.
Mesmo que o resto do mundo não visse desta forma, Spitzer havia concluído uma impressionante façanha de diplomacia diagnóstica. Havia introduzido uma nova e influente forma de conceber a doença mental mediante a noção de <<angústia subjetiva>>; tinha conseguido contentar os ativistas gays e havia driblado eficazmente as críticas dos antipsiquiátricos. Estas conquistas não passaram desapercebidas entre os dirigentes da Associação Psiquiátrica Americana.
Na reunião de urgência celebrada no momento mais doloroso da crise da antipsiquiatria, em fevereiro de 1973, a junta diretiva da APA compreendeu que o melhor meio de deter a enxurrada de críticas contra a profissão era apresentar uma mudança fundamental no modo de conceituar e diagnosticar a doença mental: uma mudança baseada na ciência empírica e não em dogmas freudianos. Todos concordaram que a maneira mais convincente para demonstrar esta mudança era reformar o compêndio oficial da APA sobre doença mental.
Ao terminar a reunião de emergência, os dirigentes tinham autorizado a criação da terceira edição do Diagnostic and Statistical Manual e encarregado o próximo grupo de trabalho do DSM que <<definisse a doença mental e definisse o que é um psiquiatra>> .Porém, se a APA queria ir mais além da teoria freudiana -uma teoria que ainda determinava o modo de diagnosticar pacientes pela grande maioria dos psiquiatras-, como deveria definir a doença mental?
Um psiquiatra tinha a resposta: <<Quando na reunião urgente da junta diretiva decidiu autorizar um novo DSM, era claro que eu queria dirigir o processo – recorda Spitzer-. Falei com o diretor médico da APA e lhe disse que me agradaria assumir este posto>>. A Junta da APA, consciente de que a nova edição do DSM requeria mudanças radicais, e tendo observado a capacidade de Spitzer de manejar o conflitivo dilema sobre a homossexualidade, o nomeou diretor do grupo de trabalho do DSMIII.
Spitzer não ignorava que, se quisesse mudar o critério da psiquiatria para diagnosticar os pacientes, necessitaria de um sistema completamente novo para definir doença mental: um sistema baseado na observação e nos dados empíricos, e não na tradição e no dogma. Acontece que nos Estados Unidos havia apenas um local onde se havia desenvolvido um sistema com estas características.
O Critério Feighner
Nos anos 20, o pequeno número de psiquiatras americanos se sentia só e ignorado, confinado na sua própria ilha psiquiátrica, longe do continente dos alienistas. Porém, em 1973, quando ocorreu a reunião de urgência da APA, os ventos haviam mudado. Os psicanalistas tinham remodelado o corpo principal da psiquiatria americana à imagem e semelhança de Freud, fazendo com que os poucos psiquiatras biológicos e kraepelinianos se sentissem acossados e isolados. Apenas um punhado de instituições tinham conseguido resistir a invasão psicanalítica e mantiveram uma investigação psiquiátrica dentro de um enfoque equilibrado. O mais notável destes focos de resistência estava apropriadamente situado no orgulhoso estado do Missouri. Três psiquiatras da Universidade Washington de San Luis – Eli Robins, Samuel Guze e George Winokur – haviam rompido com seus colegas da psiquiatria acadêmica ao adotar um enfoque diagnóstico bem diferente. Eles baseavam suas opiniões iconoclastas num fato indiscutível: ninguém havia em tempo algum demonstrado que os conflitos inconscientes (nem nada parecido) causava o fato da doença mental. A falta de provas claras de uma relação causal, Robins, Guze e Winokur defendiam que os diagnósticos não deveriam ser elaborados a partir de mera inferência especulativas. Os freudianos poderiam convencer-se a si mesmos da existência da neurose, porém não se tratava de um diagnóstico científico. Por outro lado, se a medicina não possuía nenhum conhecimento sólido do que causava as diferentes doenças mentais, como acreditava o trio da Universidade de Washington com poderiam defini-las?
Recuperaram o enfoque de Emil Kraepelin, centrado nos sintomas e sua evolução. Se fosse possível chegar a um acordo sobe uma série determinada de sintomas, assim como na sua evolução temporal, para o caso de cada suposto transtorno, então os médicos diagnosticariam as doenças da mesma forma, fosse qual fosse sua orientação teórica. Isto asseguraria uma grande coerência e confiabilidade dos diagnósticos, afirmava o grupo da Universidade Washington: duas características clamorosamente ausentes no DSM-I e II. O trio tinha convicção que Kraepelin podia salvar a psiquiatria.
Robins, Guze e Winokur procediam de famílias da Europa Oriental que tinham emigrado recentemente para os Estados Unidos. Almoçavam juntos cada dia, pondo em comum suas ideias e unidos num objetivo compartilhado por seu isolamento com respeito ao resto da psiquiatria. (Sua marginalidade implicou na recusa do Instituto Nacional de Saúde Mental lhes negou financiamentos para realizar estudos clínicos desde os anos cinquenta até o final dos anos sessenta). Segundo Guze, os psiquiatras da Universidade de Washington, na década de 60, começaram a se dar conta de um fato importante: <<Existiam pessoas por todo o país que queriam algo diferente em psiquiatria e que estavam esperando que algum investigador ou algum Centro tomasse a iniciativa. Isto foi uma grande vantagem para nós na hora e recrutar colaboradores. Aos residentes que buscavam uma formação diferente da psicanalítica lhes diziam que viessem a San Luis. Recebemos um montão e residentes interessantes>>. Um desses residentes era John Feighner. Depois de graduar-se na Faculdade de medicina da Universidade de Kansas, Feighner que pensava estudar Medicina Interna, foi recrutado para fazer o serviço militar. Serviu no exército cuidando veteranos do Vietnam. A observação direta da destruição psíquica que os soldados sofriam deixou-o tão emocionado que, quando foi liberado, mudou completamente de objetivo, e em 1966 entrou para a Universidade de Washington para estudar Psiquiatria.
