Walmor João Piccinini
Há muito tempo namorava a ideia de escrever sobre um dos psiquiatras mais importantes da segunda metade do século XX e que segue no século XXI marcando a psiquiatria brasileira com seu entusiasmo, sua rebeldia e seu constante desafio ao estabelecido. Acompanho sua trajetória desde os anos sessenta quando surgiu como o “psicofarmacologista”, “menino do Leme Lopes.” Não pensem que eram elogios. Num ambiente dominado pela visão psicanalítica ele funcionava como um rebelde a falar em tratamentos outros que não o psicanalítico. Para não repetir muito do que já escrevi, sugiro que leiam alguns artigos meus sobre a psiquiatria dos anos 60. (https://www.polbr.med.br/ano01/wal1001.php). Na época eu comparava o que era escrito nas revistas psiquiátricas brasileiras com os Archives e com o American J. of Psychiatry.
Em 1960 se dizia que a mudança para Brasília iria extinguir a corrupção na política brasileira e que o Rio de Janeiro iria ser um simples balneário. Passados sessenta anos se constata que o Rio continua lindo, continua com políticos corruptos, mas a grande corrupção mudou-se para Brasília. Bela Brasília, sem culpa do que transplantamos para lá.
Nosso personagem, mineiro de Cambuí, viveu sua juventude numa Rio de Janeiro mágica, tudo ali acontecia. Naquela vida louca dos anos sessenta é admirável que tenha conseguido estudar medicina e se destacar entre seus pares. Nós aqui na periferia vivíamos a Legalidade do Brizola e a certeza que a psicanálise iria resolver todos os males da sociedade. Imbuídos do fervor psicanalítico líamos e em certas ocasiões ouvimos vozes que falavam uma língua diferente, Leme Lopes, João Romildo e alguns outros.
Resolvi republicar uma “auto-avaliação” do próprio João Romildo Bueno quando escreveu sobre sua vida para a Seção Orgulho de Ser Psiquiatra da Associação Brasileira de Psiquiatria (http://www.abp.org.br/portal/orgulho-de-ser-psiquiatra-8/)
Eu, João Romildo Bueno, mineiro de Cambuí no sul de Minas Gerais, 75 anos apenas vividos, pai de três filhos e avô de três netos jamais pensei ser psiquiatra, melhor seria aviador ou diplomata, algo que me permitisse andar pelos mundos sem ser percebido.
Sem me notar ou ser notado comecei como bancário, auxiliar de escritório, faturista, office-boy, cobrador de praça, revisor de jornal, tradutor de livros de bolso conhecidos como “policiais”.
A medicina, uma forma de exercer uma profissão digna e de ascender socialmente, chegou de mansinho, sem me dar tempo para fugir. Graduei-me como médico pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil em dezembro de 1964, mas a partir do primeiro semestre do terceiro ano fui “agraciado” com bolsa do CNPq e passei a trabalhar com Lauro Sollero em farmacologia. A seguir, no segundo semestre do quinto ano ingressei no IPUB – Instituto de Psiquiatria – e quase sem saber por que, no ano seguinte, o professor Leme Lopes me colocou como chefe de Residência, mais ou menos um “síndico” do Pavilhão Maurício de Medeiros -PMM- onde os então interno-residentes deveriam morar com direito à chave, é claro. Era complicado: manhãs no IPUB e tardes na Farmacologia e com a obrigação de publicar trabalhos científicos para não perder a bolsa do CNPq. Os primeiros trabalhos saíram nos Anais da Academia Brasileira de Ciências e “pari passu” nos Archives Internationales de Pharmacodynamie, no British Jornal of Pharmacology, sempre incentivado por Sollero e Paulo de Carvalho. Meu primeiro concurso na Universidade do Brasil foi em abril de 1965 e em julho do mesmo ano, com bolsa do CNPq e casado, encontrava-me no ISPI – Illinois State Psychiatric Institute, aí fiz outro concurso para o cargo de Medical Research Associate IV do Galesburg State Research Hospital onde trabalhei com Harold E. Himwich por dois anos e repetindo a mesma batida: pelas manhãs chefiava a enfermaria de pesquisa com 32 leitos e de tarde trocava o jaleco de médico pela roupa verde de pesquisador. Ah! para este exercício fiz a “State Board” para psiquiatria em Chicago e a repeti mais tarde em Nova York quando o Fieve convidou-me para participar de uma pesquisa no New York Psychiatric Institute da Columbia.
Voltei ao Brasil para fazer outro concurso, o de professor assistente, três anos após a docência e o doutoramento em medicina. Convidado por Leme Lopes e encorajado por Cincinato Magalhães Freitas acabei editor-chefe do Jornal Brasileiro de Psiquiatria, na época com um pequeno atraso de três anos. Editar uma publicação atrasada, mas renomada, provocou que muitos dos então “colegas” torcessem o nariz por não me julgarem “psiquiatra”. Não passava de um “simples psicofarmacologista” ou quando partia para a agressão, um reles farmacêutico, como se nota “me fiz psiquiatra”.
Não sei a quantidade de artigos que publiquei nem guardei o número de cursos que ministrei ou menos ainda, quantos trabalhos apresentei em congressos aqui e ali. Editei e fui da comissão editorial de um número razoável de publicações aqui, nos EE.UU, na França ou na Argentina. Cheguei a pensar que para o “Orgulho de ser Psiquiatra” organizaria o currículo, atualizaria a foto, mas nada fiz. Meu maior orgulho é o de ter contribuído para o crescimento da ABP e o de hoje é o de sorrateiramente entrar em grandes auditórios para ver e ouvir ex-alunos meus pontificando em sapiências e me ensinando algo novo, ainda que me esqueça de pegar o certificado de participação nos congressos para “provar” que lá estive. O melhor é o que virá, ainda não aconteceu…
Por estar estudando no exterior o Dr. João Romildo não esteve presente na fundação da ABP. Retornando ao Brasil logo começou a participar e esteve presente nas grandes transformações desta Associação nos seus cinqüenta anos de vida. A partir do seu “curriculum” Lattes construímos sua “genealogia” psiquiátrica.
João Romildo Bueno formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1964. Seu doutorado foi concluído em 1970. No mesmo ano defendeu livre-docência. Antes mesmo de se formar, já publicara alguns (4) trabalhos em psicofarmacologia. Fez residência no IPUB e logo foi convidado para ser professor naquela instituição. Sua presença em congressos, desde muito jovem, era apreciada e era visto como discípulo dileto de Leme Lopes. Com a fundação da Associação Brasileira de Psiquiatria em 1966 e tendo como primeiro presidente o Professor José Leme Lopes, João Romildo Bueno tornou-se figura importante da nova entidade e chegou à presidência na gestão 1983-86.