GLEY P. COSTA[1]

Em 1885, quando foi a Paris estudar com Charcot, Freud tomou conhecimento dos trabalhos de Tardieu, Lacassagne e Bernard sobre abuso sexual de crianças e, 1886, assistiu as autópsias de crianças do professor Brouardel no necrotério de Paris (Calvi, 2005, Masson, 1984).

Entre 1895 e 1897, ele estabeleceu um nexo entre o abuso sexual sofrido na infância e os sintomas apresentados mais tarde por pacientes histéricos e obsessivos, configurando a denominada” teoria da sedução”.

De acordo com Freud, essa experiência era traumática para o aparelho mental incipiente da criança que, sem poder integrá-la, suprimia-a da consciência através do mecanismo de defesa que deu o nome de “repressão”.

Contudo, esta concepção traumática das neuroses, com base em uma experiência real da criança, estava fadada a ter uma vida curta, pois já em 21 de setembro de 1897 escreveu a seu amigo Fliess (Carta 69, p.350):

Tenho de te confiar o grande segredo que em mim se iluminou: já não acredito na minha neurótica (ou seja, na sua concepção sobre a etiologia das neuroses).

O que Freud havia concluído é que as cenas de sedução eram muitas vezes produto de reconstruções fantasiosas das crianças, através das quais procuravam dissimular a atividade auto erótica dos primeiros anos de vida. Por esse motivo, em 1905 ele renegou publicamente a “teoria da sedução” (Masson, 1984).

Não obstante, a literatura registra controvérsias a respeito dessa mudança de rumo por parte do pai da psicanálise, aventando a possibilidade de corresponder a um não revelado “acordo de cavaleiros” firmado por Freud com a comunidade científica para sair do ostracismo que se encontrava desde o momento em que expôs  a “teoria da sedução” numa conferência na Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena, na noite de 21 de abril de 1896 (Calvi, 2005, Masson, 1984).

Consta que a recepção de suas ideias sobre a sexualidade infantil fora quase que gélida e que Freud, por conta disso, desejou que todos fossem para o inferno e, num ato de desafio aos colegas, publicou no mesmo ano  o conteúdo integral da conferência  com o título  de A etiologia da histeria (Masson, 1984).

Contudo, seguindo a linha de 1905, quando abandonou a “teoria da sedução”, em 1910, ao descrever a situação triangular edípica, Freud colocou em destaque o parricídio nas relações entre pais e filhos.

A partir desse momento, ficou em segundo plano o interesse da psicanálise pelos sentimentos agressivos dos pais em relação aos filhos, configurando o filicídio, o qual foi definido por Rascovsky (1973) como o maltrato corporal e afetivo dos filhos mediante o abandono, a desvalorização, a superproteção, o abuso sexual, a mutilação e o assassinato, como acontece nas guerras de uma forma aceita socialmente.

Destaca o autor que Freud, ao descrever o complexo de Édipo, assumiu a pauta gerontocrática da cultura que, desde tempos imemoráveis, atribui a culpa predominantemente aos filhos, subestimando a ação agressiva prévia dos pais, com a qual os filhos se identificam.

Tendo como referência a senda edípica completa, tal como foi contada por Sófocles, que tem início no abandono e tentativa de morte do filho, neste trabalho objetivamos abordar o conflito geracional entre pais e filhos enfatizando os sentimentos despertados nos pais pelas diferentes idades dos filhos, gerando, em muitos casos, condutas filicidas mitigadas.

Na verdade, o que não podemos desconhecer é que cada etapa do desenvolvimento dos filhos, mobiliza uma conflitiva geracional nos pais. Por conta disso, não são raras as situações de ciúmes dos pais quando as mães se encontram no período de amamentação dos filhos e se dedicam integralmente ao cuidado deles. Não surpreende, portanto, que é durante essa fase que se observa a maior incidência de infidelidade por parte dos maridos que, dessa forma, procuram atenuar intoleráveis sentimentos de exclusão. Em alguns casos, esses ciúmes permanecem por toda a vida sob a forma de maltrato em relação aos filhos homens: conduta que nos reporta ao Mito de Saturno, eventualmente acompanhada de um excessivo carinho e uma desmedida superproteção das filhas.

As situações propiciadas pela clínica são inúmeras e, como foi dito, incluem todas as idades dos filhos. Contudo, a impossibilidade de enfocar os específicos conflitos de todas as etapas do desenvolvimento dos filhos, da infância à idade adulta, limitaremos nossa abordagem, nesta oportunidade, ao período da adolescência.