No seu terceiro ano de residência, Feighner foi convidado a assistir as reuniões de Robins, Guze e Winokur. Rapidamente absorveu o enfoque kraepeliniano do diagnóstico e, baseado em suas ideias, decidiu tratar de desenvolver um critério diagnóstico para a depressão. Revisou cerca de um milhar de artigos sobre transtornos do estado de ânimo e, a partir destes dados, postulou uma série de sintomas específicos para a depressão. Impressionada pelos rápidos progressos do seu residente, a trindade da Universidade de Washington formou um comitê para ajudar Feighner e o animou a buscar critérios não só para a depressão, mas também para todas as doenças conhecidas.
O comitê, do qual também participavam os psiquiatras da Universidade Washington, Robert Woodruff e Rod Muñoz, se reuniu semanalmente ou a cada duas semanas durante um período de nove meses. Feighner trabalhou incansavelmente, trazendo todos os artigos que pode encontrar sobre cada transtorno para revisão por parte do comitê e os utilizasse com o objetivo de propor critérios em debate, seu refinamento e aprovação em comum. Feighner publicou o sistema definitivo no prestigioso Archives of General Psychiatry, sob o título <<Critérios diagnósticos para uso na Pesquisa Psiquiátrica>>, o sistema pronto seria imortalizado com o nome de Critérios Feighner. O artigo concluía com um tiro de canhão de advertência a psicanálise:<<Estes sintomas representam uma síntese baseada em dados, não em opiniões ou tradições>>.
Os Critérios Feighner se converteram com o tempo, numa das mais influentes publicações na história da medicina e um dos artigos mais citados que tenha sido publicados numa revista de psiquiatria, pois recebeu uma série de 145 citações anuais desde sua publicação até a década de 1980, enquanto um artigo standard publicado nos Archives of General Psychiatry no mesmo período obtinham apenas duas citações ao ano. Quando o artigo foi publicado, entretanto, teve pequeno impacto na prática clínica. Para a maioria dos psiquiatras o sistema diagnóstico da Universidade de Washington parecia mais um exercício acadêmico inútil, uma investigação esotérica de escassa relevância na hora de tratar os pacientes neuróticos que viam na sua prática clínica. Alguns psiquiatras, porém, registraram o fato. Um deles foi Robert Spitzer. Outro fui eu.
Cinco anos depois da publicação do seu artigo, Feighner veio ao hospital St. Vincent de Nova Yorque, aonde eu fazia o segundo ano de residência para pronunciar uma conferência sobre seus novos critérios diagnósticos. Feighner não impressionava fisicamente ao falar, mas sua atitude impetuosa e sua enérgica inteligência lhe conferia um aspecto carismático. Suas ideias encontravam eco no crescente desencanto que eu sentia pela psicanálise e eram um apelo para a confusa realidade clínica que eu enfrentava diariamente com meus pacientes.
Segundo o costume, depois da conferência, os residentes do St. Vincent almoçavam com o orador. Enquanto comíamos pizza e tomávamos refrigerantes, enchíamos Feighner de perguntas, recordo que o interroguei com transbordante entusiasmo; inclusive o acompanhei fora do hospital ao longa da calçada, enquanto buscava um táxi, tentando prolongar o mais possível a conversação. Ele me explicou que acabava de mudar de faculdade para incorporar-se ao recém fundado departamento de Psiquiatria da Universidade da California em San Diego e que tinha aberto um hospital privado no vizinho Rancho Santa Fé, que empregava seus novos métodos diagnósticos: o primeiro hospital deste tipo. Este encontro com Feighner se tornou providencial para mim.
Uns meses mais tarde recebi uma chamada de u tio meu, que me explicou que sua filha, minha prima Catherine, estava tendo problemas enquanto estudava numa Universidade do Meio Oeste. Fiquei surpreso porque eu tinha sido criado com ela e a considerava uma menina inteligente, sensata e equilibrada. Porém, segundo explicação do seu pai, agora estava totalmente descontrolada. Saia para festas muito tarde, se embebedava, praticava sexo sem precauções e mantinha múltiplas relações tumultuadas. Ao mesmo tempo, podia ficar recolhida no seu quarto durante dias, faltando aulas e negando-se a ver pessoas. Meu tio não sabia o que fazer. Chamei a companheira de quarto de Kathy e ao conselheiro do seu residencial. Pelas descrições que me fizeram, parecia sofrer de algum tipo de transtorno maníaco-depressivo, atualmente chamado de transtorno bipolar. Mesmo que a universidade contasse com um serviço de saúde mental, o pessoal do mesmo era reduzido a psicólogos e assistentes sociais que basicamente eram orientadores. O departamento de Psiquiatria da universidade, por outro lado, era dirigido por psicanalistas, tal como todos os centros psiquiátricos importantes da época (incluindo a Clínica Menninger, o Austen Riggs Center e o Chestnut Lodge, o Shepard Pratt e a Clínica Payne Whitney). Eu tinha começado a questionar a eficácia dos tratamentos psicanalíticos e não queria colocar minha prima nas mãos de nenhuma destas instituições freudianas. Porém, neste caso, como poderia ajudar a Kathy? De repente tive uma inspiração: chamaria John Feighner.
