Sérgio Telles

 

Resenha de Jacques Rancière, O inconsciente estético – São Paulo, Editora 34, 2009, 80 pp

 

Porque o Édipo de autores do período clássico francês como Corneille e Voltaire era tão diferente do Édipo de Sófocles? Essa é uma das perguntas que Jacques Rancière vai responder em seu livro “O inconsciente estético”.

Nele Ranciere propõe a ideia de que há um inconsciente estético estabelecido nas artes, que antecede e possibilita o advento do inconsciente freudiano.

Esse inconsciente estético é fruto de uma revolução conceitual que possibilitou o domínio das artes sair do reino da poética e ingressar no reino da estética. Isso significa que o conjunto de pressupostos sobre a atividade criadora do artista, ordenado por Aristóteles em sua obra Poética e que esteve em vigor até o final da Era Clássica (século XVIII), foi repensado por Bumgarten em 1750, em seu livro Estética. Ali Baumgarten propõe uma nova forma de entender a arte, sustentando que há um conhecimento próprio às imagens da arte, diferente do conhecimento cognitivo, racional, lógico.

Lembremos que a palavra estética se refere à sensibilidade, ao campo do sensorial e do perceptivo, distinto do âmbito do conhecimento lógico, racional. Baumgarten estabelece a existência de um conhecimento sensível, “claro, mas ainda confuso”, que se opõe ao conhecimento “claro e distinto” da lógica (p. 12). Assim retoma Ésquilo e Sófocles com seu pathei mathos, o conhecimento que advém do sofrimento, o conhecimento que decorre de pathos e não do raciocínio, da razão, de logos.

Na trilha aberta por Baumgarten seguem outros pensadores. Schelling diz que a arte é a “odisseia de um espirito fora de si mesmo”. Hegel, por sua vez, afirma que o espirito procura “tornar-se manifesto para si mesmo através da matéria, que lhe é oposta”. O movimento do espírito em luta com a matéria buscando a representação e a bela aparência pode reverter, abandonando o “mundo claro da representação e voltando para o mundo obscuro subterrâneo e desprovido de sentido, o mundo da ‘coisa em si’, o mundo do querer viver nu, insensato”, como diz Schoppenhauer. Essa polaridade é colocada por Nietzsche em termos da dualidade formada pela dimensão apolínea da bela aparência e de seu oposto, a desordem dionisíaca (p.31-2)

Para ilustrar a diferença entre a poética aristotélica e a estética de Baumgarten, Rancière usa como exemplo o Édipo tal como criado por Sófocles e as modificações nela introduzidas na era clássica por Corneille e Voltaire. Rancière salienta que o que perturbava esses autores não era o conteúdo da peça – o incesto de Édipo, como se poderia supor a partir da interpretação de Freud, e sim a própria estrutura da tragédia, que não estava em conformidade com os padrões aristotélicos, o que – diz Rancière – o próprio Aristóteles já percebera.  Para “corrigi-la”, Corneille e Voltaire desfiguram o enredo de Sófocles, introduzindo mudanças significativas na narrativa, acrescentando cenas e eliminando outras consideradas de mau gosto, como a perfuração dos olhos de Édipo, além de introduzir novos personagens.

Segundo Rancière, Freud recupera o Édipo de Sófocles, o que só lhe foi possível por contar com a ajuda de autores advindos com a revolução estética, como Nietzsche, Schoppenhauer e Holderlin.

A revolução estética revoga o conjunto ordenado de relações entre o visível e o dizível, o saber e a ação, a atividade e a passividade, próprios da poética, bem como a ideia do pensamento como “ação sobre a matéria passiva” (p. 25). O saber deixa de estar vinculado a uma ação, a um decidir fazer algo, a tomar determinada atitude, e passa a ser em si um “crime contra a natureza”, fica estabelecido uma equivalência entre saber e sofrimento” (p.26). Diz Rancière: “Édipo para começar, é testemunha de uma certa selvageria existencial do pensamento, na qual o saber se define não como o ato subjetivo de apreensão de uma idealidade objetiva, mas como um determinado afeto, uma paixão, ou mesmo uma enfermidade do vivente” (p. 26). Ou seja, é proposto um outro tipo de pensamento, voltado para a compreensão dos movimentos internos do sentir, do viver, da subjetividade. Tal pensamento não leva à ação e sim à introspecção e equipara saber e sofrimento – o já mencionado pathei mathos de Ésquilo ou Sófocles.

Daí a importância da trilogia dos “doentes do saber” tão caros a Freud – Édipo, Hamlet e Fausto. O saber que tanto buscavam esses personagens não os leva primordialmente a nenhuma grande ação heroica no mundo externo, provoca uma introspecção, um voltar-se para dentro, a meditação. O pensamento vira uma “questão de doença e a doença uma questão de pensamento”, diz Rancière (p.26).

Segundo o autor, a psicanálise nasce no cerne da revolução estética, cujos heróis são Schopenhauer e o jovem Nietzsche, e que deu vez a uma literatura específica, escrita por Zola, Maupassant, Ibsen ou Strindberg, escritores “que mergulham no puro sem-sentido da vida bruta ou no encontro com as forças das trevas” (p.33).

Ao possibilitar uma nova ideia sobre o pensamento, a revolução estética também leva a uma nova ideia sobre a palavra escrita. As discussões sobre as peculiaridades da palavra falada e da palavra escrita ocuparam Platão, para quem a escrita é um estatuto menor da palavra, é o logos mudo, depreciado por ser incapaz de se conter e escolher a quem se dirigir, é uma palavra simultaneamente “muda e tagarela” (p. 34). Opõe-se à prestigiada palavra falada, instrumento vivo do mestre que sabe o que fala e a quem, à palavra do orador que conduz a multidão, à palavra do herói trágico que não se esquiva do que o destina lhe reserva.