A adolescência constitui uma etapa destacada dessa conflitiva por duas razões:

A primeira razão é porque corresponde a um ponto de cruzamento de idades entre pais e filhos: os primeiros se encaminhando para o envelhecimento e os segundos para o desabrochar da vida adulta. Sem dúvida, as maiores dificuldades serão observadas naqueles pais com características narcísicas marcantes ou que passaram privações de qualquer natureza ao longo da vida, em particular na etapa correspondente à idade dos filhos.

A segunda razão decorre do fato de que muitos pais não conseguiram ir adiante da adolescência em seu desenvolvimento e, por conta disso, não podem ser considerados como adultos do ponto de vista emocional. Não obstante, precisamos ter presente que, um adolescente, uma adolescente, reúne capacidades suficientes para dedicar-se a um trabalho e ganhar dinheiro com ele, manter relações sexuais prazerosas, engravidar e gerar filhos e cuidá-los adequadamente enquanto são bebês e durante a infância, mas se defronta com dificuldade quando eles chegam na adolescência, momento em que podem ocorrer três situações que denominamos de:

  • Síndrome do espelho
  • Síndrome do emparelhamento
  • Síndrome da inversão de papeis

A Síndrome do espelho se caracteriza pelo sentimento depressivo despertado nos pais ao se compararem com os filhos, os quais, como um espelho, refletem, por comparação, as marcas do seu envelhecimento. As reações a esse sentimento são várias, mas principalmente no caso das mulheres, predominam os procedimentos cirúrgicos estéticos e o fisiculturismo, mas não se constata a negação da realidade. Ao contrário, a realidade é experimentada depressivamente.

Na Síndrome do emparelhamento, contudo, a realidade é negada e, como consequência, os filhos são tratados pelos pais como irmãos, mantendo com eles uma atitude de franca competição, na qual se sentem sempre vencedores.

Por último, a Síndrome de inversão de papeis, que ocorre quando os filhos amadurecem mais do que os pais, que passam a ser cuidados por aqueles em seus relacionamentos, na conduta social, na maneira de se vestir e até mesmo no consumo de bebidas alcóolicas e drogas.

Dessa forma, concluímos que, ao abandonar a teoria da sedução, conferindo às neuroses uma etiologia traumática, a psicanálise impôs uma grande perda à compreensão das interações afetivas e emocionais do relacionamento familiar, uma vez que, ao priorizar o parricídio na cena edípica, deixou de lado a conflitiva desenvolvimental dos pais mobilizada pela idade dos filhos, situação que coloca em pé de igualdade as fantasias parricidas e filicidas, fruto da ambivalência de sentimentos entre pais e filhos.

Essa tendência, incorporada pelos autores pós-freudianos, teve o mais significativo reforço na unilateralidade da teoria das relações de objeto de Melanie Klein, uma vez que, para esta autora, os pais não existem, são frutos das fantasias agressivas dos filhos. Como referiu Bleichmar (1993), a partir da dominância da proposta endógeno-genética do kleinismo e da radical a historicidade estruturalista do lacanismo, o traumático foi praticamente varrido da psicanálise.

Cabe, no entanto, como ponto final, uma referência à Ferenczi (1933) que, no Congresso Internacional de Psicanálise de 1932, criticou veementemente a forma negligente com que a psicanálise passara a considerar o aspecto traumático na psicogênese das neuroses, alertando que “o fato de não aprofundar de maneira suficiente a origem exterior comporta um perigo: o de se recorrer a explicações apressadas, invocando a predisposição e a constituição” (p. 111).  Ferenczi (1931) também alertou que é no silêncio dos adultos e, depois, do analista, que reside o verdadeiro caráter traumático do abuso sexual sofrido pela criança.

REFERÊNCIAS

BLEICHMAR, S. (1993). La fundación de lo inconsciente: Destinos de pulsión, destinos de sujeto. Buenos Aires: Amorrortu.

CALVI, B. (2005). Abuso sexual en la infância: Efectos psíquicos. Buenos Aires: Lugar.

FERECZI, S. (1931). Análises de crianças com adultos. Obras Completas. V. IV, São Paulo: Martins Fontes, 2011.

FERECZI, S. (1933). Confusão de língua entre os adultos e a criança. Obras Completas. V. IV, São Paulo: Martins Fontes, 2011.

FREUD, S. (1950[1892-1899]). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

FREUD, S. (1910). Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (Contribuições à psicologia do amor I). Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

MASSON, J.M. (1984). Atentado à verdade: A supressão da teoria da sedução por Freud. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.

RASCOVSKY, A. (1973). El filicídio. Buenos Aires: Ed. Orion.

 

 

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[1] Membro fundador, titular e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA).  Membro do Conselho e professor da Fundação Universitária Mário Martins (FUMM).

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