Expliquei-lhe a situação de Kathy e montei um plano para que a internassem no novo hospital situado no outro extremo do país, e para que a atendesse pessoalmente. Depois do internamento, Feighner confirmou meu diagnóstico de transtorno maníaco-depressivo valendo-se dos Critérios Feighner, a tratou com lítio (um novo fármaco, tremendamente controvertido) e, em questão de semanas, estabilizou seu quadro. Kathy recebeu sua alta, retomou aos estudos e se graduou sem perder nenhum curso.
Hoje em dia não sou partidário de enviar pacientes para fora do Estado para que recebam tratamento psiquiátrico, porque é factível encontrar uma atenção competente num centro local. Acontece que, em 1977, nesta fase inicial da minha carreira, não tinha a suficiente confiança na minha própria profissão para arriscar a saúde de um ser querido colocando-a nas mãos da atenção psiquiátrica que existia na época.
Ainda que Feighner tenha me produzido uma grande impressão, como já disse, seus critérios foram, em geral, acolhidos com indiferença. Aos psiquiatras kraepelinianos da Universidade de Washington, segundo a historiadora Hannah Decker, tampouco os surpreendeu esta repercussão escassa. Eles acreditavam que teriam sorte se produzissem agitação mesmo pequena num campo dominado pela psicanálise.
O resultado é que tiveram sorte.
Um livro que mudou tudo
<<A turma da Universidade de Washington sentiu entusiasmo ao saber que eu iria dirigir o grupo de trabalho, porque eles ocupavam uma posição totalmente marginal e, sem dúvida, eu iria agora utilizar seu sistema diagnóstico para o DSM>>, nos disse Spitzer com um sorriso. Ele tinha conhecido o grupo da Universidade Washington em 1971, dois anos antes de ser nomeado diretor do DSM-III, enquanto estava trabalhando num estudo sobre a depressão do Instituto Nacional de Saúde Mental. O chefe do projeto sugeriu a Spitzer que visitasse a Universidade Washington para estudar as ideias kraepelinianas sobre o diagnóstico da depressão que eram propostas por Feighner e pelo trio formado por Robins, Guze e Winokur. <<Quando ali cheguei e descobri que estavam elaborando repertório de sintomas para cada transtorno a partir de dados das investigações publicadas – explicou Spitzer com evidente satisfação-, foi como seu eu tivesse despertando no final de e um feitiço. Finalmente uma maneira de abordar o diagnóstico, totalmente afastado das nebulosas definições psicanalíticas do DSM-II>>.
Armado com os Critérios Feighner e decidido a enfrentar as afirmações do movimento antipsiquiátrico com um sistema diagnóstico sólido e confiável, abordou sua primeira tarefa como diretor, que era nomear os demais membros do grupo de trabalho do DSM-III. <<Deixando de lado a junta diretiva da APA, ninguém se importava o novo DSM, assim que o processo esteve sempre sob meu controle – explica Spitzer-. Não tive que discutir as nomeações com ninguém, desta forma a metade era do tipo de estilo Feighner>>.
Quando os sete membros do grupo de trabalho, se reuniu pela primeira vez, cada um deles acreditava inevitavelmente que seria o bicho raro e que seu desejo de introduzir mais objetividade e precisão no diagnóstico representaria uma visão minoritária. Para a surpresa de todos descobriram que estavam unanimemente a favor do <<empirismo puro e duro>> da Universidade Washington. Existia uma coincidência geral em dois pontos: O DSM deveria ser arrojado pela borda sem concessões e o DSM-II teria que empregar critérios concretos baseados em sintomas, não em descrições gerais. Uma integrante do grupo, Nancy Andreasen, da Universidade de Iowa, relembra: <<Todos tínhamos a sensação de estar organizando uma pequena revolução na psiquiatria americana>>.
Spitzer formou 25 subcomitês independentes, cada um encarregado de elaborar descrições detalhadas das variedades de doenças, como por exemplo os transtornos de ansiedade, os transtornos do estado de ânimo ou os transtornos sexuais. Para alimentar este comitês, Spitzer escolheu psiquiatras que antes de tudo se consideravam cientistas, mais do que clínicos, e lhes ordenou que reunissem todos os dados publicados relativos ao estabelecimento de possíveis critérios diagnósticos, sem se importar se tais critérios se afastavam ou não da visão tradicional do transtorno mental.