A revolução estética dá uma nova valorização à palavra escrita (logos mudo) e a vê de duas maneiras. Em primeiro lugar, observa que as coisas mudas carregam nelas mesmas uma palavra inscrita. É a constatação de que “tudo fala”, na afirmação de Novalis (p.35), concepção posteriormente retomada por Freud, sempre em busca de sentidos e significados, mesmo ou especialmente no aparentemente insignificante. Desta forma, todas as hierarquias próprias da representação clássica ficam esvaziadas. A outrora poderosa palavra falada, a dita palavra viva, perde sua importância, agora “não é mais que a vã cena oratória, o discurso da superfície e suas agitações” (p. 38). Em segundo lugar, o logos mudo se evidencia na palavra solilóquio, que “não fala para ninguém, a não ser para si mesmo”. É o discurso inconsciente sobre o qual Maeterlinck teorizou ao analisar a obra de Ibsen (p. 39). Em ambos os casos, o que é ressaltado é a potência da linguagem, que a tudo permeia. No primeiro modelo, urge traduzir, decifrar, interpretar a palavra muda incrustada nas coisas, dar-lhe voz, devolvê-la ao regime linguageiro, que é o que Freud nos ensinou a fazer desde “A interpretação dos sonhos”. No segundo, nos deparamos com uma palavra insensata, que fala a vontade bruta, não simbolizada, da vida. Dão testemunho dessa palavra muda a obra dos escritores já citados (Ibsen, Strindberg, Maupassant, Zola) – que circulam nos subterrâneos do mundo e da mente, mostrando realidades impensáveis, tidas antes como irrelevantes ou indignas de representação. Neles, há identidade de contrários, uma equivalência entre saber e não saber, do agir e do padecer.

Inicialmente Freud não tolerava a gratuidade e a falta de sentido, a volúpia do nada afirmada por esses escritores. Freud empreendia uma incessante busca por sentidos, procurava provar a existência de uma lógica especial própria do desejo inconsciente. Paradoxalmente Freud se beneficiava da liberdade dos escritores criados pela revolução estética, mas nas análises que fazia dessa literatura, procurava um encadeamento lógico que se aproximava dos parâmetros próprio da ordem clássica, muito embora enfatizasse que essa era uma racionalidade diferente, característica dos desejos inconscientes. Nesse sentido, Freud estaria sendo mais aristotélico do que baumgartiano. Mas Freud termina por se reconciliar com o radicalismo do inconsciente estético tal como representado em Ibsen, Steindberg, Maupassant e Zola, ao se deparar com a pulsão de morte e repensar o funcionamento do aparelho psíquico além do princípio do prazer.

Em outras palavras e grosso modo, essas duas formas de tratar a palavra escrita, o logos mudo, corresponderiam aos dois modelos de funcionamento do aparelho psíquico, o regido pelo princípio do prazer/realidade e o regido além desse princípio, com a introdução da pulsão de morte.

Rancière ilustra essa posição de Freud na análise que ele faz de “Rosmerholm”, de Ibsen, no texto “Alguns Tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”.  Recusando a entropia niilista, a vertigem do nada proposta por Ibsen, Freud insiste em buscar sentidos (culpas e desejo de punição inconscientes pelo incesto) nos gestos extremados e insensatos dos personagens.

Ao revogar a ordem causal vigente na poética aristotélica e seu desdobramento na ordem clássica até o século XVIII, a revolução estética autoriza a arte a expor com toda liberdade a convivência de contraditórios, a coexistência de pathos e logos.

Atualmente, ao abordar a literatura e a arte, parte dos analistas continua buscando sentidos reprimidos e inaparentes, seguindo a lógica própria do desejo, tal como ilustrada na interpretação dos sonhos, sintomas, etc. Outra parte se aproxima mais da dimensão radical do inconsciente estético, “afirmando ao mesmo tempo a autonomia antirepresentativa da arte e sua natureza profundamente heteronômica, seu valor de testemunho da ação das forças que ultrapassam o sujeito e o arrancam de si mesmo” (p.77).

Essa psicanálise mais radical, mais cônscia da pulsão de morte, valoriza a palavra do Outro, que será sempre “irredutível a qualquer hermenêutica” (p.77). O encontro com o Outro em sua radical alteridade descentraliza o sujeito, experiência semelhante a que lhe ocorre quando se depara com a potência da arte: “O sujeito é aí desarmado pela marca do aistheton, do sensível, que afeta a alma nua, confrontado a uma potência do Outro (…) À sublimação freudiana se opõe essa marca do sublime, que faz triunfar um pathos irredutível a todo logos (…)” (p. 76).

Em seu rico e instigante livro, Rancière estabelece uma gênese específica da psicanálise, situando-a no âmago da cultura alemã, como um fruto da revolução estética de Baumgarten. É uma visão diferente da habitual, que enfatiza sobretudo suas raízes judaicas.

Sérgio Telles, psicanalista e escritor, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde coordena o grupo “Psicanálise e Cultura” e faz parte do corpo editorial desta revista. Tem artigos publicados em revistas especializadas e na grande imprensa. Entre outros, é autor de “Posto de Observação” (Editora Blucher).

[email protected]

www.sergiotelles.com.br

(*) Publicado em “Percurso”, número 61, dezembro 2018

 

 

 

Similar Posts