Spitzer mergulhou na criação do novo DSM com tanta energia e concentração que trabalhava sete dias da semana, às vezes durante doze horas diárias – relembra-. Em ocasiões acordava Janet na metade da noite para perguntar sua opinião sobre determinado ponto e então ela se levantava e ambos se colocavam a trabalhar juntos. A mulher de Spitzer, Janet Williams, que possuía um doutorado em Assistência Social é uma destacada especialista em avaliação diagnóstica, concorda que o DSM-III foi um projeto absorvente para os dois. <<Ele respondia todas e cada uma das cartas que recebia do grupo de trabalho enquanto estava encarregado de dirigir o DSM-III, e respondia a cada artigo crítico, por muito irrelevante que fosse a revista; e temos que recordar que tudo isto era antes de aparecerem os ordenadores – explica Janet-. <<Por sorte, éramos muito rápidos com a máquina de escrever>>. Jean Endicott, uma psicóloga que colaborou estreitamente com Spitzer, relembra: <<Chegava na segunda-feira. Depois de, evidentemente, ter passado todo fim de semana trabalhando no DSM. E se te sentavas com ele no avião, não havia dúvida sobre qual ia ser o assunto de conversação>>.
Spitzer propôs de saída uma ideia que se fosse adotada – alteraria de um modo fundamental e irrevogável a definição médica de doença mental. Propôs abandonar o critério que os psicanalistas haviam considerado essencial na hora de diagnosticar o sofrimento de um paciente, a saber: a causa da enfermidade, ou o que os médicos chamavam etiologia. Desde Freud, os psicanalistas acreditavam que a doença mental era causada por conflitos inconscientes. Se identificasses os conflitos, identificarias a doença, rezava a venerável doutrina freudiana. Spitzer rechaçava esse enfoque. Compartilhava a visão do grupo da Universidade Washington segundo os quais não existiam provas da causa de nenhuma doença (deixando de lado as adições); e queria suprimir todas as referências à etiologia que não estivessem apoiadas por dados rigorosos. O resto do grupo de trabalho estava de acordo por unanimidade.
Para substituir as causas, Spitzer estabeleceu dois novos critérios essenciais para qualquer diagnóstico: 1) os sintomas devem ser angustiantes para o indivíduo, ou devem minar sua capacidade de funcionar (este era o critério de <<angústia subjetiva>> que tinha sido proposto
Como princípio para tratar de despatologizar a homossexualidade: e 2) os sintomas devem ser duradouros (isto queria dizer, se estás abatido durante um dia pela morte do teu hamster, isto não constituía depressão.
Esta era uma definição de doença mental radicalmente diferente de qualquer outra anterior. Não só se distanciava claramente da visão psicanalítica, segundo a qual, a doença mental de um paciente podia permanecer oculta para o próprio paciente, sem que além disto corrigia a definição de Emil Kraepelin, que não fazia nenhuma referência a angústia subjetiva e considerava também doenças, os sofrimentos efêmeros.
Spitzer estabeleceu para diagnosticar aos pacientes, um processo de dois passos que era tão sensível como surpreendentemente novo. Primeiro deveria se determinar a presença (ou ausência) de sintomas específicos e por quanto empo tinham estado ativos; a seguir se comparava estes sintomas observados com o conjunto de critérios fixados para cada transtorno. Se os sintomas encaixavam nos critérios, então o diagnóstico estava justificado. Assim de forma simples. Nada de remexer no inconsciente do indivíduo em busca de chaves para o diagnóstico; nada de interpretar o simbolismo latente dos sonhos: se tratava simplesmente de identificar condutas, pensamentos e manifestações fisiológicas completas.
O grupo de trabalho do DSM-III advertiu em seguida que, para se ater fielmente aos dados publicados, com frequência era necessário criar um conjunto bem mais completo de critérios. No DM-II, por exemplo, a esquizofrenia se definia mediante uma série de descrições impressionistas, como por exemplo esta definição de esquizofrenia paranoide:
Est tipo de esquizofrenia se caracteriza principalmente pela presença de delírios persecutórios ou de grandeza, acompanhados, muitas vezes, por alucinações. Se observa às vezes, uma religiosidade desmesurada. A atitude do paciente pode ser hostil e agressiva, sua conduta tende a amoldar-se aos delírios.
Em contraste, o DSM-III proporcionava vários conjuntos ou subconjuntos de critérios para um diagnóstico de esquizofrenia. Eis aqui, por exemplo, o critério C: Ao menos três das seguintes manifestações devem estar presentes para um diagnóstico <<definitivo>> de esquizofrenia, e dois para um diagnóstico <<provável>> de esquizofrenia. 1) Solteiro (nunca esteve casado). 2) Adaptação social pré-mórbida ou história laboral pobre 3) História familiar de esquizofrenia. 4)Ausência de álcool ou de abuso de drogas no ano anterior ao início da enfermidade psicótica. 5)Início da enfermidade antes dos quarenta anos.
Os críticos em seguida criticaram as complicadas instruções – <<Selecione um dos critérios A, selecione dois dos critérios B>> comparando este tipo de diagnóstico de <<menu chinês>> (pelas cartas dos restaurantes chineses com opções múltiplas que então se ofereciam.
Spitzer e o grupo de trabalho replicaram que esta complexidade maior dos critérios diagnósticos correspondia muito melhor com a realidade empiricamente observada dos transtornos mentais do que as ambíguas vaguedades do DSM-II.
Havia, porém, um problema importante na utópica visão do grupo de trabalho de uma psiquiatria mais científicas: para muitos transtornos, a investigação científica ainda não havia sido feita. Como poderia Spitzer determinar que os sintomas constituíam um transtorno quando tão poucos psiquiatras, deixando à pare a Universidade Washington e algumas outras instituições, estavam realizando uma investigação rigorosa deles? O que era preciso para o grupo de trabalho eram estudos transversais e longitudinais dos sintomas dos pacientes: estudos que precisaram, além do mais, como evoluíam esses conjuntos de sintomas, como se apresentavam nas famílias, como respondiam ao tratamento e como se modificavam frente aos acontecimentos vitais. Spitzer sustentava que os diagnósticos deveriam basear-se em dados publicados, porém tais dados eram com frequência muito escassos.
Quando não havia um amplo repertório bibliográfico sobre um diagnóstico concreto, o grupo de trabalho seguia um procedimento metódico. Primeiro contactava com os investigadores para confirmar dados não publicados ou <<literatura cinza>> (informes técnicos, livros brancos ou outros materiais não publicados sob revisão acadêmica). Segundo, fazia contato com especialistas com larga experiência no diagnóstico em questão.
Finalmente, todo grupo de trabalho debatia o critério proposto até alcançar um consenso. Spitzer me explicou: <<Procurávamos que o critério representava as conclusões mais depuradas da gente que tinha mais experiência neste terreno. O princípio orientador era que o critério devia ser lógico e racional>>. O DSM-III acrescentou muitos transtornos novos, incluídos o transtorno do déficit da atenção, o autismo, a anorexia nervosa, a bulimia, o transtorno de pânico e o transtorno de estresse post traumático.
Havia um objetivo manifestadamente não científico que influía em novos critérios diagnósticos: conseguir que as companhias seguradoras custeassem os tratamentos. Spitzer sabia que as companhias estavam recortando as prestações de saúde mental nas suas apólices por causa do movimento antipsiquiátrico. Para impedir este fato, o DSM-III afirmava que seus critérios não constituíam a última palavra e afirmava, pelo contrário, que o << juízo clínico tem importância primordial para estabelecer um diagnostico>>. Os membros do grupo de trabalho acreditavam que esta declaração protegeria os psiquiatras frente a possibilidade de uma Companhia seguradora alegasse que um paciente não encaixava exatamente nos critérios enumerados no DSM. Na realidade, o tempo demonstrou que as companhias não costumam questionar os diagnósticos dos psiquiatras; entretanto costuma questionar a escolha e a duração do tratamento para um diagnóstico concreto.
O DSM-III representava um enfoque revolucionário da doença mental: um enfoque nem psicodinâmico, nem biológico que permitia incorporar as investigações de qualquer campo teórico. Ao desestimar as causas (incluída a neurose) como critério diagnóstico, o DSM-III também representava uma total negação da teoria psicanalítica. Antes do DSM-III, os Critérios Feighner eram utilizados apenas na investigação acadêmica, não na prática clínica. Agora o DSM-III convertia os Critérios Feighner na lei vigente no terreno clínico. Porém, primeiro deveria ser superado um obstáculo, e era um de enormes proporções.
O DSM-III somente seria publicado pela APA se seus membros o aprovassem por votação. Em 1979, a maioria de seus membros – uma forte e ruidosa maioria- eram psicanalistas. Como Spitzer iria convencê-los a apoiarem um livro que entrava em choque com seu foco diagnóstico e que poderia significar sua perdição?
O Enfrentamento
Durante sua permanência no posto, Spitzer comunicou com toda transparência os progressos do grupo de trabalho no DSM-III. Utilizava um fluxo regular de cartas pessoais, atas das reuniões, informes, boletins, publicações e conversas ao pé do ouvido. Toda vez que realizou apresentações publicou avanços sobre o DSM-III, teve apenas uma reação contrária.
No começo, as críticas foram relativamente moderadas, pois a maioria dos psiquiatras não tinha o menor interesse num novo manual diagnóstico. Pouco a pouco, na medida que se conhecia melhor o conteúdo do DSM-III, a oposição foi se intensificando.
O ponto de inflexão aconteceu em junho de 1976, num encontro especial em San Luis (patrocinado pela Universidade do Missouri, não pela Universidade de Washington), que contou com a assistência de centenas de destacadas figuras da psiquiatria e da psicologia. <<O DSM-III no meio do caminho>>, como se chamou a conferência, que constituiu para muitos eminentes psicanalistas a primeira ocasião que tomaram conhecimento da nova visão diagnóstica de Spitzer. Foi aí que se descobriu a verdade sobre o “recheio do pastel”. Imediatamente foi desencadeada uma grande polêmica. Os assistentes do encontro censuraram um sistema que consideravam estéril e que despojava o DSM de todo seu substrato intelectual, afirmando que Spitzer estava convertendo a arte do diagnóstico num exercício mecânico. O próprio Spitzer foi abordado repetidamente nas caminhadas, por psicanalistas que queriam saber se tinha o propósito de destruir a psiquiatria, e por psicólogos que queriam saber se estava deliberadamente marginalizando sua profissão.
Terminado o encontro, vários grupos influentes se mobilizaram para opor-se a Spitzer. Este reagiu entregando-se, com redobradas energias, na tarefa de replicar as críticas. Dois dos mais formidáveis oponentes eram a Associação Psicológica Americana, a maior organização profissional de psicólogos (às veze denominada a grande APA), pois há muito mais psicólogos do que psiquiatras nos Estados Unidos) e a Associação Psicanalítica Americana (APsaA), ainda a maior organização de psiquiatras freudianos. Um dos objetivos originais do DSM-III era deixar bem claro que a doença mental era uma autêntica doença médica, para enfrentar a afirmação da antipsiquiatria que se tratava simplesmente de uma etiqueta cultural. Os psicólogos (terapeutas com doutorado em filosofia, não em medicina) tinha se beneficiado em boa medida por este argumento antipsiquiárico. Se a doença mental era um fenômeno social, segundo a acusação formulada por Szasz, Goffman e Laing, então não fazia falta uma titulação médica para tratá-la: qualquer um poderia empregar justificadamente a psicoterapia para orientar a um paciente através de seus problemas. Se a Associação Psiquiátrica Americana declarava formalmente que a doença mental é um transtorno médico, os psicólogos se expunham a ver reduzidos os ganhos profissionais recém adquiridos.
No começo, o presidente da grande APA, Charles Kissler, escreveu à Associação Psiquiátrica Americana de forma diplomática: << Não é meu desejo que se produza um conflito entre nossas associações. Com este espírito, a Associação Psicológica Americana deseja oferecer todos seus serviços para ajudar a Associação Psiquiátrica Americana na elaboração do DSM-III>>. A resposta de Spitzer foi igualmente cordial: << Nós consideramos que a Associação Psicológica Americana se encontra numa posição privilegiada para ajudar-nos neste trabalho.>>
Junto com a resposta, incluiu o último projeto do DSM-III, que afirmava sem dúvida que a doença mental era uma doença médica. A resposta do presidente Kissler não foi mais tão amistosa: Como se dá a entender que os transtornos mentais são doenças, fica implícito
Que os assistentes sociais, psicólogos e educadores carecem da formação e os conhecimentos para diagnosticar, tratar ou manejar ditos transtornos. Se o enfoque atual não se modificar, então a associação Psicológica Americana empreenderá sua própria investigação empírica para a classificação dos transtornos do comportamento.
A ameaça apenas velada de Kiesler de publicar sua própria versão (não média) do DSM teve um efeito muito diferente do que pretendia: deu a Spitzer a oportunidade de conservar sua definição médica. Com efeito, Spitzer respondeu educadamente animando a Kiesler e a Associação Psicológica Americana a elaborar seu próprio sistema de classificação e afirmando que este manual poderia se constituir numa valiosa contribuição no campo da saúde mental. Na realidade, Spitzer suspeitava (corretamente) que as formidáveis dificuldades de semelhante tarefa -_em meio das quais se encontrava ele – acabariam impedindo que a grande APA a levasse a bom porto. Ao mesmo tempo, seu respaldo ao projeto de Kiesler lhe proporcionava um pretexto para manter a definição médica do DSM-III: no fim e ao cabo, os psicólogos eram livres para estabelecer sua definição de doença mental num manual próprio.
A maior batalha de Spitzer, porém, diferentemente -realmente uma batalha pela alma da psiquiatria- foi o enfrentamento na base do tudo ou nada com os psicanalistas. As organizações psicanalíticas não prestaram muita atenção ao grupo de trabalho do DSM-III durante os dois primeiros anos de sua existência, e não somente porque não lhes importasse a classificação dos transtornos mentais. Simplesmente não temiam a nada. Durante quatro décadas, os freudianos haviam dominado sem travas a profissão. Controlavam os departamentos acadêmicos, os hospitais universitários, a prática privada e inclusive a Associação Psiquiátrica Americana (pelo menos acreditavam nisto). Eles eram a cara, a voz e a bilheteria da psiquiatria. Era inconcebível que algo tão insignificante como um manual de classificação pudesse ameaçar sua autoridade suprema. Tal como expressou Donald Klein, um membro do grupo de trabalho do DSM-III: << Para os psicanalistas, interessar-se na diagnose descritiva implicava em ser superficial e um pouquinho estúpido.>>
Entretanto, a convenção da <<metade do caminho>> despertou os psicanalistas de sua apatia, obrigando-os a afrontar os possíveis efeitos do DSM-III na prática e a percepção pública da psicanálise. Pouco depois da convenção, um destacado psicanalista escreveu para Spitzer: <<O DSM-III desfaz o castelo da neurose e o substitui com uma Levitown diagnóstica>>, referindo-se a uma urbanização cortadas por um mesmo padrão que estava sendo construído em Long Island. Outros dos eminentes psicanalistas arremeteram contra o projeto afirmando que <<a supressão do passado psiquiátrico por parte do grupo de trabalho do DSM-III pode ser comparado com a ação de um museu nacional que destruísse seus Rembrandts, seus Goyas, seus Utrillos, seus van Goghs, etc., por considerar que sua coleção de desenhos de Warhol tivesse maior relevância.
Como lhes custava muito trabalho acreditar que pudesse sair algo significativo do projeto de Spitzer, os psicanalistas em conjunto, não reagiram com excessiva urgência. No final, a publicação do DSM-I e DSM-II não tinha produzido nenhum impacto em sua profissão. Passaram-se nove meses desde a convenção do <<meio do caminho>> para que o primeiro grupo de psicanalistas se dirigisse a Spitzer com uma solicitação formal. O presidente e o presidente eleito da Associação Psicanalítica Americana enviaram solicitação a APA pedindo que não prosseguissem os trabalhos do DSM-III até que a Associação Psicanalítica Americana tivesse podido avaliar exaustivamente seu conteúdo e revisar os processos mediante os quais se aprovaram qualquer conteúdo adicional. A APA negou.
Em setembro de 1977 foi formado um comitê de ligação integrado por quatro ou cinco psicanalistas da APsaA que começou a rabiscar propostas para Spitzer e seu grupo de trabalho. Aproximadamente na mesma época, outro grupo de quatro ou cinco psicanalistas da poderosa delegação de Washington D.C. da APA, começou a exercer pressão para introduzir mudanças no DSM-III. A delegação de Washington era, seguramente, a mais influente e mais bem organizada da APA, devido ao grande número de psiquiatras que se beneficiavam na capital do país das maiores prestações de serviço que desfrutavam os funcionários da administração. Durante os seis meses seguintes, Spitzer e os psicanalistas disputaram sobre a introdução de determinadas mudanças na definição dos transtornos.
Em dado momento, Spitzer comunicou ao grupo de trabalho que iria ceder a algumas das petições dos psicanalistas como medida política para assegurar a adoção do DSM-III. Para sua surpresa, os demais membros do grupo rechaçaram sua proposta por unanimidade. Spitzer tinha escolhido o grupo de trabalho por sua decidida vontade de introduzir mudanças radicais, e agora o tinham superado na entrega incondicional a tais princípios. Animado por sua própria equipe para manter-se firme, Spitzer respondeu repetidamente aos psicanalistas que não poderia satisfazer suas demandas.
Com a aproximação da votação decisiva, as facções psicanalíticas apresentaram propostas alternativas e fizeram frenéticos esforços para pressionar Spitzer e forçá-lo a aceitar suas exigências. Spitzer, porém, além de dedicar ao DSM praticamente todas seu tempo durante quatro anos, sempre tinha uma resposta baseada em provas científicas e argumentos práticos para sustentar sua posição, enquanto os psicanalistas com frequência ficavam gaguejando que a psicanálise deveria defender-se na base da história e tradição. <<Ocorriam discussões sobre a posição de cada palavra, sobre o uso de adjetivos e o emprego de maiúsculas nas entradas -assim explicou Spitzer para a historiadora Hannah Decker-. Cada modificação, cada tentativa de afinar melhor tinha entranhada uma importância simbólica para aqueles que estavam metidos num processo que era tanto científico como político.
Spitzer avançou corajosamente através de negociações espinhosas e de conflitivas subtilezas verbais até alcançar o rascunho definitivo nos começos de 1979. Faltava, apenas, a ratificação na assembleia da APA em maio. Diante da iminente votação, os psicanalistas se deram conta do muito que estava em jogo e redobraram as pressões e feroz determinação contra este grupo de trabalho e sobre toda a junta diretiva da APA, advertindo uma ou outra vez que os psicanalistas abandonariam em massa o DSM-III e a APA si não tivessem atendidas suas exigências.
Ao aproximar-se a data longamente esperada da votação, o contra-ataque definitivo dos adversários de Spitzer se fixou num elemento essencial da psicanálise: a neuroses. A neuroses era o conceito fundamental da teoria psicanalítica e representava para seus praticantes a definição mesma de doença mental. Era, também, a fonte principal de seus ganhos na prática privada, porque a ideia de que todo o mundo padece de algum tipo de conflito neurótico, gerava um fluxo constante de “sadios infelizes” para os divãs. Como podem imaginar, os psicanalistas ficaram horrorizados ao saber que Spitzer pretendia eliminar a neurose do campo da psiquiatria.
O influente e iconoclasta psiquiatra Roger Peele, era então, chefe da delegação de Washington D.C. da APA. Ainda que, Peele em termos gerais apoiava a concepção diagnóstica de Peele, sentia-se obrigado a questioná-la por causa da orientação psicanalítica do seu distrito. <<O diagnóstico mais frequente no Distrito Federal dos anos setenta era algo chamado neurose depressiva – explica Peele-. Isto era o que faziam os profissionais todos os dias>>. Assim, propôs uma solução de compromisso chamada <<Proposta Peele>> que defendia a inclusão de um diagnóstico de neurose <<para evitar uma ruptura desnecessária com o passado>>. O grupo de trabalho a rechaçou.
Nos últimos dias, anteriores à votação, houve um autêntico frenesi de propostas adicionais para salvar a neurose com nomes como Plan Talbott, Modificações Burris, Iniciativa McGrath e inclusive o Plano de Paz Neurótico do próprio Spitzer. Todas as propostas foram rechaçadas por um ou outro grupo. No final, chegou a fatídica manhã de 12 de março de 1979. Inclusive, nesta última fase, os psicanalistas fizeram um última ofensiva> Spitzer replicou como uma solução de compromisso: ainda que o DSM-III não incluísse nenhum diagnóstico específico de neurose, incorporaria nomes psicanalíticos alternativos para certos diagnósticos sem mudar os critérios diagnósticos (como por exemplo, <<neurose hipocondríaca>> no caso da hipocondria ou <<neurose obsessivo-compulsiva>> no caso de transtorno obsessivo-compulsivo) e se acrescentaria um apêndice com descrições dos <<transtornos neuróticos>> em linguagem similar à do DSM-II. Seria esta concessão suficiente para satisfazer os psicanalistas da APA, que eram a base da assembleia da APA?
Trezentos e cinquenta psiquiatras se reuniram no grande salão de baile do hotel Conrad Hilton de Chicago. Spitzer subiu ao estado de dois níveis, explicou os objetivos do grupo de trabalho e repassou brevemente o processo seguido antes de apresentar a assembleia o rascunho definitivo do DSM-III, algumas partes tinham sido redigidas apenas algumas horas.
Os psicanalistas tentarão uma última jogada desesperada. O psicanalista Hector Jaso apresentou uma moção para que a assembleia adotasse o rascunho do DSM-III… com uma emenda. <<A neurose depressiva>> seria incorporada como diagnóstico específico. Spitzer replicou que esta inclusão atentaria contra a coerência da concepção de todo o Manual. Além do mais, não havia dados disponíveis que apoiassem uma neurose depressiva. A moção de Jaso foi votada a mão alçada e amplamente derrotada.
Ficava a apreensão, a Assembleia estava rechaçando uma mudança de última hora ou manifestando sua oposição ao projeto inteiro do DSM-III? Finalmente, após milhares de horas de trabalho o produto, do planejamento visionário de Spitzer foi submetido a votação. A assembleia se pronunciou de forma praticamente unânime.
SIM.
<<Depois disto, ocorreu algo verdadeiramente extraordinário – escreveu Peele no New York Times -. Algo que não se vê amiúde na assembleia. A gente se levantou e começou a aplaudir.>> O estupor se adornou do rosto de Spitzer. << a Bob se humedeceu os olhos. Ali estava a multidão que ele temia que fosse torpedear seus esforços e aspirações. E o que estavam lhe dedicando era uma ovação em pé>>.
Como Spitzer conseguiu triunfar sobre o estamento dominante da psiquiatria? Ainda que os psicanalistas se opusessem com energia à ideia de eliminar os conceitos freudianos, para a maioria deles os benefícios inovadores do Manual de Spitzer superavam seus defeitos. No final, eles também tinham consciência do problema de imagem da psiquiatria e da ameaça planeada pelo movimento antipsiquiátrico. Compreendiam que a psiquiatria necessitava uma mudança de imagem e que este cambio devia basear-se em algum tipo de ciência médica. Inclusive os adversários de Spitzer reconheciam que este novo e radical Manual constituía um salva-vidas para toda a profissão, uma oportunidade para restaurar a maltratada reputação da psiquiatria.
O impacto do DSM-II foi tão espetacular como Spitzer esperava. A teoria psicanalítica foi desterrada definitivamente do diagnóstico e da investigação psiquiátrica, e o papel dos psicanalistas na cúpula da APA diminuiu enormemente desde então. O DSM-III imprimiu um giro à psiquiatria, afastando-a da tarefa de curar males sociais e centrando-a de novo no tratamento médico das doenças mentais graves. O critério diagnóstico de Spitzer podia ser empregado com idêntica confiabilidade por um psiquiatra de Wichita ou um de Walla Walla.
……….
Houve, também, consequências involuntárias. O DSM-III criou uma incômoda simbiose entre o Manual e as companhias de seguros que de pronto iria condicionar todos os aspectos da atenção mental nos Estados Unidos. As seguradoras só estavam dispostas a pagar por algumas das doenças recolhidas no DSM-III, induzindo assim os psiquiatras a colocar com base um número mais limitado de diagnósticos para ter assegurado do reembolso pela atenção recebida.
Ainda que o grupo de trabalho pretendesse que o DSM-III somente fosse utilizado pelos profissionais sanitários, as definições consagradas pelo Manual, logo se converteram no guia de fato da doença mental em todos os setores da sociedade. As seguradoras, os colégios, as universidades, as agências de subvenção de investigação, as companhias farmacêuticas, as assembleias legislativas estatais federais, o sistema judicial, o exército e os organismos de saúde pública – Medicare e Medicaid-, estavam desejando contar com um sistema coerente de diagnóstico psiquiátrico, e em pouco tempo todas estas instituições vincularam sua política, seus fundos ao DSM-III. Nunca em toda a história da medicina um só documento havia mudado tantas coisas e afetado a tantas pessoas.
Eu não estive presente na reunião transcendental na que a assembleia da APA aprovou o DSM-III, porém tive a felicidade de presidir a última aparição pública de Spitzer. Bob se viu obrigado a se aposentar em 2008 por causa de uma forma grave e incapacitante da doença de Parkinson. Para celebrar sua jubilação, organizamos uma homenagem a suas extraordinárias conquistas a que assistiram ilustres psiquiatras e numerosos alunos de BOB. Um depois do outro, tomaram a palavra para falar do homem que tão profundamente havia marcado suas carreiras. Finalmente, Bob se levantou para intervir. Sempre havia sido um orador convincente e disciplinado, porém ao começar sua intervenção irrompeu em soluços incontroláveis. Foi incapaz de continuar, afogado por aquela demonstração de afeto e admiração. Enquanto ele seguia chorando, eu com delicadeza, tomei o microfone de suas mãos trêmulas e expliquei aos presentes que a última vez que Bob tinha ficado sem palavras foi quando a APA aprovou o DSM-III na reunião da assembleia de Chicago. A audiência se pôs em pé e lhe dedicou uma ovação que se prolongou longo tempo.